segunda-feira, 19 de junho de 2023

 

“Noite Stravinsky” – pela Companhia Nacional de Bailado, em três tempos

      I.         Os flashes da Noite

    II.         As sensações

  III.         O análogo da memória

I

As imagens da dança como construções da nossa própria memória ou imaginação.

A estrutura da dança ou o efeito que provoca nos expectadores surge como uma espécie de paralelismo com a nossa própria memória. O modo como nos recordamos dos acontecimentos ou emoções que temos está intimamente relacionado com o modo como nos relacionamos com a dança. Esse momento aparentemente ininteligível em que os corpos esvoaçantes compõem uma melodia para os nossos sentidos.

Como se as cores, os movimentos dos corpos e os sons convergissem num único momento, como se o espetáculo de dança nos desse a oportunidade de descobrir um novo sentido em nós, talvez mais puro e mais desperto. Se me detenho na reconstituição da memória do espetáculo, do programa que foi apresentado escapa-me logo toda a sensação.

Para mim de fácil recordação ficaram três palavras e já é tanto, se nos detivermos na emoção daquilo que significaram naquela Noite de Stravinsky. São elas cadeira, brilho e cor.

É difícil escrever sobre aquilo que nos está tão perto. A dança está dentro de nós no movimento que fazemos para nascer já dançamos, no balanço do corpo que se levanta para um dia de trabalho, no mais quotidiano de um autocarro a chegar à paragem e os transeuntes a aproximarem-se e movimentarem se para o seu interior, no recolher da noite quando nos encolhemos na cama, a vida é uma dança tão próxima que se torna difícil falar sobre ela.

Mas regressando à apresentação da Noite de Stravinsky no teatro Camões, constituída por três bailados: o primeiro “AS BODAS” para mim a palavra é cadeira, pode ser simples e primordial, mas é o balanço que me surge quando penso nessa peça. A imagem mais marcante será uma espécie de conjunto de corpos juntos que não são homens nem mulheres, mas balançam e balançam e nesse balançar têm a cadeira metalizada como o suporte do seu corpo, num equilíbrio brilhante que reluz e que é enigmático ao mesmo tempo. É um eterno balançar.

No segundo “INTERMEZZO”, a palavra é brilho já nos diz quase tudo não nos faltasse a sombra para perceber a luz e novamente esta dicotomia entre luz e sombra e há uma espécie de brilho que une ambas faces da moeda, o dia e a noite, claro e escuro. Nessa simbiose perfeita encontramos a música que está sempre presente nesta noite com uma orquestra ao vivo a guiar os nossos ouvidos para caminhos longínquos muito para além da sala de espetáculos.

Por fim, no último bailado composto por dois atos, mas não menos pungente e inquietante a “SAGRAÇÂO DA PRIMAVERA” para mim é cor, uma invasão de cor. Várias cores tão marcadas é como se tornassem em sons vivos que caminham do interior da terra tão visceral e enigmático. Que chega a faltar-nos o ar.

II

As sensações das palavras e dos sons. Os movimentos dos corpos em torno de uma luz misteriosa na Noite de Stravinsky.

Citando Eugénio de Andrade, para melhor explicitar o pretendido.

"(…)

um corpo é o lugar da furtiva

luz despida, de carregados

limoeiros de pássaros

e o verão nos cabelos;

 

é na escura folhagem do sono

que brilha

a pele molhada,

a difícil floração da língua.

 

O real é a palavra."

 


III

A memória surge à consciência tal como uma espécie de dança dos sentidos, quando nos abstraímos da tentativa de explicar as causas ou consequências que observamos ficamos mais próximos de realidade interior de cada movimento. Como se a nossa memória funcionasse como uma espécie de dança em que os sentimentos se vão misturando e reativando à medida que são atualizados por novas cores e sensações. A memória como uma síntese que nos aparece à consciência quando na verdade é uma construção contínua e ininterrupta que vai sendo atualizada. E que surge como uma tentativa de legitimar a realidade, de lhe conferir um sentido.

Ora o espetáculo de dança mais do que nos apresentar uma peça é uma narrativa de corpos que contam uma história sem voz e que por isso é tão livre e pode tão maravilhosamente ser apropriada por cada mente, por cada ser pensante que a adequa e integra na sua própria história de vida constituindo para si uma memória única e quase indecifrável. Uma dança em que continuamente vivemos não apenas exterior, mas sobretudo interior em que os nossos pensamentos e emoções voam como sonhos. E constituem uma espécie de memória enigmática, só inteligível para cada um de nós neste domínio de interioridade irredutível, individual, irrepetível e por isso fascinante.

 


Foto retirada do site oficial da CNB

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