segunda-feira, 24 de abril de 2023

Animação da Terra do Sol Nascente - A Expressão 何それ

 

De 15 a 26 de março de 2023, decorreu a 22º edição do Festival de Animação de Lisboa, também conhecido como Festival Monstra. Esta edição celebra os 100 anos da primeira animação portuguesa, O Pesadelo do António Maria, de Joaquim Guerreiro, estreado a 25 de janeiro de 1923. Como é habitual, este festival reúne longas e curtas-metragens do mundo da animação, escolhendo todos os anos um país específico para homenagear, sendo este ano o Japão. Para além disto, para um público mais jovem, foram demonstradas as primeiras curtas da Disney, na Cinemateca Júnior, em comemoração dos estúdios centenários por de trás dos clássicos.

O Festival espalhou os filmes por toda a área metropolitana de Lisboa, organizando sessões em vários espaços como o Cinema São Jorge, o Centro de Artes de Sines, o Museu da Etnologia, o Museu do Oriente, entre outros. Falta ainda destacar, o ovo de ouro desta edição, o galardoado Ice Merchants, de João Gonzalez, que ganhou o grande prémio Monstrinha Inatel, no valor de 1000 €. Numa edição dedicada ao Japão, destaca-se a sessão das 17h, do dia 19 de março, onde decorreu no museu do Oriente a demonstração de 8 filmes de animadores japoneses. Esta sessão compõe 3 filmes de Atsushi Wada e outros 5 filmes da chamada Nova Geração.




Atsushi Wada, nasceu em 1980 e estudou na Tokyo University of the Arts. Começou a produzir filmes de animação em 2002, e tem encontrado apreciação moderada a nível internacional, ganhando mesmo o prémio Urso de Prata, no Festival Internacional de Cinema de Berlim graças à sua obra “The Great Rabbit”, também em exposição nesta edição do Monstra. As suas obras são representadas com finos desenhos a lápis, com leves tons de cor, num tom minimalista e simplista, de formas básicas e arredondadas, com subtis e discretos movimentos, onde a fluidez é chave.

Numa edição dedicada ao Japão, será indispensável realçar 2 obras específicas, por explorarem de formas distintas a expressão nipónica 何それ, “nani sore” – em português, “o que é isto?”. Estas duas obras, obrigam o observador a questionar-se sobre o que acabou de ver, pairando uma interjeição de dúvida sobre o público. Num mundo onde tudo parece explicado, onde toda a informação está disponível à distância de um click, é deveras relevante debater sobre as qualidades daquilo que não esclarece, do dúbio e incerto. Assim, este espaço será usado para incidir nas curtas “Small People with Hats” de Sarina Nihei e “In the Big Yard Inside the Teeny-Weeny Pocket” de Yuki Yoko.

Sarina Nihei, é uma ilustradora e freelancer japonesa, que cria e dirige filmes de animação. O seu estilo de animação, caracteriza-se pela expressão do desenho à mão, pela exploração do surreal e por uma essência estónia, esta pela qual desenvolveu um amor particular, enquanto estudava na Tama Art University, em Tóquio. As suas obras animadas, têm sido reconhecidas por todo o mundo, valendo-lhe cerca de 10 prémios e 36 mostras diferentes, frisando que em 2016 ganhou o “Best Post-Graduation Film” nos British Animation Awards.

A curta de Sarina Nihei, Small People with Hats, de 2014, criada como prova final da sua formação no Royal College of Art, em Londres, mostra, em cerca de 7 minutos, uma sociedade dividida em dois grupos distintos: os homens comuns e os pequenos homens com chapéu. Os homens de chapéu, são vistos como descartáveis, como objetos, ou até mesmo lixo. Quando um dos homens de chapéu é esmagado, por um homem comum e morre, surge um camião do lixo, que vem recolher o corpo. Após esta primeira cena, ficamos a conhecer uma sala de reuniões, onde homens de fato decidem, com um dado, qual a maneira pela qual o homem de chapéu morre, numa total desvalorização pela morte, num tom de brutalidade mordaz. Esta e outras cenas no decorrer do filme, revelam um conto alegórico, bizarro e violento, que espelha a sociedade real em que cada um vive, onde a segregação é um problema real, ao qual os segregados não conseguem escapar, sem a ajuda de alguém fora desse infortúnio. As personagens dos homens comuns, têm noção completa desta realidade distópica, porém tudo isto é banal, por isso não é vista de forma depreciativa, nem é escrutinada a fim de a mudar, é somente um dia normal.








O mundo nesta animação, é desenhado e pintado à mão e as personagens não têm falas, apesar de existirem diversos efeitos sonoros simples, que materializam as onomatopeias ou ruídos daquilo que se passa, retratando uma sociedade absurda e disfuncional, de uma forma peculiar, limpa e subtil. É assustador e inquietante, pensar que este pode ser um retrato do agravamento do mundo real atual, ou um espelho do que já foi, no mundo da escravidão negra. Uma animação com um conceito complexo, embora transmitido de forma simples, clara e cativante. Encaixa-se perfeitamente no género de comédia negra – uma animação de escárnio e mal dizer –, por retratar jocosamente um dos piores aspetos da nossa realidade. Porque é que um homenzinho com chapéu acabou de ser morto por outro que caía de um prédio? O decifrar do incomum, na procura pela peça num puzzle animado, tentando concluir exatamente tudo aquilo que a imagem transmite.

A expressão 何それ aqui é simples, tem um fio condutor, mas ainda permite perguntar “o quê?”, visto que a ação contém elementos que dificilmente são explicados. Trata-se de uma obra consciente, retratada de uma forma satírica, com imensa violência e mistério. A frieza e crueldade desta curta é nivelada pelo ar inocente das personagens, algo que é inconscientemente provocante e convidativo, obrigando a permanecer atento à animação. Todavia, a obra seguinte, leva esta noção a um nível extremo. De seguida, as palavras não fazem justiça à narrativa – se é que esta existe – pois a curta contém uma essência extravagante que não se transpõe para texto, deixando o observador sem resposta áquilo que viu.

Yuki Yoko, nasceu em 1987, é ilustradora, animadora e diretora de filmes e vídeos de música. Em outubro de 2019, partiu para a Dinamarca num programa de residências artísticas. Por não falar a língua local, nem inglês, Yuki, utilizou muito o seu diário gráfico para desenhar, apontar emoções e pensamentos, de modo a anotar memórias de uma altura que caracterizou como particularmente enriquecedora e especialmente estimulante. Mais tarde, as fotografias e desenhos do seu caderno foram transformados na animação seguinte.

In the Big Yard Inside the Teeny-Weeny Pocket, de Yuki Yoko, foi lançado em 2022 no Japão. Em 6 minutos, o observador é colocado no meio de centenas de explosões, expansões e diminuições, é colocado a flutuar e a afundar, onde algo se separa e outro tanto conecta-se. Através de desenhos a lápis de cor e lápis de cera, de uma expressão infantil e fugaz, a ação é desconcertante, esotérica, confusa, mas visualmente estimulante, constantemente a brilhar, mexer, com figuras cheias de cores, em algo que vive num mundo quase psicadélico, como se as figuras estivessem num parque de diversões para crianças, sob o efeito de estupefacientes, criando fractais daquilo que agora é uma realidade policromática. Para elevar estas sensações a outro patamar, a trilha sonora é igualmente complexa, ondulante e vibrante, abordando vários géneros como drum & bass, rock, psych, noise, metal e até 8-bit, flutuando por entre variações de melodias e sensações divergentes, onde vozes cantam, gritam e gemem, transmitindo algum desconforto num intenso desconcerto. Há também vozes que narram dizeres japoneses obscuros, que dificultam a compreensão do filme. A dissonância auditiva casada com a euforia visual, vão contando pequenos episódios, onde não é possível decifrar, se existe uma narrativa, pois não é claro em nenhum momento – apesar de existirem cenas com personagens iguais, estas não parecem seguir um rumo.









Tudo isto contribui para uma experiência que tanto é supérflua como carismática, pois parece demais, mas é essa abundância de elementos que tem este efeito magnético no olhar. Como última curta, da mostra deste dia, o público abandonou a sala com um olhar vazio, mas com uma cabeça cheia de dúvidas – o que é que acabei de ver; o que foi isto; o quê; han? Apesar de chamativo, em contraposto está o seu aspeto sem orientação, excessivamente frenético e a falta de um aviso para pessoas com fotossensibilidade. É tanto, que permite perder-se no todo, passando assim a ser menos, do grande que é.

Estas duas curtas aqui apreciadas, exploram satisfatoriamente o conceito abstrato da dúvida, da sensação de desconhecimento em busca de esclarecimento. A falta de informação ou o excesso desta sem nexo, carece de clareza e assim induz num estado de cativo desconfortável, onde o observador tenta ao máximo decifrar aquilo que viu e sentiu. Quando existe uma barreira de linguagem e aquilo que é digerido é assim tão complexo, considera-se que é ainda mais estimulante, embora isso não significa que interesse necessariamente. O observador pode perder interesse assim que acaba a experiência por ser “demasiado estranho e conceptual”, mas sem dúvida, que estas obras prendem os olhos à tela enquanto estão em movimento. São duas obras destinadas a quem gosta de filmes independentes de animação, de estilos incomuns, numa narrativa ambígua, que não dá a mão ao observador, deixando espaço para se equivocar e criar as suas próprias ideias sobre aquilo que acabou de ver.


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Nihei S.(2014), Small People with Hats

https://www.youtube.com/watch?v=eoDEvnT0D9k 


Yoko Y.(2022), In the Big Yard Inside the Teeny-Weeny Pocket

https://www.youtube.com/watch?v=uJ594ndih4U&list=PL547TQbdoWArCNlK71s1AFcYy5vph34oK&index=2 

 

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