sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Willie Doherty, Uma e Outra Vez

Willie Doherty, Uma e Outra Vez
Curadoria de Isabel Santos
CAM, Gulbenkian
20.11.2015 a 22.02.2016


"You will remember.
You will forget."


Remains (2013)

De 20 de Novembro a 22 de Fevereiro, o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian acolhe a obra do artista Willie Doherty, por duas vezes nomeado para o prémio Turner (1994 e 2003) e uma das figuras de maior destaque da arte contemporânea irlandesa. O trabalho de Doherty, representado internacionalmente em exposições como a Bienal de São Paulo e a Bienal de Veneza, assinala o regresso do artista ao espaço da Gulbenkian após The Only Good One Is a Dead One de 1996. A presente exposição apresenta assim mais de duas décadas de prática artística, com particular destaque na exploração do vídeo enquanto instalação ou projecção, mas também na relação da imagem fotográfica com a palavra.

Exemplo disso são duas das obras mais icónicas do autor: They’re All the Same (1990) e Same Difference (1991). Em ambas, Doherty desafia o observador a questionar-se perante as relações aparentemente arbitrárias entre o discurso (escrito ou falado) e a imagem representada. Em Same Difference, a imagem de uma mulher é projectada em duas paredes opostas, ao mesmo tempo que um conjunto de slides com palavras vai alternando (VolunteerMurdererDeranged
HeroicMythical, etc). Do mesmo modo, um dispositivo semelhante é empregue em They’re All the Same que apresenta a imagem de um homem acompanhado de uma narração, num monólogo progressivamente mais contraditório e repetitivo.

O duplo sentido destes discursos não é, porém, desprovido de enquadramento. Tanto a mulher como o homem representados são suspeitos do movimento separatista Irlandês IRA (Irish Republican Army) e as imagens utilizadas são retiradas e ampliadas de noticiários britânicos. Como tal, o que o artista propõe não é apenas demonstrar a ambivalência da linguagem e o modo como esta altera a percepção do observador. Este é também um manifesto político, uma forma de assinalar que a leitura de algo - seja de um sujeito ou de um evento histórico - depende quase exclusivamente de factores externos e arbitrários. Estas duas obras denunciam ainda a afinidade do trabalho inicial de Doherty com artistas com Jenny Holzer ou Barbara Krueger que exploram as tensões entre linguagem e imagem e as suas implicações na construção de uma mensagem politizada e mediatizada.



Same Difference (1991)

Este sentido de dualidade é acentuado em Tell Me What You Want (1996), onde dois ecrãs passam em simultâneo imagens e relatos distintos do mesmo evento pela voz de dois indivíduos. Novamente, o espectador é confrontado com um discurso marcado pelo terror, pela paranóia e pelo medo, ainda que os contornos do acontecimento narrado não sejam claros ou ilustrados directamente pelas imagens (tudo o que é possível ver é uma estrada alcatroada à noite, a berma de um caminho verdejante e duas pessoas escurecidas pelo anonimato). A dificuldade em compreender o que se passa e em relacionar estas duas histórias é, pois, parte da estratégia do autor: a subjectividade  de cada ponto de vista é sublinhada não só pelo discurso fragmentado de cada personagem, como ainda pela forma como este é trabalhado fisicamente no espaço.

Para compreender a importância deste olhar subjectivo (e em particular dentro do trauma e da história recente da Irlanda do Norte), é necessário abordar o próprio passado do artista. Willie Doherty nasceu em 1959 em Derry, cidade que se tornaria num dos epicentros de um conflito que dividiria unionistas protestantes e separatistas católicos, na luta pela independência da Grã-Bretanha. Este período negro, que levaria à morte de mais de 3.500 pessoas ao longo de três décadas de conflitos sangrentos e animosidade, ficaria conhecido como The Troubles. Particularmente ilustrativo desta violência é o massacre que ocorre a 30 de Janeiro de 1972, quando uma marcha pacífica em Derry resulta num ataque das tropas britânicas sobre civis desarmados, matando ao todo 14 pessoas. São assim estes os temas que permeiam e enquadram praticamente toda a obra do artista: as tensões, a violência e os conflitos palpáveis mas nunca directamente representados; o peso e a falibilidade da memória na reconstituição da história; e por fim, a identidade - conflituosa e fragmentada - da Irlanda do Norte sempre em plano de fundo. O trabalho de Doherty é assim, simultaneamente, carregado de conotações políticas e intransigente na sua recusa em tomar uma posição objectiva em relação a essas conotações. 


Buried (2009)

Este é um ponto ao qual o artista regressa continuamente com a mesma solenidade contida que une todo o seu trabalho. É ainda de notar como o trabalho de Doherty parece debruçar-se sobre uma linguagem da ausência, utilizando a fotografia ou o vídeo não enquanto instrumentos documentais, mas antes como a expressão da dúvida e da incerteza. O seu olhar é incompleto, parcial e opaco, procurando denunciar a realidade ao mesmo tempo que admite que a essa experiência do real (principalmente quando associada ao trauma da violência) nunca poderá ser representada na totalidade. Por isso o espectador ouve relatos - sobre agressões, ameaças, desaparecimentos, interrogatórios, corpos abandonados na estrada - sem vislumbrar alguma vez qualquer um destes acontecimentos. Esta posição, esta ecologia da imagem como sugere Carolyn Christiv-Bakargiev, opõem-se assim à imagem espectacular do fotojornalismo criando antes um olhar fixado no rasto: o lugar onde algo terrível aconteceu (ou pelo menos onde supomos que tenha acontecido) e do qual apenas restam destroços como o carro em chamas de Remains (2013), ou a desconcertante calma de uma paisagem bucólica de Ancient Ground (2011). 



"I wondered about what had happened to the pain and terror that had taken place there. Had it been absorbed or filtered into the ground or was it possible for others to sense it as I did?"



Amnesiac (2014)


O passado que Doherty representa é parte intrínseca da história - de um determinado momento e determinado lugar - no entanto as suas narrativas sugerem uma experiência pessoal que poderia ser facilmente transportada para qualquer outro conflito no globo. Memória individual e colectiva sobrepõem-se deste modo à realidade factual, assumindo um espaço ambíguo entre o que realmente aconteceu e o que foi adulterado pela ficção.


Estes são, evidentemente, alguns dos temas que estão também subjacentes na segunda parte da exposição, que exibe um conjunto de 9 peças de vídeo do artista apresentadas cronologicamente. Tal escolha curatorial, que se aproxima mais do dispositivo cinematográfico, distingue-se de exibições anteriores onde o autor projecta os seus filmes em diversas telas pondo os seus trabalhos em diálogo. Por outro lado, nesta exposição a emersão em cada obra é total. A dever fica apenas a atenção do espectador que dificilmente acompanhará as 9 peças ininterruptamente, ainda que cada uma mereça a sua atenção. Esta selecção permite ainda ao público um raro olhar sobre a evolução e o universo que agrega os filmes de Doherty, desde o olhar oscilante da câmara em Sometimes I Imagine It’s My Turn (1998) até à precisão cinematográfica de Amnesiac (2014). 

Uma e Outra Vez mereceria talvez outra amplitude de espaço para expor a obra de Doherty e nos deixarmos envolver por ela, percorrendo-a e rodeando-a, porém esta continua a ser uma oportunidade única de ver uma parte integral do trabalho do artista irlandês em Lisboa.