domingo, 18 de junho de 2023

O Paradoxo da Utopia

 A exposição Recursos Naturais, visitável no Hangar – Centro de Investigação Artística, em Lisboa, é da autoria do artista plástico Miguel Palma. Este artista de 59 anos, com mais de 30 anos de carreira, desenvolveu o seu trabalho de um modo multi-disciplinar (escultura, desenho, vídeo, instalação e performance) demonstrando o seu interesse por tecnologias (na sua generalidade) e pela relação que a humanidade tem com a natureza, isto é, o modo como a civilização domina o natural. As peças tendem a ser, ou aparentam ser, complexas. Os elementos que as compõem são muito elaborados na sua construção, mas também podem partir de uma ideia intuitiva, como é o caso da peça AQUÁRIO de 1996, em que a ideia é direta e sem outros sentidos, para além do seu lado paradoxal (um peixe fora de água, dentro de água).


AQUÁRIO, 1996

O espaço expositivo do Hangar situa-se próximo do miradouro dos Barros, com vistas para a cidade, o Castelo e o rio Tejo. Observamos com clareza a cidade bem adaptada ao declive das suas colinas. Intencional ou não, o local da exposição vai de encontro ao tema: o domínio da humanidade sobre a natureza.




A galeria, composta por duas salas, é um espaço relativamente pequeno. Do lado direito da entrada existe um escritório e em frente encontramos o espaço expositivo: uma sala branca em forma de J e um pilar ao centro. As peças estão expostas junto às paredes, algumas penduradas e outras no chão, com exceção de duas, colocadas junto ao pilar.

Grande parte das peças é desenho composto por escrita, linhas, manchas e colagens. A expressão é elementar e inocente. A mancha tende a ser uniforme, maioritariamente em tons de azul, sendo utilizada para desenhar formas variadas. Os elementos que estão recortados e colados variam entre fotografias, desenhos, padrões, artigos de jornais ou revistas, ou possivelmente, manuais de instruções. O globo terrestre é um elemento recorrente, tanto nos desenhos, como no resto das peças. Os elementos ligam-se de modos diversos: linhas, sobreposições, figurações, manchas... embora o tema das peças seja recorrente (a forma como a civilização manipula os recursos naturais), por vezes, o lugar – ou talvez o significado – de alguns elementos das peças pode não ser óbvio, e em certos casos, é até rebuscado.

De modo geral, é evidente que Miguel Palma tende a complexificar as suas peças. Pode-se dizer que brinca com a complexidade e amplitude da tecnologia que a humanidade usa para os seus projetos de desenvolvimento, como se pode observar no desenho abaixo:




Este desenho, apesar de não ser particularmente saturado em detalhes, carrega claramente a ideia de complexidade. Remete-nos para quadros de investigação criminal (1). É como se fosse aqui apresentado um projeto megalómano à escala global, mas ironicamente, está apresentado de modo muito simplista e até infantil. Existem muitas referências à exploração espacial, muitas delas são foguetões colocados na periferia do desenho do globo terrestre, como se fossem descolar para fora do desenho. Os diferentes elementos tecnológicos do desenho estão ligados por fios ou tubos. Algumas partes do desenho estão assinaladas com uma circunferência. Há repetições de formas – padrões – em cada continente (a Antártida e a Oceânia não estão representadas). Globalmente, a obra é uma sátira ao desejo incansável de progresso. A infantilidade do mundo utópico onde a humanidade tem o poder total sobre a natureza.

 

(1)




PROJECTO 2080, 1996



A peça PROJECTO 2080 de 1996 é uma instalação eléctrica que tem como materiais o ferro, o acrílico e a madeira. Em termos temáticos, as duas peças relacionam-se. Ambas focam-se na relação entre a natureza e a humanidade. Contudo, não é um exagero dizer que em termos estéticos estas peças são quase opostas. Enquanto uma estabelece relações complexas e difíceis entre todas as suas partes, a outra é mais simples. Os elementos de PROJECTO 2080 podem ser organizados em três grupos: a estrutura da peça, a parte vegetal e as figuras (bonecos). O lugar de cada detalhe da obra é claro e directo. Em termos técnicos, a peça envolve mais recursos. As árvores estão fixadas de modo invertido na parte superior da estrutura, e esta está a suspender a parte inferior. Trata-se de uma superfície luminosa, como se fosse o pavimento de uma exposição de arte contemporânea (cubo branco). As figuras encontram-se nessa superfície. A peça é equilibrada na sua proporção, elegante e talvez até requintada devido à sugestão dos bonsais. Partindo da ideia de que a obra representa uma maqueta, podemos extrapolar que a intenção do projecto seria criar um espaço utópico, onde as pessoas pudessem usufruir de todos os benefícios ao estarem conectadas com a natureza, mas sem estarem em contacto direto com ela. Temos mais uma vez aqui, uma ideia paradoxal. Nesse espaço, a natureza cresce como o humano deseja, sem interferir com o quotidiano, em total separação mas com grande proximidade. Ao contrário da obra anterior, aqui o elemento satírico é mais subtil.

Ao observar a exposição, conseguimos perceber que Miguel Palma tem um enorme fascínio por tecnologias e arriscaria até dizer, por ficção científica. Contudo, ao contrário de muitas pessoas que são obcecadas por novas tecnologias e progresso tecnológico, Miguel Palma demonstra estar perfeitamente consciente das consequências do desenvolvimento tecnológico excessivo. Embora possa parecer paradoxal, quando o artista expõe os grandes problemas da insustentabilidade, consegue fazê-lo de modo leve e com humor, expondo o seu fascínio pelo comportamento da humanidade. Por outras palavras, não se encontra um discurso ativista no seu trabalho, não há qualquer ecoansiedade.


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