Ao reler uma das mais poderosas obras de Merleau Ponty, O olho e o espírito, voltei a mergulhar neste mundo da visão, que ele anuncia e celebra; neste mundo onde o acto de ver é um acto de pensamento, de acção vinculativa; onde o olhar é o resplendor do ser e do sensível- o nosso mais sublime e assombroso recurso de viver o mundo, no mundo, com o mundo.
A visão, como constante redescoberta da força do espanto, é experimentação que eu sustento dentro do meu corpo- sentinela silenciosa que alberga e acolhe os meus actos e pensamentos.
Magnífico pensar que os nossos "olhos de carne são já muito mais do que receptores para as luzes, as cores e as linhas; são compiladores do Mundo, que têm o dom do visível."
Uma das partes que me devolveu a ideias experimentais guardadas em mim e por outros iluminadas e reforçadas é o grande enigma do vidente e do visível.
Quando estou em casa sozinha à noite, de repente sinto e vejo e compreendo que são as coisas que me fazem companhia. A moca do café já frio, a loiça ainda por lavar, os armários, o candeeiro que me ilumina; estão ali comigo, a aguentar a realidade comigo, mas sem fazer uma única pergunta. As coisas sabem e ficam comigo, quando já toda a gente se foi deitar. As coisas olham para mim como se já soubessem. Apercebo-me que a arquitecura me acompanha pela rua quando volto à noite para casa. As árvores por que passo, que me olham e me vêem ir e voltar, sempre... Sinto uma pertença do mundo a mim e de mim ao mundo, como se fossemos feitos da mesma matéria, envolvidos e indissociáveis.
Merleau Ponty fala-nos muito disto: " Visível e móvel, o meu corpo pertence ao número das coisas, é uma delas, está preso na textura do mundo, e a sua coesão é a de uma coisa. Mas, posto que vê e se move, ele mantém as coisas em círculo à sua volta, elas são um seu anexo ou prolongamento, estão incrustadas na sua carne, fazem parte da sua definição plena, e o mundo é feito do mesmo estofo que o corpo. Estas inversões, estas antinomias são maneiras diversas de dizer que a visão faz parte ou se faz do meio das coisas, aí onde um visível se põe a ver, se torna visível para si e pela visão de todo o tipo de coisas, aí onde persiste, como a água-mãe no cristal, a indivisão do que sente e do sentido."
Somos, portanto, ao mesmo tempo videntes e visíveis, e vivemos nessa relação de fusão carnal com o que nos rodeia. Assistimos e testemunhamos o espectáculo desassombrado e ininterrupto do mundo e o mundo o nosso.
"Eu não vejo de acordo com o invólucro exterior, vivo-o de dentro, estou nele englobado. Seja como for, o mundo está à minha volta, não à minha frente."
Andre Marchand disse, depois de Paul Klee: "Numa floresta, senti várias vezes que não era eu que olhava a floresta. Senti, em certos dias, que eram as árvores que me olhavam, que me falavam... Eu estava lá, à escuta... Creio que o pintor deve ser trespassado pelo universo, e não querer trespassá-lo... Aguardo ser interiormente submergido, enterrado. Eu pinto, talvez, para me emergir."
Não se trata de uma operação de causalidade, mas de uma relação de expressão, configurando um sistema de trocas sensíveis: tácteis, visuais, sonoras, uma fórmula carnal da presença do corpo e do mundo.
Quando ganharmos esta consciência- um não vão trabalho de profundidade de uma vida inteira- seremos então capazes de - não só ver e ser vistos, mas de ver e saber/sentir que somos vistos; seremos então capazes de escutar o mundo, de sentir o seu incessável rasgo, fluxo contínuo do qual somos parte .
Filipa Almeida
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