quinta-feira, 8 de junho de 2023

A Luz e as Sombras

 A peça Poema de Tomás Maia foi apresentada na Cisterna do Convento de São Francisco da Cidade (FBAUL). Contrariamente à ideia intuitiva de um poema, a peça não usa a linguagem literária. Recorre à apresentação visual e sonora para expor o gesto poético. A peça é inspirada no mito de Orfeu, mas procura representá-lo num outro contexto de modo a abordar o mito sem a componente trágica da história.

O mito de Orfeu é uma história da mitologia grega. Segundo a lenda, Orfeu apaixonou-se e casou com Eurídice. No entanto, Eurídice foi mordida por uma serpente venenosa e morreu. Orfeu decidiu descer ao submundo, o reino dos mortos, para tentar trazer sua amada de volta à vida. Orfeu consegue persuadir Hades, o deus do submundo, a permitir que Eurídice retorne à terra sob uma condição: Orfeu não poderia olhar para trás até que eles estivessem completamente fora do reino dos mortos. Orfeu concordou e começou a guiá-la de volta, mas, atormentado pela dúvida, olhou para trás antes de atingirem a superfície. Nesse momento, Eurídice desapareceu e voltou ao submundo para sempre, deixando Orfeu destroçado.

Em Poema, Orfeu não aparece em cena e Eurídice chega à superfície.

Para entrar na cisterna, os visitantes avançam um de cada vez, através de um corredor estreito onde a luz vai ficando cada vez mais escassa. A entrada para a cisterna, ao fundo do corredor, termina numa plataforma, no escuro absoluto, após o fecho da porta de acesso, que corresponde ao lugar dos espetadores. Passados alguns minutos de silêncio, escuta-se uma composição para precursão aparentemente irregular e agitada. Do escuro, ligam-se progressivamente três projetores, instalados na cobertura do espaço, com uma amplitude angular de iluminação, do topo das escadas até ao chão. Vemos com clareza, chão e escadas cobertas de terra. Subitamente surgem figuras vestidas com roupa escura e simples a descerem as escadas. O efeito da luz dava-nos a impressão de uma aparição das figuras, sem se perceber de onde vinham, como um número de ilusionismo. A um olhar mais atento, as figuras, mais precisamente, os caminhantes, vinham de uma escada não visível, para chegar ao topo do visível (construção piramidal da estrutura). Ao terminarem a descida, os caminhantes contornavam a estrutura em direção ao lado oculto das escadas, e reiniciavam o ciclo do movimento.

Passado algum tempo, entra em cena uma figura feminina vestida de branco, vinda debaixo da plataforma onde se encontra o público, em frente à escadaria visível. Avança e sobe as escadas. O movimento é mais lento que o dos caminhantes e, quando se cruzam, dá-se um ligeiro impasse e discreta contra-cena, ao nível do olhar, como se a caminhante de branco possuí-se uma aura. Quando atinge o topo das escadas, todos se imobilizam. A dado momento, a caminhante roda a cabeça 90 graus para o lado esquerdo, a iluminação altera-se e foca-se na figura durante alguns minutos, que antecedem o seu desaparecimento (sai de cena descendo as escadas ocultas ao nosso olhar). A luz retoma o desenho inicial e os caminhantes retomam a descida. O público sai da sala com a cena em aberto (os caminhantes continuam o seu movimento).

Poema tem a duração de cerca de 30 minutos. Os tempos são adequados para acompanharmos calmamente a fluidez da cena e dos seus movimentos, sem nos perdermos nos diferentes registos entre as partes.

A peça aborda as grandes questões da humanidade: a vida, a morte e a verdade. Para ser mais preciso, a inacessibilidade e a incerteza dessas questões. Se tomarmos o paralelismo entre a peça e a alegoria da caverna, vemos uma mulher a caminhar em sentido contrário às sombras. Mas mesmo após chegar à “verdade”, a posição e o olhar dela ainda se encontra dentro de uma caverna (a cisterna). Ironicamente, a verdade encontrava-se do lado das sombras (a saída da cisterna).

A experiência do visitante é positiva, na medida em que é levado a elaborar pensamentos profundos e inquietantes, a partir da arte, da poesia. O quão pouco sabemos sobre a vida? E mesmo que se descubra a verdade, o que nos garante que essa verdade é a verdade?

Uma nota que remete ao início de Poema: houve um erro na abordagem da luz de emergência presente no espaço. A luminosidade de pontos vermelhos na escuridão total faz questionar o seu propósito e não tem lugar na peça. Deveriam ter sido tapados completamente ou assumidos de maneira clara como luzes de emergência, para os excluirmos logo à partida.

Sem comentários:

Enviar um comentário