segunda-feira, 19 de junho de 2023

 

“Noite Stravinsky” – pela Companhia Nacional de Bailado, em três tempos

      I.         Os flashes da Noite

    II.         As sensações

  III.         O análogo da memória

I

As imagens da dança como construções da nossa própria memória ou imaginação.

A estrutura da dança ou o efeito que provoca nos expectadores surge como uma espécie de paralelismo com a nossa própria memória. O modo como nos recordamos dos acontecimentos ou emoções que temos está intimamente relacionado com o modo como nos relacionamos com a dança. Esse momento aparentemente ininteligível em que os corpos esvoaçantes compõem uma melodia para os nossos sentidos.

Como se as cores, os movimentos dos corpos e os sons convergissem num único momento, como se o espetáculo de dança nos desse a oportunidade de descobrir um novo sentido em nós, talvez mais puro e mais desperto. Se me detenho na reconstituição da memória do espetáculo, do programa que foi apresentado escapa-me logo toda a sensação.

Para mim de fácil recordação ficaram três palavras e já é tanto, se nos detivermos na emoção daquilo que significaram naquela Noite de Stravinsky. São elas cadeira, brilho e cor.

É difícil escrever sobre aquilo que nos está tão perto. A dança está dentro de nós no movimento que fazemos para nascer já dançamos, no balanço do corpo que se levanta para um dia de trabalho, no mais quotidiano de um autocarro a chegar à paragem e os transeuntes a aproximarem-se e movimentarem se para o seu interior, no recolher da noite quando nos encolhemos na cama, a vida é uma dança tão próxima que se torna difícil falar sobre ela.

Mas regressando à apresentação da Noite de Stravinsky no teatro Camões, constituída por três bailados: o primeiro “AS BODAS” para mim a palavra é cadeira, pode ser simples e primordial, mas é o balanço que me surge quando penso nessa peça. A imagem mais marcante será uma espécie de conjunto de corpos juntos que não são homens nem mulheres, mas balançam e balançam e nesse balançar têm a cadeira metalizada como o suporte do seu corpo, num equilíbrio brilhante que reluz e que é enigmático ao mesmo tempo. É um eterno balançar.

No segundo “INTERMEZZO”, a palavra é brilho já nos diz quase tudo não nos faltasse a sombra para perceber a luz e novamente esta dicotomia entre luz e sombra e há uma espécie de brilho que une ambas faces da moeda, o dia e a noite, claro e escuro. Nessa simbiose perfeita encontramos a música que está sempre presente nesta noite com uma orquestra ao vivo a guiar os nossos ouvidos para caminhos longínquos muito para além da sala de espetáculos.

Por fim, no último bailado composto por dois atos, mas não menos pungente e inquietante a “SAGRAÇÂO DA PRIMAVERA” para mim é cor, uma invasão de cor. Várias cores tão marcadas é como se tornassem em sons vivos que caminham do interior da terra tão visceral e enigmático. Que chega a faltar-nos o ar.

II

As sensações das palavras e dos sons. Os movimentos dos corpos em torno de uma luz misteriosa na Noite de Stravinsky.

Citando Eugénio de Andrade, para melhor explicitar o pretendido.

"(…)

um corpo é o lugar da furtiva

luz despida, de carregados

limoeiros de pássaros

e o verão nos cabelos;

 

é na escura folhagem do sono

que brilha

a pele molhada,

a difícil floração da língua.

 

O real é a palavra."

 


III

A memória surge à consciência tal como uma espécie de dança dos sentidos, quando nos abstraímos da tentativa de explicar as causas ou consequências que observamos ficamos mais próximos de realidade interior de cada movimento. Como se a nossa memória funcionasse como uma espécie de dança em que os sentimentos se vão misturando e reativando à medida que são atualizados por novas cores e sensações. A memória como uma síntese que nos aparece à consciência quando na verdade é uma construção contínua e ininterrupta que vai sendo atualizada. E que surge como uma tentativa de legitimar a realidade, de lhe conferir um sentido.

Ora o espetáculo de dança mais do que nos apresentar uma peça é uma narrativa de corpos que contam uma história sem voz e que por isso é tão livre e pode tão maravilhosamente ser apropriada por cada mente, por cada ser pensante que a adequa e integra na sua própria história de vida constituindo para si uma memória única e quase indecifrável. Uma dança em que continuamente vivemos não apenas exterior, mas sobretudo interior em que os nossos pensamentos e emoções voam como sonhos. E constituem uma espécie de memória enigmática, só inteligível para cada um de nós neste domínio de interioridade irredutível, individual, irrepetível e por isso fascinante.

 


Foto retirada do site oficial da CNB

domingo, 18 de junho de 2023

O Paradoxo da Utopia

 A exposição Recursos Naturais, visitável no Hangar – Centro de Investigação Artística, em Lisboa, é da autoria do artista plástico Miguel Palma. Este artista de 59 anos, com mais de 30 anos de carreira, desenvolveu o seu trabalho de um modo multi-disciplinar (escultura, desenho, vídeo, instalação e performance) demonstrando o seu interesse por tecnologias (na sua generalidade) e pela relação que a humanidade tem com a natureza, isto é, o modo como a civilização domina o natural. As peças tendem a ser, ou aparentam ser, complexas. Os elementos que as compõem são muito elaborados na sua construção, mas também podem partir de uma ideia intuitiva, como é o caso da peça AQUÁRIO de 1996, em que a ideia é direta e sem outros sentidos, para além do seu lado paradoxal (um peixe fora de água, dentro de água).


AQUÁRIO, 1996

O espaço expositivo do Hangar situa-se próximo do miradouro dos Barros, com vistas para a cidade, o Castelo e o rio Tejo. Observamos com clareza a cidade bem adaptada ao declive das suas colinas. Intencional ou não, o local da exposição vai de encontro ao tema: o domínio da humanidade sobre a natureza.




A galeria, composta por duas salas, é um espaço relativamente pequeno. Do lado direito da entrada existe um escritório e em frente encontramos o espaço expositivo: uma sala branca em forma de J e um pilar ao centro. As peças estão expostas junto às paredes, algumas penduradas e outras no chão, com exceção de duas, colocadas junto ao pilar.

Grande parte das peças é desenho composto por escrita, linhas, manchas e colagens. A expressão é elementar e inocente. A mancha tende a ser uniforme, maioritariamente em tons de azul, sendo utilizada para desenhar formas variadas. Os elementos que estão recortados e colados variam entre fotografias, desenhos, padrões, artigos de jornais ou revistas, ou possivelmente, manuais de instruções. O globo terrestre é um elemento recorrente, tanto nos desenhos, como no resto das peças. Os elementos ligam-se de modos diversos: linhas, sobreposições, figurações, manchas... embora o tema das peças seja recorrente (a forma como a civilização manipula os recursos naturais), por vezes, o lugar – ou talvez o significado – de alguns elementos das peças pode não ser óbvio, e em certos casos, é até rebuscado.

De modo geral, é evidente que Miguel Palma tende a complexificar as suas peças. Pode-se dizer que brinca com a complexidade e amplitude da tecnologia que a humanidade usa para os seus projetos de desenvolvimento, como se pode observar no desenho abaixo:




Este desenho, apesar de não ser particularmente saturado em detalhes, carrega claramente a ideia de complexidade. Remete-nos para quadros de investigação criminal (1). É como se fosse aqui apresentado um projeto megalómano à escala global, mas ironicamente, está apresentado de modo muito simplista e até infantil. Existem muitas referências à exploração espacial, muitas delas são foguetões colocados na periferia do desenho do globo terrestre, como se fossem descolar para fora do desenho. Os diferentes elementos tecnológicos do desenho estão ligados por fios ou tubos. Algumas partes do desenho estão assinaladas com uma circunferência. Há repetições de formas – padrões – em cada continente (a Antártida e a Oceânia não estão representadas). Globalmente, a obra é uma sátira ao desejo incansável de progresso. A infantilidade do mundo utópico onde a humanidade tem o poder total sobre a natureza.

 

(1)




PROJECTO 2080, 1996



A peça PROJECTO 2080 de 1996 é uma instalação eléctrica que tem como materiais o ferro, o acrílico e a madeira. Em termos temáticos, as duas peças relacionam-se. Ambas focam-se na relação entre a natureza e a humanidade. Contudo, não é um exagero dizer que em termos estéticos estas peças são quase opostas. Enquanto uma estabelece relações complexas e difíceis entre todas as suas partes, a outra é mais simples. Os elementos de PROJECTO 2080 podem ser organizados em três grupos: a estrutura da peça, a parte vegetal e as figuras (bonecos). O lugar de cada detalhe da obra é claro e directo. Em termos técnicos, a peça envolve mais recursos. As árvores estão fixadas de modo invertido na parte superior da estrutura, e esta está a suspender a parte inferior. Trata-se de uma superfície luminosa, como se fosse o pavimento de uma exposição de arte contemporânea (cubo branco). As figuras encontram-se nessa superfície. A peça é equilibrada na sua proporção, elegante e talvez até requintada devido à sugestão dos bonsais. Partindo da ideia de que a obra representa uma maqueta, podemos extrapolar que a intenção do projecto seria criar um espaço utópico, onde as pessoas pudessem usufruir de todos os benefícios ao estarem conectadas com a natureza, mas sem estarem em contacto direto com ela. Temos mais uma vez aqui, uma ideia paradoxal. Nesse espaço, a natureza cresce como o humano deseja, sem interferir com o quotidiano, em total separação mas com grande proximidade. Ao contrário da obra anterior, aqui o elemento satírico é mais subtil.

Ao observar a exposição, conseguimos perceber que Miguel Palma tem um enorme fascínio por tecnologias e arriscaria até dizer, por ficção científica. Contudo, ao contrário de muitas pessoas que são obcecadas por novas tecnologias e progresso tecnológico, Miguel Palma demonstra estar perfeitamente consciente das consequências do desenvolvimento tecnológico excessivo. Embora possa parecer paradoxal, quando o artista expõe os grandes problemas da insustentabilidade, consegue fazê-lo de modo leve e com humor, expondo o seu fascínio pelo comportamento da humanidade. Por outras palavras, não se encontra um discurso ativista no seu trabalho, não há qualquer ecoansiedade.


fontes:

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Entre os museus de Arte Popular e da Etnologia Nacional__ um passeio pelas tradições do povo português através da cestaria e da música



Fonte: Fotos da autora no dia da visita aos museus.

 

Oeiras, 08/06/2023



Saí para um passeio em busca das tradições portuguesas e que me levasse às pessoas que fazem das suas práticas do dia-a-dia a sua arte, mas também o seu viver e ofício, retratando um modo de ser característico de uma comunidade. Sendo assim, nada melhor do que visitar dois museus que se comunicam pelos conteúdos dos seus acervos, como o Museu de Arte Popular e o Museu da Etnologia Nacional, ambos localizados na cidade de Lisboa, em Portugal.

Ao adentrarmos no Museu de Arte Popular percebemos estar em um ambiente diferenciado, onde os trabalhos manuais, o artesanato, são protagonistas das memórias do povo português através da cestaria. O Norte de Portugal é a região do país que destaca-se na produção de uma variedade de cestos, que se destinam à atividades diversas e que retratam por sua vez, os autores dos mesmos, suas histórias e ofícios, característicos das comunidades onde vivem. 

Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.

A cestaria como o próprio nome sugere é o ofício em que se cria uma variedade de cestos, de fibras de origem vegetal. A elaboração dos produtos artesanais pode ser através do método de entrançar as fibras ou em forma de espiral. Em ambos os casos, os produtos fruto destas elaborações são muito harmoniosos, com proporções geométricas diferenciadas e que levam a uma variedade de objetos que são transformados a partir da ideia inicial da cesta, como vemos nas imagens abaixo.

Canoas, candelabros, potes, vasos e lustres, são apenas alguns desses objetos, que podemos citar como exemplos e que retratam o esmero em que são produzidos. Afinal de contas, são produtos originários das mãos, do toque e da delicadeza e habilidade no trato com os materiais. Nada é feito à revelia, mas tudo tem o seu sentido único de ser. As sensações que atravessam as mãos, pelo corpo, vão dando formas variadas aos materiais e dando vida também pela imaginação do seu autor, ao objeto artístico.

Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.

            As paredes do acervo temporário, da exposição “Um Cento de Cestos”, vão atraindo o nosso olhar para imagens dos artesãos, construtores de tão belas peças que se distribuem ao longo das salas. Ao olharmos com atenção cada uma das fotografias, que dão protagonismo aos artistas-artesãos, vamos percebendo que cada um deles tem uma forma diferenciada de manusear suas produções, como também uma forma especial de se relacionar com as mesmas peças e com os ambientes de criação. 


                                        Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.


 De acordo com o que  é dito no programa do museu sobre a exposição:

“A exposição “Um Cento de Cestos”, materializa uma estratégia de estudos, documentação e divulgação de coleções congêneres do Museu de Arte Popular (MAP) e do Museu Nacional de Etnologia (MNE), a partir de uma abordagem integrada que pretende evidenciar, por um lado, a complementaridade entre essas coleções, e por outro, as sinergias que se estabelecem quando da decisão de reunir as duas instituições numa única entidade museológica.”

(Paulo Ferreira da Costa, Diretor do Museu Nacional de Etnologia / Museu de Arte Popular)


            A iniciativa dos museus em reunir em um único acervo os trabalhos dos artesãos, busca dar visibilidade às técnicas manuais que primam pela sustentabilidade, no manuseio de materiais que pela sua própria origem vegetal tornam-se renováveis, não ferindo o meio ambiente.

              Abaixo vemos a imagem de uma cestaria denominada de “madeira rachada”, produzida a partir da utilização de árvores diversas, como o castanheiro e o carvalho e bastante utilizada para a agricultura e pescaria. Desta forma podemos perceber como o trabalho dos artesãos além de ter uma função utilitária para eles próprios e de sobrevivência, pode de maneira solidária, vir a contribuir para o ofício de outros, quando utilizado como instrumentos de pesca, por exemplo, colaborando assim em extensão do trabalho, para a comunidade como um todo. Uma maneira também de repensar a vida através de ações que ganham importância pelo ato de preservação, por ser sustentável e munido de pensamento coletivo.


Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.

             Alguns nomes dos autores das peças de cestaria cujos trabalhos estão expostos no museu merecem ser referenciados, são eles: Dinis Cunha, cujo trabalho artesanal é feito com madeira rachada, Manuel Dias, em vime, Antônio Gomes, em cana, Carlos Silvestre em palha de centeio, Maria de Fátima Santos em junça e Vanessa Flórido em palma.


Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.

            

                Os materiais são valorizados em cada detalhe na exposição, como os que mostramos na imagem acima e através das características de cada uma  das matérias-primas vamos conhecendo uma zona de Portugal, a exemplo do sanguinheiro, do vime e do choupo. Essas matérias-primas dão origem a utensílios variados como o cesto, usado nos trabalhos agrícolas e as canastras utilizadas no comércio ambulante, nas feiras em vilas, como em Miranda do Corvo no Distrito de Coimbra, cujas matérias-primas neste caso da região em específico, são o castanho e salgueiro. Mas também podemos citar como exemplo o viveiro de peixes utilizado para transportar o peixe vivo dentro da água, origem em Vila Franca de Xira e cuja matéria-prima é o salgueiro.

Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.

            

               Seguindo em nossa busca pela arte popular portuguesa, chegamos em nosso passeio finalmente ao Museu da Etnologia Nacional e vamos aos poucos, nos envolvendo com os brinquedos populares, os variados instrumentos musicais criados com materiais rústicos, mas que esbanjam criatividade e que fazem das festas populares portuguesas tão singulares em ritmos, performances e cores. E assim, em ato de apreciação, aos poucos ao caminharmos pelo acervo do museu, vamos sendo capturados pelo olhar, pelas fotografias do povo em festa e pelos vídeos das celebrações, que também revelam seu sincretismo, que em menor ou maior grau, relacionam o sagrado ao profano, das festas dos santos aos brinquedos gigantes mascarados.

Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.


            Acima a Dança do Homens na Festa da Senhora do Alto dos Céus, imagem de Benjamim Pereira de 1963. Foto tirada pela autora em visita ao acervo do museu.

Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.

            Por sua vez, das imagens que mostramos acima vê-se da esquerda para direita o instrumento dos cartoze pauzinhos de pau-ferro, onde através das correias é suspenso no pescoço do tocador, que com o chuço, material agarrado as correias, quando arrastado pelos pauzinhos produz sons que vão seguindo conforme o ritmo e compasso da dança que o acompanha. À direita temos a cabeça de gigatone ou cabeçudo. Bastante conhecido nos carnavais da cidade de Tomar em Santarém.

              O tempo dita a atuação de determinados instrumentos e que consequentemente só se ouvem em determinados períodos do ano. A flauta e o tamboril são tocados em conjunto pelo taborileiro em zonas de Trás-os-Montes e Alentejo, tendo nesta última caráter cerimonial. Ou em Santo Aleixo da Restauração na Festa de Santo Antônio, em Maio, e em Barrancos na Festa de Santa Maria, em Agosto. Normalmente esses instrumentos são propriedade da comunidade onde são tocados.

              Chegando ao fim do nosso passeio pelos museus que trazem em seus acervos a arte popular portuguesa através dos cestos, dos instrumentos musicais e brinquedos folclóricos, fica a vontade de conhecer ao vivo a atuação dos artesãos em suas comunidades e nos faz pensar e questionar sobre uma possível aplicabilidade destes materiais e suas produções, como substituição de produtos industrializados e assim, também como uma forma de promover a sustentabilidade, fomentando o empreendedorismo local, a empregabilidade ou um rendimento acrescido.




quinta-feira, 8 de junho de 2023

Museu Fragata

Fundeado na doca seca de Cacilhas entre o Farol e os antigos estaleiros da Lisnave, a Fragata D. Fernando II e Glória remonta ao século XIX, cujo espaço é hospedeiro a peças de arte e inúmeros itens de coleção. Património da Comissão Cultural da Marinha, é hoje a 4ª mais antiga fragata de guerra, e foi a última a realizar a rota marítima à Índia. As visitas guiadas em datas especiais, como no passado 20 de maio – Dia da Marinha – contam com um recontar de acontecimentos a bordo e um workshop de Arte de Marinheiro, com demonstrações de nós.

O navio veleiro é mandado erguer por D. João VI em 1824 e a sua construção inicia-se mais tarde em 1832, seguida de outros períodos de atrasos durante os reinados atribulados de D. Miguel e D. Pedro I. Com os lucros da produção de tabaco na Índia, a construção reganha força e termina em 1843 e o navio assume os nomes do casal real da data.

Erguida na Índia, em Damão, escolha motivada pelo historial de experiência em construção naval naquele enclave, pelo acesso a mão de obra barata na época e proximidade do estaleiro a florestas de madeira de teca. Nome comum das Tectona grandis, árvores que atingem os 50 metros de altura e dão origem a uma madeira com leveza considerável em relação à sua durabilidade, características atrativas à construção naval. Embora de origem asiática, são descobertos vestígios pelos europeus em destroços nas ilhas do mar Egeu, sugerindo a sua utilização em barcos e navios desde a antiguidade.

Conta com uma história relativamente tranquila, nunca chegando a travar qualquer combate por não ter havido necessidade de recorrer a armamento durante os 33 anos de atividade, servindo de embarcação para transporte de mercadorias, passageiros, e ocasionalmente presos a despojar noutros territórios portugueses.  

Já inativo, aquando da segunda metade do século XX, Fernando II e Glória albergava uma “obra de assistência social [1], um projeto de habitação e recrutamento de crianças e jovens órfãos ou de famílias carenciadas. Um incêndio a 3 de abril de 1963 deflagrou a bordo, reduzindo a fragata a 13% da sua estrutura original. O rigor nos trabalhos de restauro nos mais recentes anos 90, com reconstituições históricas dos ambientes e quotidiano da vida a bordo nas viagens do século XIX, concede ao navio o prémio Maritime Heritage Award, distinguido pela instituição inglesa World Ship Trust em 1999. Podemos hoje comparar o design do navio veleiro aos modelos britânicos que surgiram em seguida naquele século, sugerindo uma possível inspiração por parte da armada Real britânica no desenho português.

A restauração da estrutura recuperou parte da madeira original, no espírito de preservação e conservação que o navio vindica, enquanto peça histórica e espaço museológico. O navio veleiro consta de quatro pisos: o convés, à superfície, por onde é feita a entrada a bordo e aos restantes espaços; a bateria; a coberta; e o porão. É ao descer das escadas estreitas para a bateria que nos deparamos com o primeiro manequim que habita a fragata. Amarrado pelo pescoço e pés, o “João Pedro” terá sido um marinheiro castigado pela libertação não autorizada de passageiros de bordo e pela resistência às autoridades que o questionaram.

Nos compartimentos pessoais do comandante observam-se uma coleção de bordados, cristais, porcelanas e pratas portugueses oferecidas por mecenas à data dos restauros da fragata entre 1980 e 1998, cujos nomes se encontram imortalizados no espaço. A este espaço de conservação juntam-se outros, como a botica onde seriam armazenadas ervas medicinais, mezinhas e remédios, e a messe de oficiais – salas que alojam peças de coleção e manequins modelo de figuras verídicas, em a entrada é limitada ao público e a sua observação é feita através das pequenas janelas presentes em cada porta. Os manequins presentes a bordo são trabalhos feitos a partir de registos históricos e documentais de caras de tripulantes, e de modelos vivos de antigo pessoal da marinha.



A bateria conta ainda com uma cozinha e rancho central, com reproduções de fogões e material da época, e, na sua proximidade, o curral, com transporte de animais vivos destinado ao consumo. A capacidade do curral portaria uma estimativa de 1000 galinhas e 100 porcos para as longas viagens aos principais destinos da armada – Angola, Moçambique e Índia.

O piso abaixo, a coberta, seria um espaço multifuncional, em metamorfose ao decorrer do dia. Serviria principalmente de refeitório nas horas diurnas e de espaço religioso para as rezas ao levantar das mesas no final do dia. Na hora do recolher, eram erguidas redes ao teto e o espaço transformar-se-ia em dormitório. Nesta mesma zona encontra-se um oratório a Nossa Senhora da Conceição, peça que data ao século XVII exposta tal como estaria à data das viagens do D. Fernando II e Glória, encastrada numa espécie de deambulatório de bordo. O piso é ainda casa à praça de armas do navio, com uma coleção de espingardas e sabres.

Por fim, o porão alberga a zona técnica e de carga do navio, servindo ao transporte de pólvora e outros materiais atinentes à artilheria e carpintaria. O espaço é habitado por manequins que posam em trabalhos dessas mesmas áreas e conta com um extenso número de outras figuras: um médico num espaço de enfermaria ambulante, decorado com os instrumentos utilizados nas intervenções cirúrgicas da época; uma família de civis num pequeno camarote improvisado durante viagens de transporte de passageiros; um grupo de homens num momento de descontração, a talhar pequenas embarcações em madeira.




As obras de restauro do  D. Fernando II e Glória e a sua abertura ao público são de um tal elevado valor histórico e cultural que insere o navio no conjunto dos espaços museológicos do concelho de Almada. A inserção de peças de coleção e das obras de escultura de manequins nas muitas divisões do veleiro concedem vida aos espaços e recontam a história do quotidiano da vida na marinha, criando uma experiência única incomparável, por exemplo, ao que seria a exposição desses objetos numa sala típica de museu de paredes brancas. Numa visita à fragata para o conhecer do espaço em si, as peças expostas – ou dispostas – contam para o realismo da experiência. Sem elas o navio parecer-nos-ia vazio e a experiência menos real. Da mesma forma, numa visita com objetivo de apreciar as peças e a arte a bordo, é o espaço por sua vez distingue e eleva a experiência.


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[1] (1963), "Diário de Lisboa", nº 14477, Ano 42, Quinta, 4 de Abril de 1963, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos. http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_15410

Figura 1. Vista do interior da messe de oficiais. Fotografia da autora.

Figura 2. Vista do interior da botica de bordo. Fotografia da autora.

Figura 3. Vista do camarote de alojamento de passageiros civis. Fotografia da autora.

Figura 4. Outra vista do camarote. Fotografia da autora.



A Luz e as Sombras

 A peça Poema de Tomás Maia foi apresentada na Cisterna do Convento de São Francisco da Cidade (FBAUL). Contrariamente à ideia intuitiva de um poema, a peça não usa a linguagem literária. Recorre à apresentação visual e sonora para expor o gesto poético. A peça é inspirada no mito de Orfeu, mas procura representá-lo num outro contexto de modo a abordar o mito sem a componente trágica da história.

O mito de Orfeu é uma história da mitologia grega. Segundo a lenda, Orfeu apaixonou-se e casou com Eurídice. No entanto, Eurídice foi mordida por uma serpente venenosa e morreu. Orfeu decidiu descer ao submundo, o reino dos mortos, para tentar trazer sua amada de volta à vida. Orfeu consegue persuadir Hades, o deus do submundo, a permitir que Eurídice retorne à terra sob uma condição: Orfeu não poderia olhar para trás até que eles estivessem completamente fora do reino dos mortos. Orfeu concordou e começou a guiá-la de volta, mas, atormentado pela dúvida, olhou para trás antes de atingirem a superfície. Nesse momento, Eurídice desapareceu e voltou ao submundo para sempre, deixando Orfeu destroçado.

Em Poema, Orfeu não aparece em cena e Eurídice chega à superfície.

Para entrar na cisterna, os visitantes avançam um de cada vez, através de um corredor estreito onde a luz vai ficando cada vez mais escassa. A entrada para a cisterna, ao fundo do corredor, termina numa plataforma, no escuro absoluto, após o fecho da porta de acesso, que corresponde ao lugar dos espetadores. Passados alguns minutos de silêncio, escuta-se uma composição para precursão aparentemente irregular e agitada. Do escuro, ligam-se progressivamente três projetores, instalados na cobertura do espaço, com uma amplitude angular de iluminação, do topo das escadas até ao chão. Vemos com clareza, chão e escadas cobertas de terra. Subitamente surgem figuras vestidas com roupa escura e simples a descerem as escadas. O efeito da luz dava-nos a impressão de uma aparição das figuras, sem se perceber de onde vinham, como um número de ilusionismo. A um olhar mais atento, as figuras, mais precisamente, os caminhantes, vinham de uma escada não visível, para chegar ao topo do visível (construção piramidal da estrutura). Ao terminarem a descida, os caminhantes contornavam a estrutura em direção ao lado oculto das escadas, e reiniciavam o ciclo do movimento.

Passado algum tempo, entra em cena uma figura feminina vestida de branco, vinda debaixo da plataforma onde se encontra o público, em frente à escadaria visível. Avança e sobe as escadas. O movimento é mais lento que o dos caminhantes e, quando se cruzam, dá-se um ligeiro impasse e discreta contra-cena, ao nível do olhar, como se a caminhante de branco possuí-se uma aura. Quando atinge o topo das escadas, todos se imobilizam. A dado momento, a caminhante roda a cabeça 90 graus para o lado esquerdo, a iluminação altera-se e foca-se na figura durante alguns minutos, que antecedem o seu desaparecimento (sai de cena descendo as escadas ocultas ao nosso olhar). A luz retoma o desenho inicial e os caminhantes retomam a descida. O público sai da sala com a cena em aberto (os caminhantes continuam o seu movimento).

Poema tem a duração de cerca de 30 minutos. Os tempos são adequados para acompanharmos calmamente a fluidez da cena e dos seus movimentos, sem nos perdermos nos diferentes registos entre as partes.

A peça aborda as grandes questões da humanidade: a vida, a morte e a verdade. Para ser mais preciso, a inacessibilidade e a incerteza dessas questões. Se tomarmos o paralelismo entre a peça e a alegoria da caverna, vemos uma mulher a caminhar em sentido contrário às sombras. Mas mesmo após chegar à “verdade”, a posição e o olhar dela ainda se encontra dentro de uma caverna (a cisterna). Ironicamente, a verdade encontrava-se do lado das sombras (a saída da cisterna).

A experiência do visitante é positiva, na medida em que é levado a elaborar pensamentos profundos e inquietantes, a partir da arte, da poesia. O quão pouco sabemos sobre a vida? E mesmo que se descubra a verdade, o que nos garante que essa verdade é a verdade?

Uma nota que remete ao início de Poema: houve um erro na abordagem da luz de emergência presente no espaço. A luminosidade de pontos vermelhos na escuridão total faz questionar o seu propósito e não tem lugar na peça. Deveriam ter sido tapados completamente ou assumidos de maneira clara como luzes de emergência, para os excluirmos logo à partida.

Revista é Sempre Revista! _ Um espetáculo teatral português da alegria!

 

Fonte: Fotos da autora tiradas no dia da apresentação.

 

 

Oeiras, 07/06/2023



Um espetáculo de encher os olhos no Teatro Politeama em Lisboa! Canto, dança, música e narrativas que contam de maneira jocosa, através de sátiras e ironias sobre o teatro de revista em Portugal, seus personagens e contextos, e revive a “revista” como um gênero teatral que trás o riso e a crítica social como mobilizador da ação cênica. Como um dos próprios atores se refere no palco, em que a revista é “a arte de ser português”, Filipe La Féria nos vai revelando pouco a pouco, em um espetáculo de variedades, os personagens que fizeram da revista portuguesa um sucesso de público e entrelaçando assim a tradição com a contemporaneidade. 

Os atores e dançarinos em figurinos graciosos e ricos em detalhes, contam-nos sobre experiências vividas pelos artistas, os de ontem, de meados do século XX, que fizeram a revista portuguesa quando a mesma nasceu, assim como os de hoje, que nos trazem a revista contemporânea. Em cenas que remetem ao quotidiano, o espetáculo mostra também pessoas comuns, bem como críticas aos políticos e autoridades, expondo as mazelas sociais, criando conexões com os tempos atuais, unindo a revista do passado à revista do presente.

Vamos da plateia rindo e nos emocionando com a atuação dos atores no palco que buscam em muitos momentos a interação com o público, quer seja nas brincadeiras endereçadas a alguém da plateia, que nos leva a gargalhadas, quer seja no chamamento às palmas ou até mesmo, na narração engraçada de uma estória que se comunica com as nossas vivências do dia-a-dia, ou através dos números cantados e dançados e interpretados ao ritmo do fado. É como se subíssemos ao palco a cada atuação e vamos a cada instante sendo convidados a bater palmas, a cantarmos, nos envolvendo e divertindo juntamente com o elenco, dando um ritmo especial ao espetáculo que nos vai afetando como a própria vida.

Alguns locais da cidade de Lisboa são citados e assim aos poucos vão sendo construídos através da atuação dos atores contextos variados na nossa imaginação, como o Teatro Apolo, ponto central da revista, o Teatro da Trindade, o Teatro Nacional e o Teatro Maria Vitória, considerado o primeiro teatro do Parque Mayer que fez 100 anos e que foi palco de vários teatros de revista, inaugurado em 1922.


Fonte: Foto da Agenda Cultural.


Enquanto imaginamos os contextos, somos ao som do Charleston, uma dança surgida na década de 1920 na Carolina do Sul na América do Norte, convidados a bater palmas, vão aparecendo então a seguir, as canções e danças populares portuguesas, o público reconhece as canções e vão seguindo cantando com os atores e cantores, momentos especiais vão sendo criados em que a plateia e os artistas fazem a festa, o espetáculo de revista. Neste palco da alegria e da irreverência, os atores e atrizes vão personificando acontecimentos, e dando vida a personagens, a conceitos, e a instrumentos políticos, como a censura. Personificada como uma velha senhora, a censura, símbolo da repressão, é representada pela atriz que afirma ser contra a revolução, figura vigente nos períodos da monarquia e da ditadura. Todos no palco gritam, evocando o pensamento crítico em meio à brincadeira e a alegria.

O espetáculo vai-se tornando também uma homenagem aos artistas da revista, surgem no palco grandes painéis com os retratos de cantores, atores, coristas e vedetas que se sobressaíram no teatro de revista, citando alguns nomes como: Eunice Munhoz (1928-2022), Beatriz Costa (1907-1996), Ribeirinho (1911-1984), Vasco Santana (1898-1958), Eugenio Salvador (1908-1992), Ivone Silva (1935-1987) e que são interpretados pelos artistas da companhia. Através de cantorias que unem o fado às narrativas de vida dos artistas da revista de um tempo longínquo, pelas memórias de tempos idos vão sendo reveladas à plateia, com humor e emoção, sentimentos pensamentos e modos de ser.

                                                                Fonte: Foto da Agenda Cultural.


A crítica mordaz, a sátira e as piadas preenchem o palco com personagens que de suas palavras relatam a obscuridade das ações de agentes políticos que prejudicam a população, gerindo mal os recursos. Para ilustrar, em um determinado momento no palco, entra um ator que interage com outro grupo de atores que representa um rancho folclórico. Como um coro bem jocoso e divertido, este grupo vai reforçando e representando os descalabros provocados pelos agentes políticos à população. Os atores se utilizam do exagero nas expressões corporais e nas repetições das ações e falas, para ressaltar o desespero como consequência das ações desastrosas que acometem a população vitima do desrespeito e da exclusão.

Como em um ato de manifestação, indignação e inconformismo, com piadas e duplos-sentidos, os personagens vão relatando à plateia os problemas atuais, como por exemplo, os 125 euros de apoio extraordinário dos ordenados, o aumento de 50% das reformas em um mês, e da retirada de 30% ao ano nos impostos, o aumento do leite, do gás, das fraudas, da gasolina, do aumento constante das taxas e mais taxas e taxinhas.

 Como um ato de revolta o coro repete:

Já chega! Somos pobres! Também quero agradecer a Marcelo, o Marcelinho. É fome! É miséria! É injustiça! Falta de habitação! Se alguém souber de um T0 por menos de 100 euros...é que fico esperando vocês rirem das desgraças.

A plateia se diverte e é convidada pelos atores para acompanhar com palmas o canto, que vai se tornando cada vez mais crítico e sendo acompanhado pelas danças folclóricas que reforçam toda a situação de desagrado e desespero da população representada pelos atores em cena. Uma cena inusitada quando uma vedeta entra no palco em desespero por não ter comida para fazer uma sopa. O canto é crítico, dando destaque ao preço do pão, do leite, do bacalhau. Em meio às piadas, as cantigas de fado seguem emocionando, gerando dramaticidade e vão revelando personagens de revista de outrora. A plateia canta juntamente com os atores uma das canções de Lisboa que diz em coro:

 Lisboa tem cheiro de flores e de mar, cheira bem, cheira a Lisboa!

Quando o espetáculo se aproxima do fim o ápice das interpretações dos atores vai se dando através dos variados solos de fado. As vozes incríveis dos atores entram em conexão com a emoção da plateia que busca acompanhar cantando. Retornam narrativas de vida, as vedetas contam as suas histórias, dando vivacidade à apresentação, que não reduz a energia e empolgação em nenhum momento, dando ritmo ao espetáculo nas alternâncias das variadas cenas. Um dos atores ressalta que a vida é bela! Um teatro que vai se mostrando alinhado com as causas sociais, humanitárias e instigando a plateia a compartilhar com o riso e as palmas, o que é dito com o coração.

Vamos sentindo que não queremos que o espetáculo acabe. Tudo vai se tornando uma ode à alegria. Em meio às plumas das vedetas, seus cômicos e dramáticos relatos e em meio as cores dos figurinos que encantam o olhar, as letras das canções vão-se  posicionar como em alto relevo no palco, mais um convite para que as  pessoas da plateia participem da festa da revista, lendo do telão, cantando e batendo palmas juntamente com os atores.

 E a plateia vem abaixo nos risos, quando entram em cena os times de futebol, Benfica, Porto e Sporting, personalizados pelos atores que rivalizam entre si com muito humor, levando as pessoas que assistem às gargalhadas, ao som das cantigas dos times e das canções populares portuguesas. Um show à parte. Vamos sentindo mais uma vez que o fim do espetáculo se aproxima, uma das vedetas convida a entrar no palco todo o grupo, mais uma vez atores e plateia cantam e se divertem com um espetáculo onde predomina a alegria e saímos do Teatro Politeama com o coração aliviado e feliz e com a mensagem que nos foi deixada pelos atores:

Deixem esse teatro com uma gargalhada! A vida vale a pena se tivermos a coragem de rirmos dela! Porque Revista é sempre Revista!

segunda-feira, 5 de junho de 2023

 Festival da Canção - Academia Recreio Artístico

No domingo 7 Maio de 2023, deu-se a oitava edição do Festival da Canção da ARA. O evento que se realiza na associação Academia Recreio Artístico, na Rua dos Fanqueiros em Lisboa, é de caráter artístico pretende a divulgação de “novos” talentos na área da música e composição.


É um momento em que artistas desconhecidos, residentes ou sócios da A.R.A., carteiros, calceteiros entre outros indivíduos de profissões comuns e “não-artísticas” , possam apresentar e expor o seu criação musical num âmbito competitivo e colaborativo.  Não se fala aqui de uma noite de karaoke entre vizinhos e amigos, o próprio nome do espectáculo “Festival da Canção” cria um paralelo à competição de nome homónimo e de escala nacional e internacional onde, numa plataforma de escala nacional e europeia, as grandes e contemporâneas vozes musicais de cada Pais concorrem na procura de uma aprovação europeia de um sucesso que já possuem no contexto nacional. 

O formato do festival é idêntico ao dois homónimos. Todos os participantes devem ingressar na competição tanto individualmente como em grupo apresentando uma canção da sua autoria a um painel júris habilitados, que votará após a apresentação. O vencedor do festival ganha um jantar num hotel patrocinador do festival,


Regressemos então ao porque deste festival como foco de atenção para as artes? A grande diferença está no participante. Está no foco do próprio festival. Enquanto um primeiro celebra o sucesso dos já sucedidos, o outro apresenta-se como um lugar onde todos podem exprimir a criação artística que possuem. Um é uma plataforma comercial o outro uma plataforma musical. Um arte comercializada e o outro, como diria François Matarasso, “arte democrática”. Ai percebemos a razão de ambos serem “homónimos”, citando a Infopédia da Porto Editora sobre a definição da palavra Homónimo: “que ou palavra que se pronuncia e se escreve como outra mas que tem significado diferente”.


O evento que se realiza à mais de uma década (Festival da Canção da ARA), conta com a parceria do Grupo de Teatro Acreart, um “grupo de teatro amador constituído por um elenco onde se cruzam em cena actores cegos, com baixa visão e normovisuais” e que colabora com a A.R.A. desde 2008. Percebe-mos por este colaborador e impulsor do festival - o Grupo de Teatro Acrert - uma vontade já existente de criar espaços colaborativos e participativos onde grupos marginalizados, ou neste caso sem oportunidade ou incentivo de mostra, criem e apresentem o seu trabalho ao publico. Quase que conseguimos imaginar Joseph Buyes, juntamente com Matarasso, no lugar de jurí deste festival, invocando pensamentos sobre “Social Sculpture” ou exprimindo as suas famosas palavras, “Todos podemos ser artistas…”. Esta mesma frase exprime de certa forma, a essência deste momento artístico, social, competitivo, e até, educativo, que une pessoas dos mais diferentes espectros.


O contexto performativo discutido nesta recensão não é um acto performativo por si só mas todo o espaço que criou as oportunidades de existirem performances musicais de “artistas não-profissionais” (Matarasso, Arte Irrequieta) nele. Assim todas as performances são alvo da recensão, pois todas elas carregam por de trás a vontade de cada artista de as expor, a alegria de as mostrar e o anseio pela aprovação. Nem que se ganhe sou um jantar.  





Referências: 

Acreart - http://grupoacreart.blogspot.com Acreart - Artes Cénicas - Academia Recreio Artístico (2008)Acreart. Disponível em: http://grupoacreart.blogspot.com.

8º Festival da Canção da ARA (2023)Academia Recreio Artístico. Disponível em: https://academia-recreioartistico.blogspot.com/2023/02/8-festival-da-cancao-da-ara.html.

Infopédia, Porto Editora. - https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/homónimo 

Matarasso, François (2021) Uma Arte Irrequieta. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian