sábado, 1 de abril de 2023

Em torno do natural : a Terra enquanto Arte


De 23 de março a 11 de junho de 2023, será possível explorar “Mater”, uma exposição coletiva, que recolhe o trabalho de três artistas, Maja Escher, Marta Castelo e Virgínia Fróis, no Pavilhão Branco, das Galerias Municipais de Lisboa. Conta com a curadoria de João Rolaça e as Oficinas do Convento, sediadas em Montemor-o-Novo, sendo estas um elo comum entre estas artistas, que partilham os princípios desta associação.

Mater, do latim mãe e matéria, convida a observar arte enquanto pedaço da Terra, conectando a obra humana à mutabilidade do mundo, tanto no sentido físico quanto poético. Podem ser observadas 15 obras inéditas, construídas a partir de matérias naturais recolhidas pelas próprias artistas – terras, barros, pedras, plantas, galhos e água – num ambiente de White-box, para o qual as obras foram especificamente elaboradas. O doce fruto destas artistas, cresce num bloco consciente de barro, realçando a importância da água e da terra, do território e da vida, enfatizando a relação do homem com a Natureza.

Virgínia Fróis (1954), ex-docente de cerâmica e escultura, da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, mantém uma obra profundamente vinculada ao barro e à sua natureza, as suas qualidades e aos locais de onde este é proveniente. Fundou a Associação Cultural de Arte e Comunicação, Oficinas do Convento, em Montemor-o-Novo, em 1996, coordenando atividades artísticas no Projeto do Telheiro e também em Cabo Verde, no âmbito da etnocerâmica, no Centro de Artes e Ofícios de Trás di Munti, entre 2006 e 2014.

Marta Castelo (1980), atual docente de cerâmica, na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, começou por realizar residências artísticas na área da escultura e cerâmica, nas Oficinas do Convento em 2006, tendo trabalhado em diversas instâncias como assistente de Virgínia Frois. A sua obra foca-se regularmente no uso do barro em bloco, surgindo diversas vezes instalações com tijolos alaranjados, que erguem espaços ou construções que aludem à ideia de carreiros e paredes, como por exemplo a sua instalação “Casa”, de 2018.

Maja Escher (1990), leciona atualmente na Escola Artística António Arroio e é licenciada em Audiovisuais, com mestrado em Arte Multimédia, na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (2014). Pertence ao coletivo EDA, promovendo práticas transdisciplinares de intervenção sociocultural, procurando sempre que possível, soluções ecologicamente sustentáveis. A sua prática artística está ligada à sua terra, o Alentejo, onde explora cerâmica no contexto da instalação, procurando a noção de abrigo, definindo um espaço que remonta à ideia de lar. Revela também um fascínio pelo colecionismo e ditados populares.

A exposição está distribuída por dois pisos - a entrada tem seis obras de Virgínia Fróis; Maja Escher tem somente obras no piso superior e Marta Castelo ocupa ambos os pisos, nas salas traseiras. A distribuição das peças, permite caminhar pela exposição sempre com uma obra à vista – quase não há espaço vazio, de deliberação. É particularmente árduo, apreciar uma peça sem poluição de outra que esteja perto, ou até de outros visitantes, que não têm espaço para caminhar, especialmente numa inauguração, onde se registou uma vasta adesão por parte do público lisboeta. Uma exposição sobre matéria, que evoca a mãe Natureza, deverá apresentar menos obras, ou procurar um espaço maior, talvez exterior, em comunhão com a terra, evitando este inundar de obras, num espaço branco e sintético, porém tendo em conta o espaço envolvente, um jardim verde lotado com exuberantes pavões, o espaço é adequado, quando não está ameaçado pelo público.

Ao entrar na exposição, defrontamo-nos com a obra “o chão que pisamos” de Virgínia Fróis: duas plantações, uma composta de pedaços de terreno secos, e outra com terrenos irrigados, através de um sistema gota a gota (ligado a um balde que se mantém suspenso acima da obra), onde brotam pequenas plantas. Esta obra evidencia um contraste tangível entre a vida e a morte, naquele que é o sistema mais complexo que rodeia o ser humano, a Natureza. Esta demonstração da vanitas no seu sentido mais orgânico, exemplifica o estado de transição e devir da terra, num gesto sensível e simbólico, evidenciado o seu lado frágil, do qual o homem tanto depende, incentivando o seu cuidado e valorização. Virgínia, convoca uma imagem dura, conhecida a todos, roubando a realidade agrícola e transpondo essa brutalidade para o espaço da arte, apelando à solidariedade, num gesto de empatia e em sintonia com a Terra.






Noutra sala, Marta Castelo, ergue a “escrita da cidade”, elevando pequenos muros, feitos de tijolos de barro, criando construções que se assemelham a chaminés de fornos, carreiros, pilares, escadas e também um tanque/reservatório. Trata-se de uma instalação ampla, expande-se por toda a sala, por onde os observadores podem caminhar, apreciando detalhes específicos que quebram a imagem repetitiva do tijolo, que relembra uma civilização ancestral. O ponto em destaque, é o singular reservatório, este caminho pluvial, que combina a matéria geométrica e a matéria orgânica - água fica retida no tanque de barro preto, que lentamente se desfaz, pois não foi chacotado. Esta cativante transição das matérias, é estimulante ao observador, que não está habituado a uma obra que parece estar a destruir-se, com a simples introdução da água neste pequeno espaço.  Num olhar afetivo, a obra marca a violenta interação do homem com a Natureza, uma alteração que permite remodelar os caminhos da água em prol da necessidade humana, realçando o papel da humanidade e a sua força construtiva, mas também destruidora, face à vulnerabilidade do natural.





No piso superior, Maja Escher, apresenta “submerso/percolação da água”, onde dispõe ao longo de uma parede cheia de janelas, diversos tecidos de algodão, de variadas dimensões, tangidos com as cores da terra e do barro, castanhos, vermelhos e ocres. Estes grandes panos, estão suspensos com a ajuda de galhos de eucalipto e de aveleira, juncos e cordas de algodão e linho. Alguns destes tecidos mostram linhas ondulantes, formas irregulares, frases repetidas e textos escritos, que conectam a obra à água, mais propriamente ao Rio Mira. Estas mensagens, pedem ao rio para continuar a correr, perguntando quantas vezes este dorme e encorajando para que este vá cheio. A disposição atípica e a extensa dimensão da obra/instalação, leva o observador a focar o olhar nas simples mensagens - as escrituras em forma de manifesto, revelam um breve e sensível protesto, que pretende evocar o papel fulcral da água para o território do Baixo Alentejo. O manchar de tecidos à mão, o ato de escrever e desenhar nos panos e as próprias mensagens, constroem uma dimensão primitiva, ritualista e profundamente ligada aos antepassados, onde o Homem tinha uma pegada muito menor na Natureza – o valor da vida, presente num ecossistema partilhado e respeitado.





Juntamente com o flyer da exposição, vem inscrito um QR Code, que permite o acesso a três áudios, cada um ditado por uma das artistas, sobre uma das suas obras, enriquecendo a dimensão da exposição, onde se destaca a canção de Maja Escher. “Quantas vezes dorme a água?”, encanta com um breve coro acapela, onde várias vozes femininas repetem o título da obra, de uma forma mística e solene, que remete para um mundo talássico, no qual as vibrações das vozes, transportam o ouvinte para debaixo de água, onde este adormece ao sabor da canção.

Com uma estética semelhante, obtida através da partilha dos mesmos materiais, três artistas, de gerações diferentes, mas com um amor comum, partilham um mesmo espaço para contar uma mesma estória, respeitando a história do local, da terra. Erguido à mão, com um gesto humano, moldado no frio e endurecido ao calor, é pela arte da cerâmica e das matérias da terra, que se valoriza a Terra. Com um largo conjunto de obras, é claro o valor dado à água, à matéria e ao território. Mater incide sensivelmente, no contexto da sustentabilidade, por realmente mostrar obras que são parte da terra, não caindo na estética conceptual e moderna, que usa plásticos ou outros materiais sintéticos que na verdade vão contra essa preocupação. É uma exposição sobre matéria, com um olhar terreno sobre obras terrosas, com uma grande dimensão simbólica e conceptual.


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Áudios Mater

http://www.oficinasdoconvento.com/?p=18177


Maja Escher

https://www.artistas.ars-id.org/category/maja-escher/


Marta Castelo

http://marta-castelo.blogspot.com/


Mater

http://www.oficinasdoconvento.com/?p=18172


Virgínia Fróis

https://vicarte.org/virginia-frois/


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