segunda-feira, 24 de abril de 2023

À descoberta de António Vasconcelos Lapa

‘Viagens’ é o título da mais recente exposição do ceramista contemporâneo António Vasconcelos Lapa, presente no Museu Nacional do Azulejo até 30 de abril. O artista convida-nos a fazer uma viagem pelas suas obras, desde azulejos a esculturas desmontáveis, a máscaras que dão asas à nossa imaginação. A exposição contém 35 peças produzidas pelo artista a partir de 2001, ano em que o seu neto Vicente nasceu e o inspirou a ter uma abordagem mais lúdica e interativa ao seu trabalho.

António Vasconcelos Lapa, para aqueles que não o conhecem, é mais famoso pelas suas esculturas cerâmicas que aludem a mundos fantásticos. A sua longa carreira é uma demonstração da sua criatividade e a sua obra contém uma forte vertente narrativa e personagens diversos e coloridos. Ao longo dos anos produziu painéis de azulejos, tapeçarias e ilustrações, tendo exposto o seu trabalho tanto em Portugal como internacionalmente.

Esta exposição, de coordenação geral de Alexandre Nobre Pais, é uma jornada através das alegres experimentações do artista com a cerâmica e também uma peregrinação através do próprio museu, já que, além da sala de exposições temporárias, podemos encontrar as suas peças espalhadas pelo espaço do antigo convento.

Mangal (2022) e Figura Feminina (2021) de António Vasconcelos Lapa.

Ao seguir o percurso da coleção permanente somos de vez em quando surpreendidos pelas peças brincalhonas do artista, trazendo-nos um sorriso ao rosto no meio da castidade religiosa do espaço que as rodeia. De alguma maneira, parece que sempre pertenceram às salas onde se encontram, tal foi a delicadeza com que se escolheram as suas posições.

Frutos (2022) de António Vasconcelos Lapa.

Algo único no trabalho de Vasconcelos Lapa é que as suas peças, cheias de textura, cor, movimento e som foram feitas para serem tocadas e apreciadas com todos os nossos sentidos. O próprio artista disse, numa entrevista ao Museu Nacional do Azulejo sobre a presente exposição, que as suas obras têm como objetivo “pôr as pessoas a participar na brincadeira” (Museu do Azulejo, 2022), afirmando que gosta que as pessoas passem a mão nas peças, mesmo havendo o risco de se partirem.

É referido que a exposição tem dois momentos, o de inspiração vinda pelo nascimento do neto do artista e outro inspirado pela flora descoberta nas suas viagens pela Ásia. No entanto, as peças desses dois momentos estão misturadas, criando uma simbiose nas duas coleções. As plantas deslumbrantes complementam as personagens fantásticas de Vasconcelos Lapa, gerando um mundo onde tudo aparenta ser possível.

Vicente e o Dragão (2005) de António Vasconcelos Lapa.

No entanto, mesmo que essa informação esteja descrita no painel de introdução à exposição, não nos sentimos muito confortáveis para tocar nas peças divertidas do artista. Completado o percurso do museu, sentindo o peso de um silêncio próprio de um convento e caminhando pelas suas salas silenciosas, não nos é natural assumir o estado de espírito quase infantil que é necessário para apreciar as peças do artista como ele pretende que o sejam.

Mesmo aparentemente tendo autorização para tocar nas peças, não somos capazes de o fazer. O olhar inquisidor do segurança nunca se descolou de nós, dando-nos a impressão de estarmos na escola a ser observados por um professor que sabe que estamos prestes a fazer asneira. Assim, ficamos limitados a olhar para as cores vivas das peças e a imaginar como seria sentir a sua textura nas mãos.

Plantas e Frutos (2020) de António Vasconcelos Lapa.

O trabalho de António Vasconcelos Lapa é algo que solta a imaginação e que nos faz sentir como se fôssemos crianças novamente, trazendo-nos memórias nostálgicas à superfície e inspirando histórias nas nossas cabeças. No entanto, o ambiente religioso do Museu do Azulejo não é propício para essa exploração dos sentidos ou para essas ‘viagens’ através do imaginário do artista.

No entanto, esse mesmo contraste adiciona uma camada suplementar ao seu trabalho, pois podemos apreciar melhor as suas formas criativas e texturas variadas, mesmo que de maneira mais controlada e ordenada. O contraste de tom faz-nos apreciar o quanto algo feito com uma qualidade inocente, inventiva e guiada pelo gosto de ir à descoberta de mundos novos nos pode inspirar.

Lagarto-sapo (2014) de António Vasconcelos Lapa.

Vale a pena visitar a exposição, principalmente se ainda não conhecem a obra deste grande artista português, mesmo que não a possam experimentar no seu potencial máximo. Sugerimos que sigam o percurso do museu para poderem ser surpreendidos pela fantasia do artista, mas, como refere a descrição da exposição, “Nesta exposição não há um percurso, há uma descoberta”.

 

Exposição: ‘Viagens’ de António Vasconcelos Lapa

Datas: 17 novembro 2022 - 30 abril 2023

Local: Museu Nacional do Azulejo

Morada: Rua Madre Deus 4, 1900-312 Lisboa

Horário: terça a domingo 10h-13h (última entrada 12h30), 14h-18h (última entrada 17h30)

Custo: Normal – €5 / Estudante ou Sénior – €2,50 / Criança (até 12) - gratuito

 

Fontes:

Museu Nacional do Azulejo. (2022, December 27). Entrevista a António Vasconcelos Lapa [Video]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=s72c3hjSDS4

 

 

 

Animação da Terra do Sol Nascente - A Expressão 何それ

 

De 15 a 26 de março de 2023, decorreu a 22º edição do Festival de Animação de Lisboa, também conhecido como Festival Monstra. Esta edição celebra os 100 anos da primeira animação portuguesa, O Pesadelo do António Maria, de Joaquim Guerreiro, estreado a 25 de janeiro de 1923. Como é habitual, este festival reúne longas e curtas-metragens do mundo da animação, escolhendo todos os anos um país específico para homenagear, sendo este ano o Japão. Para além disto, para um público mais jovem, foram demonstradas as primeiras curtas da Disney, na Cinemateca Júnior, em comemoração dos estúdios centenários por de trás dos clássicos.

O Festival espalhou os filmes por toda a área metropolitana de Lisboa, organizando sessões em vários espaços como o Cinema São Jorge, o Centro de Artes de Sines, o Museu da Etnologia, o Museu do Oriente, entre outros. Falta ainda destacar, o ovo de ouro desta edição, o galardoado Ice Merchants, de João Gonzalez, que ganhou o grande prémio Monstrinha Inatel, no valor de 1000 €. Numa edição dedicada ao Japão, destaca-se a sessão das 17h, do dia 19 de março, onde decorreu no museu do Oriente a demonstração de 8 filmes de animadores japoneses. Esta sessão compõe 3 filmes de Atsushi Wada e outros 5 filmes da chamada Nova Geração.




Atsushi Wada, nasceu em 1980 e estudou na Tokyo University of the Arts. Começou a produzir filmes de animação em 2002, e tem encontrado apreciação moderada a nível internacional, ganhando mesmo o prémio Urso de Prata, no Festival Internacional de Cinema de Berlim graças à sua obra “The Great Rabbit”, também em exposição nesta edição do Monstra. As suas obras são representadas com finos desenhos a lápis, com leves tons de cor, num tom minimalista e simplista, de formas básicas e arredondadas, com subtis e discretos movimentos, onde a fluidez é chave.

Numa edição dedicada ao Japão, será indispensável realçar 2 obras específicas, por explorarem de formas distintas a expressão nipónica 何それ, “nani sore” – em português, “o que é isto?”. Estas duas obras, obrigam o observador a questionar-se sobre o que acabou de ver, pairando uma interjeição de dúvida sobre o público. Num mundo onde tudo parece explicado, onde toda a informação está disponível à distância de um click, é deveras relevante debater sobre as qualidades daquilo que não esclarece, do dúbio e incerto. Assim, este espaço será usado para incidir nas curtas “Small People with Hats” de Sarina Nihei e “In the Big Yard Inside the Teeny-Weeny Pocket” de Yuki Yoko.

Sarina Nihei, é uma ilustradora e freelancer japonesa, que cria e dirige filmes de animação. O seu estilo de animação, caracteriza-se pela expressão do desenho à mão, pela exploração do surreal e por uma essência estónia, esta pela qual desenvolveu um amor particular, enquanto estudava na Tama Art University, em Tóquio. As suas obras animadas, têm sido reconhecidas por todo o mundo, valendo-lhe cerca de 10 prémios e 36 mostras diferentes, frisando que em 2016 ganhou o “Best Post-Graduation Film” nos British Animation Awards.

A curta de Sarina Nihei, Small People with Hats, de 2014, criada como prova final da sua formação no Royal College of Art, em Londres, mostra, em cerca de 7 minutos, uma sociedade dividida em dois grupos distintos: os homens comuns e os pequenos homens com chapéu. Os homens de chapéu, são vistos como descartáveis, como objetos, ou até mesmo lixo. Quando um dos homens de chapéu é esmagado, por um homem comum e morre, surge um camião do lixo, que vem recolher o corpo. Após esta primeira cena, ficamos a conhecer uma sala de reuniões, onde homens de fato decidem, com um dado, qual a maneira pela qual o homem de chapéu morre, numa total desvalorização pela morte, num tom de brutalidade mordaz. Esta e outras cenas no decorrer do filme, revelam um conto alegórico, bizarro e violento, que espelha a sociedade real em que cada um vive, onde a segregação é um problema real, ao qual os segregados não conseguem escapar, sem a ajuda de alguém fora desse infortúnio. As personagens dos homens comuns, têm noção completa desta realidade distópica, porém tudo isto é banal, por isso não é vista de forma depreciativa, nem é escrutinada a fim de a mudar, é somente um dia normal.








O mundo nesta animação, é desenhado e pintado à mão e as personagens não têm falas, apesar de existirem diversos efeitos sonoros simples, que materializam as onomatopeias ou ruídos daquilo que se passa, retratando uma sociedade absurda e disfuncional, de uma forma peculiar, limpa e subtil. É assustador e inquietante, pensar que este pode ser um retrato do agravamento do mundo real atual, ou um espelho do que já foi, no mundo da escravidão negra. Uma animação com um conceito complexo, embora transmitido de forma simples, clara e cativante. Encaixa-se perfeitamente no género de comédia negra – uma animação de escárnio e mal dizer –, por retratar jocosamente um dos piores aspetos da nossa realidade. Porque é que um homenzinho com chapéu acabou de ser morto por outro que caía de um prédio? O decifrar do incomum, na procura pela peça num puzzle animado, tentando concluir exatamente tudo aquilo que a imagem transmite.

A expressão 何それ aqui é simples, tem um fio condutor, mas ainda permite perguntar “o quê?”, visto que a ação contém elementos que dificilmente são explicados. Trata-se de uma obra consciente, retratada de uma forma satírica, com imensa violência e mistério. A frieza e crueldade desta curta é nivelada pelo ar inocente das personagens, algo que é inconscientemente provocante e convidativo, obrigando a permanecer atento à animação. Todavia, a obra seguinte, leva esta noção a um nível extremo. De seguida, as palavras não fazem justiça à narrativa – se é que esta existe – pois a curta contém uma essência extravagante que não se transpõe para texto, deixando o observador sem resposta áquilo que viu.

Yuki Yoko, nasceu em 1987, é ilustradora, animadora e diretora de filmes e vídeos de música. Em outubro de 2019, partiu para a Dinamarca num programa de residências artísticas. Por não falar a língua local, nem inglês, Yuki, utilizou muito o seu diário gráfico para desenhar, apontar emoções e pensamentos, de modo a anotar memórias de uma altura que caracterizou como particularmente enriquecedora e especialmente estimulante. Mais tarde, as fotografias e desenhos do seu caderno foram transformados na animação seguinte.

In the Big Yard Inside the Teeny-Weeny Pocket, de Yuki Yoko, foi lançado em 2022 no Japão. Em 6 minutos, o observador é colocado no meio de centenas de explosões, expansões e diminuições, é colocado a flutuar e a afundar, onde algo se separa e outro tanto conecta-se. Através de desenhos a lápis de cor e lápis de cera, de uma expressão infantil e fugaz, a ação é desconcertante, esotérica, confusa, mas visualmente estimulante, constantemente a brilhar, mexer, com figuras cheias de cores, em algo que vive num mundo quase psicadélico, como se as figuras estivessem num parque de diversões para crianças, sob o efeito de estupefacientes, criando fractais daquilo que agora é uma realidade policromática. Para elevar estas sensações a outro patamar, a trilha sonora é igualmente complexa, ondulante e vibrante, abordando vários géneros como drum & bass, rock, psych, noise, metal e até 8-bit, flutuando por entre variações de melodias e sensações divergentes, onde vozes cantam, gritam e gemem, transmitindo algum desconforto num intenso desconcerto. Há também vozes que narram dizeres japoneses obscuros, que dificultam a compreensão do filme. A dissonância auditiva casada com a euforia visual, vão contando pequenos episódios, onde não é possível decifrar, se existe uma narrativa, pois não é claro em nenhum momento – apesar de existirem cenas com personagens iguais, estas não parecem seguir um rumo.









Tudo isto contribui para uma experiência que tanto é supérflua como carismática, pois parece demais, mas é essa abundância de elementos que tem este efeito magnético no olhar. Como última curta, da mostra deste dia, o público abandonou a sala com um olhar vazio, mas com uma cabeça cheia de dúvidas – o que é que acabei de ver; o que foi isto; o quê; han? Apesar de chamativo, em contraposto está o seu aspeto sem orientação, excessivamente frenético e a falta de um aviso para pessoas com fotossensibilidade. É tanto, que permite perder-se no todo, passando assim a ser menos, do grande que é.

Estas duas curtas aqui apreciadas, exploram satisfatoriamente o conceito abstrato da dúvida, da sensação de desconhecimento em busca de esclarecimento. A falta de informação ou o excesso desta sem nexo, carece de clareza e assim induz num estado de cativo desconfortável, onde o observador tenta ao máximo decifrar aquilo que viu e sentiu. Quando existe uma barreira de linguagem e aquilo que é digerido é assim tão complexo, considera-se que é ainda mais estimulante, embora isso não significa que interesse necessariamente. O observador pode perder interesse assim que acaba a experiência por ser “demasiado estranho e conceptual”, mas sem dúvida, que estas obras prendem os olhos à tela enquanto estão em movimento. São duas obras destinadas a quem gosta de filmes independentes de animação, de estilos incomuns, numa narrativa ambígua, que não dá a mão ao observador, deixando espaço para se equivocar e criar as suas próprias ideias sobre aquilo que acabou de ver.


-------------------------------------------------------------------------------------


Nihei S.(2014), Small People with Hats

https://www.youtube.com/watch?v=eoDEvnT0D9k 


Yoko Y.(2022), In the Big Yard Inside the Teeny-Weeny Pocket

https://www.youtube.com/watch?v=uJ594ndih4U&list=PL547TQbdoWArCNlK71s1AFcYy5vph34oK&index=2 

 

sexta-feira, 7 de abril de 2023

De Cabeça Para Baixo | Inclinando O Pensamento

Georg Baselitz, Blonde ohne Stahlhelm-Otto D.,
1987, Óleo sobre tela, 198,5 x 154 cm. Pormenor
Crédito: Maria David


Exposição Temporária: Dos Pés à Cabeça
Inauguração: 25 jun 2022-16h

Período
De 25 de junho de 2022 a 9 de abril de 2023
De terça a domingo
10:00 às 19:00 (última entrada às 18:30)
Encerra à segunda-feira
Gratuito no primeiro domingo de cada mês.

Curadoria: Cristina Gameiro 

Morada
CCB, Antigo Museu Coleção Berardo, Piso -1
Praça do Império
1449-003 Lisboa, Portugal


Crédito: Maria David

Dos Pés à Cabeça


Encontra-se, no antigo Museu Berardo, no Centro Cultural de Belém em Lisboa, até 9 de abril, a exposição temporária, Dos Pés à Cabeça, com curadoria de Cristina Gameiro. A exposição foi pensada especialmente para o público infantil (desde a primeira infância ao 2.º Ciclo) e visa dar a conhecer o modo como os artistas modernos e contemporâneos observam, pensam, apresentam e representam o corpo humano.

O interesse pelo corpo e pela sua representação tem sido partilhado ao longo dos séculos pelas crianças e pelos artistas e tem sido para ambos uma forte fonte de inspiração. A importância da representação da figura humana ao longo da história da arte, e também a curiosidade que suscita nas crianças, são o mote para o desenvolvimento desta experiência. Esta exposição promove um diálogo entre vários artistas que refletem e representam o corpo, através de suportes e técnicas diferentes e convidam o público a desenvolver novos movimentos de pensamento e também a sentir o corpo enquanto obra de arte.

Constituída por obras da Coleção Berardo, a exposição inclui artistas como Henri Michaux, Jean Dubuffet, Caetano Dias, Peter Blake, Fernando Lemos, Ângelo de Sousa, Helena Almeida, Georg Baselitz, Keith Haring, Ana Mendieta e Álvaro Lapa, entre outros.

A exposição desenvolve-se em oito galerias que nos apresentam estrategicamente as obras/experiências, respeitando a estatura do público a que se destina e suscitando num jogo alternado a aproximação, o afastamento, a observação, o toque, a imaginação, o pensamento, o jogo físico, o jogo simbólico ou a inventividade.

Para facilitar a compreensão da representação do corpo ao longo da história, somos recebidos na primeira galeria por uma linha do tempo que nos permite viajar desde a pré-história, com as primeiras representações do corpo humano até ao século XXI, com paragens pela arte egípcia, grega, romana, medieval, renascentista e moderna.

Somos confrontados pela influência do desenho infantil no traço de muitos artistas do século XX, encontramos exemplo disso na obra de Jean Dubuffet Paysage aux Arbustes (1949) Óleo sobre tela.

Jean Dubuffet incorpora também às artes o termo assemblage para a exposição The Art of Assemblage, no Museu de Arte Moderna- MOMA- de Nova York em 1961.

O espaço da exposição acolhe as obras umas vezes em tons neutros , noutras como que num brincar de azuis, favorecendo a experiência de fruição. Ao fundo, passando pelo corredor encontramos a obra Fargo, Blue, de James Turrell, totalmente imersiva, preenchendo todo o espaço da última galeria e transportando-nos para uma experiência de espaço e de luz, que altera a nossa forma de estar e a perceção que temos do corpo. É como mergulhar no azul e senti-lo no corpo todo. Aqui fazemos parte da obra de arte e somos recordados de que temos um papel ativo no museu.

As obras incluem pintura, instalação, fotografia, vídeo e, no final, na última sala, há lugar para que cada um faça também parte desta exposição. Por fim, as crianças podem recriar as obras que viram, ou inventar performances ou servir de modelo a um espelho.

Sente-se no espaço um jogo tranquilo de luz e sombra que favorece as experiências e destaca as obras.

O layout da exposição e a folha de sala foram elaborados tendo em conta o público a que se destinam.


James Turrell, Fargo, Blue, 1967, Projeção de luz azul sobre parede

Crédito: Maria David

Inclinando o Nosso Pensamento


Georg Baselitz, Blonde ohne Stahlhelm-Otto D., 1987,
 Óleo sobre tela, 198,5 x 154 cm.
Crédito: José Manuel Costa Alves

A obra de Georg Baselitz Blonde ohne Stahlhelm-Otto D. convida-nos a entrar. Mas antes, a um olhar demorado, e a fazer vários movimentos de cabeça, inclinando também o nosso pensamento como que se nos suscitasse uma fuga ao convencional. Observo demoradamente esta obra e posso fazer um paralelo com a necessidade de experimentar outros ângulos de observação, em educação de infância, partindo talvez de premissas culturais e artísticas contemporâneas, empoderando as práticas educativas com novos ensaios e olhando também para o que está no “avesso das Imagens”.

O pintor e escultor alemão Georg Baselitz, decidiu num certo dia de 1969, procurando escapar ao conceitualismo, passar a pôr de pernas para o ar as figuras de suas telas. Desde então, as suas obras têm formado uma sucessão de imagens invertidas de dimensões cada vez maiores e de definição inversamente proporcional. Este ato de derrubar as convenções da configuração representacional assinalou uma nova fase da sua experimentação. Olho para a escolha deste artista radical do neo-expressionismo alemão, como que sentindo uma promessa de rutura, de novos olhares e de novos ensaios.

Está patente ao longo da exposição um sentido de movimento, trazido por novas descobertas e avanços técnicos e materiais que vão permitindo alterar a representação da figura humana ao longo do tempo. A chegada da fotografia, vem acrescentar à pintura e à escultura outra forma de guardar a imagem de alguém.

Na galeria 4, espaço para olhar, ver e ouvir encontra-se uma obra de vídeo de Caetano Dias, Sonho de Criança, o artista apresenta-nos uma forma crítica de ver o mundo, a partir do corpo de uma criança, balançando um arco. O som delicado da caixinha de música embala-nos, mas também nos desassossega quando o plano da câmara desce e observamos a realidade dura a sua volta.

A descoberta de diversas formas de representação leva o público a entender a arte como algo único e tão especial por conter a expressão singular e própria de quem a produz.

A exposição permite ir ao encontro de conceitos fundamentais no desenvolvimento da cidadania ativa como: individualidade; igualdade de género; liberdade; identidade; cidadania; democracia.

A fotografia de Nan Goldin, por exemplo, lembra-nos que não somos todos iguais mas queremos todos ter a liberdade de sermos como somos.

No avesso das imagens: Ensaiar Modos de Ver


Keith Haring, Untitled (Head through Belly), 1987 - 1989
Crédito: Maria David

A exposição Dos Pés à Cabeça representa um contributo importante para desmistificar a arte moderna e contemporânea por parte das crianças. Poderá ser entendida como um exemplo de aproximação à infância a partir de premissas culturais e artísticas contemporâneas, um lugar de ensaio, de imaginação e de experiência.

Para dar suporte à minha narrativa e focando-me no conceito de experiência, convoco Dewey (2008), que na sua obra “A arte como experiência”, o autor considera que compreender a arte enquanto experiência, significa entender que a arte não se pode separar da vida. Para o autor, a experiência artística é uma experiência estética. Considera que as artes devem constituir a parte central do currículo da criança, e que a criança deve “aprender fazendo”. Assinala a importância de conhecer os interesses das crianças, para que a partir delas se suscitem novas experiências. O interesse pela representação da figura humana parece ser uma vantagem para a motivação das crianças.

A exposição parte das artes visuais, por forma a alargar as experiências de aproximação, de observação, de exploração e de fruição de obras de arte.

O contacto com diferentes modalidades expressivas (pintura, escultura, fotografia, vídeo, etc) em contexto de museu favorece para além do experimentar executar e criar a oportunidade de apreciar e de dialogar sobre o que se observa. A exploração de diferentes imagens facilitará a descoberta da importância e expressividade dos elementos formais da comunicação visual. A observação e diálogo sobre elementos expressivos da comunicação visual como a cor, e texturas, as formas geométricas, as linhas, as tonalidades, a figura humana, entre outros criará na criança o desejo de querer ver mais e potencia a relação entre as suas vivências e novos conhecimentos. e leva a criança a descrever, e pensar sobre o que vê. Acredito que falar sobre imagens e ensaiar modos de ver imagens, enriquece o imaginário e desenvolve a sensibilidade estética, potencia a expressividade da criança, e ainda facilita à criança a inserção na cultura do mundo a que pertence.

Situando esta exposição no campo das chamadas pedagogias culturais, aquelas que se destacam do ensino formal importa referir também o papel da pedagogia crítica e do educador enquanto facilitador, e o interesse que teria a maior proximidade deste contexto com os contextos formais de modo a que a escola pudesse integrar nos seus currículos mais arte contemporânea, mais experimentação, logo mais pensamento crítico e mais referências culturais que desenvolvessem mais imaginação e novos movimentos de pensamento.

Quero terminar convocando Helena Almeida que pela sua obra Estudo para Dois Espaços (1977) sugere, com os seus dedos a ideia de travessia entre dois espaços. Entre cá e lá , a fronteira parece desafiadora. Não poderá a escola olhar também para o que está “ no avesso das imagens” esbatendo a fronteira?

A exposição estará aberta ao público até dia 9 de abril.

Folha de sala:

Referências

Dewey, J. (2008). El arte como experiencia. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, S. A.

terça-feira, 4 de abril de 2023

Histórias Enraizadas

O trabalho do artista suíço Uriel Orlow apresentou-se-nos com Histórias Enraizadas, exposição multimédia que esteve patente na galeria principal da Casa da Cerca, em Almada até ao passado dia 5 de março.

Uriel Orlow é artista e escritor, a trabalhar entre Lisboa, Londres e Zurique. Graduado em 2002 com um Doutoramento em Belas Artes pela University of Arts London, Orlow é também professor, tendo lecionado em várias Universidades londrinas e é atualmente docente na Universidade de Westminster e na Suíça na Zurich University of the Arts.

A sua obra já esteve presente em espaços um pouco por todo o mundo, em museus como o Tate em Londres, mas também em festivais de filme e galerias na Cidade do México, Vancouver, no Cairo, Singapura e Melbourne. Destacam-se as mais recentes mostras do seu trabalho a solo em Bruxelas, Atenas, Mainz, Florença e a mais recente em Almada. Em Portugal, o seu trabalho também já esteve presente em Lisboa no MAAT, na Galeria Quadrum e nas Carpintarias de São Lázaro.

Histórias Enraizadas, com curadoria de Filipa Oliveira, compilou sobretudo registos fotográficos e em vídeo, de caracter documental, reunidos in situ e mostrando várias espécies e intervenções humanas que as rodeiam. Encontrávamos as obras dispostas por toda a galeria do Centro de Arte Contemporânea, numa multiplicidade de formatos. Desde impressões fotográficas [Piz Linard (1835-2011), 2021], reproduções multimédia em ecrã e projeções de grande escala dos vídeos da série Up, Up, Up (2021), trabalhos de serigrafia e corte de madeiras [Forest Essentials Take Two (Sobreiro), 2022] e ainda uma série de desenhos.

Atuando numa vertente multimédia, o seu trabalho consiste sobretudo em vídeo e instalação, obras que pretendem constar em locais escolhidos a dedo e criar a partir deles ambientes dinâmicos e narrativas que interligam o Homem às plantas. Desta forma se encontravam expostas, na extensão do Centro de Arte Contemporânea. A sala longa da galeria principal possui um conjunto de janelas que costumam ser a fonte de luz primária e natural encontravam-se fechadas para acomodar a visibilidade das obras multimédia (figura 1). As projeções de vídeo eram feitas diretamente nas paredes da galeria, a um canto, rendendo uma área considerável como inutilizável quando grupos maiores se reuniam naquela zona – é esperado do espetador que visualize dois vídeos, um em cada parede, em sintonia, tendo de se posicionar virado a ambos de forma que isso seja possível, mas sem ocultar nenhum a um outro visitante.



Nessa lógica, um outro conjunto de obras em vídeo da série Dedication (2021) permita por sua vez uma fácil visualização de cada um dos ecrãs, espaçados entre si, bem como o caminhar entre eles. A série trata fungos e os seus sistemas enraizados, subterrâneos e longo da mão humana, e é acompanhada por escultura que se assemelha a essas raízes. Nesta mostra em Almada, a escultura foi montada nas ripas do teto de madeira da galeria (figura 2).



Questiono a intencionalidade e significância da disposição das obras na sua generalidade, talvez demasiado aliviada – o que não deixa de ser um ponto extra para a facilidade de deslocação – ao custo de certas zonas se tornarem um pouco desguarnecidas – preferindo a utilização da totalidade dos espaços da galeria com um número reduzido de peças.

O meu primeiro contacto com o trabalho de Orlow foi na cidade de Aberdeen, na Escócia, quando uma porção da sua videografia esteve presente na nona edição do British Art Show, acompanhada nas várias salas por diversas outras obras. Com curadoria de Hammad Nasar e Irene Aristizábal, o BAS9 reuniu um conjunto de 47 artistas na Aberdeen Art Gallery durante o verão de 2021, numa mostra focada em questões políticas, sociais e ambientais e soluções centradas nos temas “Healing, Care and Reparative History, Tactics for Togetherness, Imagining New Futures”.

Orlow demonstra um forte interesse por botânica e pelos temas do aquecimento global e extinção da flora enquanto produtos do posicionamento superlativo da humanidade face à natureza, e do papel ativo das plantas na História, com especial foco às dicotomias entre colónias e povos colonizadores. O artista descreve um dos objetivos do seu trabalho como procurar “mostrar as plantas enquanto atrizes na política e na história” [1].

O processo de trabalho de Uriel Orlow é interdisciplinar, fundindo a arte com a biologia, etnografia, história  e política, assentando-se numa metodologia de pesquisa seguida e orientada para a prática. O artista explora casos histórico-práticos associados a localidades e plantas específicas e captura a sua essência com meios estáticos ou em movimento, pintando a narrativa associada a elas associada e manifestando através destas questões relacionadas com os conflitos humanos.



Numa das vídeo-instalações apresentadas também durante o BAS9, Learning From Artemisia (2019), Orlow explora o caso específico da erva medicinal Artemisia afra, originária da Républica Democrática do Congo e altamente eficaz contra a malária na sua forma natural ou sob forma de infusão. A instalação compila em vídeo registos da plantação da erva, da realização de um mural e de um concerto pela população local em ode à Artemísia. A cooperativa do Lumbumbashi responsável pela plantação de Artemísia prova continuamente o sucesso das suas infusões no tratamento da população contra  doença que afeta grande parte da Africa central, mas a mesma é descartada pela Organização Mundial de Saúde, após estudos sob a extração das substâncias de uma outra variante da planta a terem demonstrado ineficaz dada a rápida resistência humana face à medicação criada a partir de ditos extratos. Dada a proibição da sua utilização na Europa e interrupção da pesquisa cientfica associada à espécie, a pequena cooperativa feminina de Lumata, Lumbumbashi, continua a sua produção restrita à população próxima, sem poder explorar os benefícios da relação com os “grandes” sistemas de saúde globais [2]. O caso da Artemisia afra remonta aos muitos casos de exploração de territórios de colónias e ex-colónias para a extração de recursos, com uma certa ignorância pelas práticas locais. Orlow explora esse confronto entre mentalidades e sistemas de conhecimento europeus e indígenas numa variedade dos seus trabalhos.

No caso português, Uriel Orlow inspirou-se no acervo da Xiloteca do Palácio da Calheta, no Jardim Botânico Tropical de Lisboa, que reúne uma coleção de cerca de dez mil amostras de madeiras colhidas das antigas colónias portuguesas, algumas de espécies em extinção, de elevado valor cultural e científico. Orlow trata os temas da interferência do poder português nos sistemas locais das ex-colónias e na fauna destas natural, explorada sobretudo para a construção de barcos, e da desflorestação da ilha da Madeira por parte dos exploradores vindos do continente entre os séculos XV e XVI. O eventual tráfico de escravos das colónias africanas para trabalhos na obtenção de madeira de construção e na plantação e extração de açúcar de cana levou ao rápido declínio nos materiais e à quase-extinção de espécies pelos anos 1520. Alguns trabalhos de serigrafia usando exemplares madeiras relatam as histórias por detrás do papel de espécies como Daniellia oliveri, originária da Guiné-Bissau e presentes no acervo da Xiloteca, constavam entre as obras mostradas em Histórias Enraizadas (figura 4).



A relevância da presença da obra de Orlow e de outras exposições deste género é justificada pelo contexto da história recente no que diz respeito à relação humana com o planeta e entre si mesmos, e salientada pela posição de Almada e dos seus cidadãos face a assuntos dessa natureza. Almada cidade e Almada concelho vêm de há longa data a apresentar-se como zonas de abertura às várias comunidades e da mesma forma a incentivar ao contacto da população com a natureza, proporcionando eventos recreativos, culturais, políticos e artísticos em espaços verdes, apelando à sua educada utilização, preservação e conservação.

Mostras e atividades com esta ideologia na área das artes são recorrentes e frequentes nos mais diferentes espaços da cidade. Neste 1 de abril deu-se a mais recente edição do MUDA (Mercado Urbano de Almada), junto ao farol no largo de Cacilhas, contando com um extenso número de artistas emergentes e independentes, muitos com ligações à temática. Promovidos pelo Programa da CMA Março à Solta, durante todo o mês ocorreram inúmeros outros eventos desta natureza, de participação gratuita, no Parque da Paz, no Almada Green Market, na Mata dos Medos, no Ponto de Encontro, no Complexo Municipal do Feijó e na Casa da Cerca , para nomear alguns dos espaços.



Igualmente, Histórias Enraizadas, juntamente com outras três (Aprendemos Juntos com a Câmara a Desenhar dos Serviços Educativos da Casa da Cerca, A Vigília das Feras de Tamara Alves, e não me peça que lhe de pormenores de Ana Vidigal), fizeram parte da mesma temporada que contou com uma primeira mostra a 5 de novembro de 2022, na presença e com discurso de Uriel Orlow e da presidente da câmara Inês de Medeiros na sua inauguração.

A exposição esteve patente durante as celebrações dos 20 anos da inauguração d’O Chão das Artes – Jardim Botânico, parte integral da Casa da Cerca. Enquanto centro de arte com uma relação intrínseca ao natural – situado na zona ribeirinha, “Almada velha”, que igualmente procura renovação e conservação – com um jardim botânico e um espaço recreativo aberto, foi o espaço adequado para receber esta exposição, por sua vez necessária para continuar a sementar o erro humano face à natureza, incutir ao discurso do planeta, aos sinais que nos enviam e incentivar a instituição imediata de soluções.


[1] Orlow, U. (2022) em discurso na conversa ecooperations, documenta Institut. UK14, Kassel. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jm5izPbdQ-Y. [02:30];

[2] Como consta na documentação que acompanha a peça Learning From Artemisia (2019);

---

Figura 1. Up, Up, Up. Vídeo-instalação HD. 9'32'', 2021.

Figura 2. Dedication. Vídeo-instalação HD em 5 ecrãs. 3'21'', 2021.

Figura 3. Dedication (still).

Figura 4. Forest Essentials Take Two (Sobreiro). Serigrafia sobre madeira, 42 x 66cm, 2022

Figura 5. Casa da Cerca (entrada). Almada, Setúbal.

sábado, 1 de abril de 2023

Em torno do natural : a Terra enquanto Arte


De 23 de março a 11 de junho de 2023, será possível explorar “Mater”, uma exposição coletiva, que recolhe o trabalho de três artistas, Maja Escher, Marta Castelo e Virgínia Fróis, no Pavilhão Branco, das Galerias Municipais de Lisboa. Conta com a curadoria de João Rolaça e as Oficinas do Convento, sediadas em Montemor-o-Novo, sendo estas um elo comum entre estas artistas, que partilham os princípios desta associação.

Mater, do latim mãe e matéria, convida a observar arte enquanto pedaço da Terra, conectando a obra humana à mutabilidade do mundo, tanto no sentido físico quanto poético. Podem ser observadas 15 obras inéditas, construídas a partir de matérias naturais recolhidas pelas próprias artistas – terras, barros, pedras, plantas, galhos e água – num ambiente de White-box, para o qual as obras foram especificamente elaboradas. O doce fruto destas artistas, cresce num bloco consciente de barro, realçando a importância da água e da terra, do território e da vida, enfatizando a relação do homem com a Natureza.

Virgínia Fróis (1954), ex-docente de cerâmica e escultura, da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, mantém uma obra profundamente vinculada ao barro e à sua natureza, as suas qualidades e aos locais de onde este é proveniente. Fundou a Associação Cultural de Arte e Comunicação, Oficinas do Convento, em Montemor-o-Novo, em 1996, coordenando atividades artísticas no Projeto do Telheiro e também em Cabo Verde, no âmbito da etnocerâmica, no Centro de Artes e Ofícios de Trás di Munti, entre 2006 e 2014.

Marta Castelo (1980), atual docente de cerâmica, na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, começou por realizar residências artísticas na área da escultura e cerâmica, nas Oficinas do Convento em 2006, tendo trabalhado em diversas instâncias como assistente de Virgínia Frois. A sua obra foca-se regularmente no uso do barro em bloco, surgindo diversas vezes instalações com tijolos alaranjados, que erguem espaços ou construções que aludem à ideia de carreiros e paredes, como por exemplo a sua instalação “Casa”, de 2018.

Maja Escher (1990), leciona atualmente na Escola Artística António Arroio e é licenciada em Audiovisuais, com mestrado em Arte Multimédia, na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (2014). Pertence ao coletivo EDA, promovendo práticas transdisciplinares de intervenção sociocultural, procurando sempre que possível, soluções ecologicamente sustentáveis. A sua prática artística está ligada à sua terra, o Alentejo, onde explora cerâmica no contexto da instalação, procurando a noção de abrigo, definindo um espaço que remonta à ideia de lar. Revela também um fascínio pelo colecionismo e ditados populares.

A exposição está distribuída por dois pisos - a entrada tem seis obras de Virgínia Fróis; Maja Escher tem somente obras no piso superior e Marta Castelo ocupa ambos os pisos, nas salas traseiras. A distribuição das peças, permite caminhar pela exposição sempre com uma obra à vista – quase não há espaço vazio, de deliberação. É particularmente árduo, apreciar uma peça sem poluição de outra que esteja perto, ou até de outros visitantes, que não têm espaço para caminhar, especialmente numa inauguração, onde se registou uma vasta adesão por parte do público lisboeta. Uma exposição sobre matéria, que evoca a mãe Natureza, deverá apresentar menos obras, ou procurar um espaço maior, talvez exterior, em comunhão com a terra, evitando este inundar de obras, num espaço branco e sintético, porém tendo em conta o espaço envolvente, um jardim verde lotado com exuberantes pavões, o espaço é adequado, quando não está ameaçado pelo público.

Ao entrar na exposição, defrontamo-nos com a obra “o chão que pisamos” de Virgínia Fróis: duas plantações, uma composta de pedaços de terreno secos, e outra com terrenos irrigados, através de um sistema gota a gota (ligado a um balde que se mantém suspenso acima da obra), onde brotam pequenas plantas. Esta obra evidencia um contraste tangível entre a vida e a morte, naquele que é o sistema mais complexo que rodeia o ser humano, a Natureza. Esta demonstração da vanitas no seu sentido mais orgânico, exemplifica o estado de transição e devir da terra, num gesto sensível e simbólico, evidenciado o seu lado frágil, do qual o homem tanto depende, incentivando o seu cuidado e valorização. Virgínia, convoca uma imagem dura, conhecida a todos, roubando a realidade agrícola e transpondo essa brutalidade para o espaço da arte, apelando à solidariedade, num gesto de empatia e em sintonia com a Terra.






Noutra sala, Marta Castelo, ergue a “escrita da cidade”, elevando pequenos muros, feitos de tijolos de barro, criando construções que se assemelham a chaminés de fornos, carreiros, pilares, escadas e também um tanque/reservatório. Trata-se de uma instalação ampla, expande-se por toda a sala, por onde os observadores podem caminhar, apreciando detalhes específicos que quebram a imagem repetitiva do tijolo, que relembra uma civilização ancestral. O ponto em destaque, é o singular reservatório, este caminho pluvial, que combina a matéria geométrica e a matéria orgânica - água fica retida no tanque de barro preto, que lentamente se desfaz, pois não foi chacotado. Esta cativante transição das matérias, é estimulante ao observador, que não está habituado a uma obra que parece estar a destruir-se, com a simples introdução da água neste pequeno espaço.  Num olhar afetivo, a obra marca a violenta interação do homem com a Natureza, uma alteração que permite remodelar os caminhos da água em prol da necessidade humana, realçando o papel da humanidade e a sua força construtiva, mas também destruidora, face à vulnerabilidade do natural.





No piso superior, Maja Escher, apresenta “submerso/percolação da água”, onde dispõe ao longo de uma parede cheia de janelas, diversos tecidos de algodão, de variadas dimensões, tangidos com as cores da terra e do barro, castanhos, vermelhos e ocres. Estes grandes panos, estão suspensos com a ajuda de galhos de eucalipto e de aveleira, juncos e cordas de algodão e linho. Alguns destes tecidos mostram linhas ondulantes, formas irregulares, frases repetidas e textos escritos, que conectam a obra à água, mais propriamente ao Rio Mira. Estas mensagens, pedem ao rio para continuar a correr, perguntando quantas vezes este dorme e encorajando para que este vá cheio. A disposição atípica e a extensa dimensão da obra/instalação, leva o observador a focar o olhar nas simples mensagens - as escrituras em forma de manifesto, revelam um breve e sensível protesto, que pretende evocar o papel fulcral da água para o território do Baixo Alentejo. O manchar de tecidos à mão, o ato de escrever e desenhar nos panos e as próprias mensagens, constroem uma dimensão primitiva, ritualista e profundamente ligada aos antepassados, onde o Homem tinha uma pegada muito menor na Natureza – o valor da vida, presente num ecossistema partilhado e respeitado.





Juntamente com o flyer da exposição, vem inscrito um QR Code, que permite o acesso a três áudios, cada um ditado por uma das artistas, sobre uma das suas obras, enriquecendo a dimensão da exposição, onde se destaca a canção de Maja Escher. “Quantas vezes dorme a água?”, encanta com um breve coro acapela, onde várias vozes femininas repetem o título da obra, de uma forma mística e solene, que remete para um mundo talássico, no qual as vibrações das vozes, transportam o ouvinte para debaixo de água, onde este adormece ao sabor da canção.

Com uma estética semelhante, obtida através da partilha dos mesmos materiais, três artistas, de gerações diferentes, mas com um amor comum, partilham um mesmo espaço para contar uma mesma estória, respeitando a história do local, da terra. Erguido à mão, com um gesto humano, moldado no frio e endurecido ao calor, é pela arte da cerâmica e das matérias da terra, que se valoriza a Terra. Com um largo conjunto de obras, é claro o valor dado à água, à matéria e ao território. Mater incide sensivelmente, no contexto da sustentabilidade, por realmente mostrar obras que são parte da terra, não caindo na estética conceptual e moderna, que usa plásticos ou outros materiais sintéticos que na verdade vão contra essa preocupação. É uma exposição sobre matéria, com um olhar terreno sobre obras terrosas, com uma grande dimensão simbólica e conceptual.


-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------


Áudios Mater

http://www.oficinasdoconvento.com/?p=18177


Maja Escher

https://www.artistas.ars-id.org/category/maja-escher/


Marta Castelo

http://marta-castelo.blogspot.com/


Mater

http://www.oficinasdoconvento.com/?p=18172


Virgínia Fróis

https://vicarte.org/virginia-frois/