quinta-feira, 8 de junho de 2023

Museu Fragata

Fundeado na doca seca de Cacilhas entre o Farol e os antigos estaleiros da Lisnave, a Fragata D. Fernando II e Glória remonta ao século XIX, cujo espaço é hospedeiro a peças de arte e inúmeros itens de coleção. Património da Comissão Cultural da Marinha, é hoje a 4ª mais antiga fragata de guerra, e foi a última a realizar a rota marítima à Índia. As visitas guiadas em datas especiais, como no passado 20 de maio – Dia da Marinha – contam com um recontar de acontecimentos a bordo e um workshop de Arte de Marinheiro, com demonstrações de nós.

O navio veleiro é mandado erguer por D. João VI em 1824 e a sua construção inicia-se mais tarde em 1832, seguida de outros períodos de atrasos durante os reinados atribulados de D. Miguel e D. Pedro I. Com os lucros da produção de tabaco na Índia, a construção reganha força e termina em 1843 e o navio assume os nomes do casal real da data.

Erguida na Índia, em Damão, escolha motivada pelo historial de experiência em construção naval naquele enclave, pelo acesso a mão de obra barata na época e proximidade do estaleiro a florestas de madeira de teca. Nome comum das Tectona grandis, árvores que atingem os 50 metros de altura e dão origem a uma madeira com leveza considerável em relação à sua durabilidade, características atrativas à construção naval. Embora de origem asiática, são descobertos vestígios pelos europeus em destroços nas ilhas do mar Egeu, sugerindo a sua utilização em barcos e navios desde a antiguidade.

Conta com uma história relativamente tranquila, nunca chegando a travar qualquer combate por não ter havido necessidade de recorrer a armamento durante os 33 anos de atividade, servindo de embarcação para transporte de mercadorias, passageiros, e ocasionalmente presos a despojar noutros territórios portugueses.  

Já inativo, aquando da segunda metade do século XX, Fernando II e Glória albergava uma “obra de assistência social [1], um projeto de habitação e recrutamento de crianças e jovens órfãos ou de famílias carenciadas. Um incêndio a 3 de abril de 1963 deflagrou a bordo, reduzindo a fragata a 13% da sua estrutura original. O rigor nos trabalhos de restauro nos mais recentes anos 90, com reconstituições históricas dos ambientes e quotidiano da vida a bordo nas viagens do século XIX, concede ao navio o prémio Maritime Heritage Award, distinguido pela instituição inglesa World Ship Trust em 1999. Podemos hoje comparar o design do navio veleiro aos modelos britânicos que surgiram em seguida naquele século, sugerindo uma possível inspiração por parte da armada Real britânica no desenho português.

A restauração da estrutura recuperou parte da madeira original, no espírito de preservação e conservação que o navio vindica, enquanto peça histórica e espaço museológico. O navio veleiro consta de quatro pisos: o convés, à superfície, por onde é feita a entrada a bordo e aos restantes espaços; a bateria; a coberta; e o porão. É ao descer das escadas estreitas para a bateria que nos deparamos com o primeiro manequim que habita a fragata. Amarrado pelo pescoço e pés, o “João Pedro” terá sido um marinheiro castigado pela libertação não autorizada de passageiros de bordo e pela resistência às autoridades que o questionaram.

Nos compartimentos pessoais do comandante observam-se uma coleção de bordados, cristais, porcelanas e pratas portugueses oferecidas por mecenas à data dos restauros da fragata entre 1980 e 1998, cujos nomes se encontram imortalizados no espaço. A este espaço de conservação juntam-se outros, como a botica onde seriam armazenadas ervas medicinais, mezinhas e remédios, e a messe de oficiais – salas que alojam peças de coleção e manequins modelo de figuras verídicas, em a entrada é limitada ao público e a sua observação é feita através das pequenas janelas presentes em cada porta. Os manequins presentes a bordo são trabalhos feitos a partir de registos históricos e documentais de caras de tripulantes, e de modelos vivos de antigo pessoal da marinha.



A bateria conta ainda com uma cozinha e rancho central, com reproduções de fogões e material da época, e, na sua proximidade, o curral, com transporte de animais vivos destinado ao consumo. A capacidade do curral portaria uma estimativa de 1000 galinhas e 100 porcos para as longas viagens aos principais destinos da armada – Angola, Moçambique e Índia.

O piso abaixo, a coberta, seria um espaço multifuncional, em metamorfose ao decorrer do dia. Serviria principalmente de refeitório nas horas diurnas e de espaço religioso para as rezas ao levantar das mesas no final do dia. Na hora do recolher, eram erguidas redes ao teto e o espaço transformar-se-ia em dormitório. Nesta mesma zona encontra-se um oratório a Nossa Senhora da Conceição, peça que data ao século XVII exposta tal como estaria à data das viagens do D. Fernando II e Glória, encastrada numa espécie de deambulatório de bordo. O piso é ainda casa à praça de armas do navio, com uma coleção de espingardas e sabres.

Por fim, o porão alberga a zona técnica e de carga do navio, servindo ao transporte de pólvora e outros materiais atinentes à artilheria e carpintaria. O espaço é habitado por manequins que posam em trabalhos dessas mesmas áreas e conta com um extenso número de outras figuras: um médico num espaço de enfermaria ambulante, decorado com os instrumentos utilizados nas intervenções cirúrgicas da época; uma família de civis num pequeno camarote improvisado durante viagens de transporte de passageiros; um grupo de homens num momento de descontração, a talhar pequenas embarcações em madeira.




As obras de restauro do  D. Fernando II e Glória e a sua abertura ao público são de um tal elevado valor histórico e cultural que insere o navio no conjunto dos espaços museológicos do concelho de Almada. A inserção de peças de coleção e das obras de escultura de manequins nas muitas divisões do veleiro concedem vida aos espaços e recontam a história do quotidiano da vida na marinha, criando uma experiência única incomparável, por exemplo, ao que seria a exposição desses objetos numa sala típica de museu de paredes brancas. Numa visita à fragata para o conhecer do espaço em si, as peças expostas – ou dispostas – contam para o realismo da experiência. Sem elas o navio parecer-nos-ia vazio e a experiência menos real. Da mesma forma, numa visita com objetivo de apreciar as peças e a arte a bordo, é o espaço por sua vez distingue e eleva a experiência.


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[1] (1963), "Diário de Lisboa", nº 14477, Ano 42, Quinta, 4 de Abril de 1963, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos. http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_15410

Figura 1. Vista do interior da messe de oficiais. Fotografia da autora.

Figura 2. Vista do interior da botica de bordo. Fotografia da autora.

Figura 3. Vista do camarote de alojamento de passageiros civis. Fotografia da autora.

Figura 4. Outra vista do camarote. Fotografia da autora.



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