A peça Poema de Tomás Maia foi apresentada na Cisterna do Convento de São Francisco da Cidade (FBAUL). Contrariamente à ideia intuitiva de um poema, a peça não usa a linguagem literária. Recorre à apresentação visual e sonora para expor o gesto poético. A peça é inspirada no mito de Orfeu, mas procura representá-lo num outro contexto de modo a abordar o mito sem a componente trágica da história.
O mito de Orfeu é uma história da mitologia grega. Segundo a lenda, Orfeu
apaixonou-se e casou com Eurídice. No entanto, Eurídice foi mordida por uma
serpente venenosa e morreu. Orfeu decidiu descer ao submundo, o reino dos
mortos, para tentar trazer sua amada de volta à vida. Orfeu consegue persuadir
Hades, o deus do submundo, a permitir que Eurídice retorne à terra sob uma
condição: Orfeu não poderia olhar para trás até que eles estivessem
completamente fora do reino dos mortos. Orfeu concordou e começou a guiá-la de
volta, mas, atormentado pela dúvida, olhou para trás antes de atingirem a
superfície. Nesse momento, Eurídice desapareceu e voltou ao submundo para
sempre, deixando Orfeu destroçado.
Em Poema, Orfeu não aparece em cena e Eurídice chega à superfície.
Para entrar na cisterna, os
visitantes avançam um de cada vez, através de um corredor estreito onde a luz vai
ficando cada vez mais escassa. A entrada para a cisterna, ao fundo do corredor,
termina numa plataforma, no escuro absoluto, após o fecho da porta de acesso, que
corresponde ao lugar dos espetadores. Passados alguns minutos de silêncio, escuta-se
uma composição para precursão aparentemente irregular e agitada. Do escuro,
ligam-se progressivamente três projetores, instalados na cobertura do espaço,
com uma amplitude angular de iluminação, do topo das escadas até ao chão. Vemos
com clareza, chão e escadas cobertas de terra. Subitamente surgem figuras vestidas com roupa escura e simples a
descerem as escadas. O efeito da luz dava-nos a impressão de uma aparição das
figuras, sem se perceber de onde vinham, como um número de ilusionismo. A um
olhar mais atento, as figuras, mais precisamente, os caminhantes, vinham de uma
escada não visível, para chegar ao topo do visível (construção piramidal da
estrutura). Ao terminarem a descida, os caminhantes contornavam a estrutura em
direção ao lado oculto das escadas, e reiniciavam o ciclo do movimento.
Passado algum tempo, entra em cena
uma figura feminina vestida de branco, vinda debaixo da plataforma onde se
encontra o público, em frente à escadaria visível. Avança e sobe as escadas. O
movimento é mais lento que o dos caminhantes e, quando se cruzam, dá-se um
ligeiro impasse e discreta contra-cena, ao nível do olhar, como se a caminhante
de branco possuí-se uma aura. Quando atinge o topo das escadas, todos se
imobilizam. A dado momento, a caminhante roda a cabeça 90 graus para o lado
esquerdo, a iluminação altera-se e foca-se na figura durante alguns minutos,
que antecedem o seu desaparecimento (sai de cena descendo as escadas ocultas ao
nosso olhar). A luz retoma o desenho inicial e os caminhantes retomam a
descida. O público sai da sala com a cena em aberto (os caminhantes continuam o
seu movimento).
Poema tem a
duração de cerca de 30 minutos. Os tempos são adequados para acompanharmos calmamente
a fluidez da cena e dos seus movimentos, sem nos perdermos nos diferentes
registos entre as partes.
A peça aborda as grandes questões da
humanidade: a vida, a morte e a verdade. Para ser mais preciso, a
inacessibilidade e a incerteza dessas questões. Se tomarmos o paralelismo entre
a peça e a alegoria da caverna, vemos uma mulher a caminhar em sentido
contrário às sombras. Mas mesmo após chegar à “verdade”, a posição e o olhar
dela ainda se encontra dentro de uma caverna (a cisterna). Ironicamente, a
verdade encontrava-se do lado das sombras (a saída da cisterna).
A experiência do visitante é
positiva, na medida em que é levado a elaborar pensamentos profundos e
inquietantes, a partir da arte, da poesia. O quão pouco sabemos sobre a vida? E
mesmo que se descubra a verdade, o
que nos garante que essa verdade é a verdade?
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