"o cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado. (...) e o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem ."(ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental, transformações contemporâneas do desejo. Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989).
Ao começarmos pela fala da psicanalista, curadora e crítica de arte Suely Rolnik, e a partir do conceito por ela trazido de cartografia sentimental, trago a discussão da presença da cartografia na arte contemporânea, do uso dos mapas como manifestação artística, como instrumento do desejo/desenho e do próprio caminhar como gesto ativo. Deixar as pegadas em rastros - a figura do artista-cartógrafo - aquele capaz de inventar percursos imaginados e construir realidades a partir dos afetos e de memórias por ele atravessados. Suely pontua como sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, afirmando a potência criadora de âmbito do sensível que carrega as mãos e os pés daquele que traça os espaços, mede distâncias e desenha enquanto caminha.
Enquanto carregando nossos diários-de-bolso, ou até mesmo nossas memórias em bagagem, estamos submersos nas intensidades rotineiras que acompanham o caminhar andarilho - é importante estar atento às linguagens encontradas, aos lugares com o qual nos relacionamos, para que a composição das cartografias se faça necessária no processo de percepção do mundo que vivemos. As realidades imaginadas que se constroem em simultâneo, são dobras possíveis produzidas a partir das travessias, das passagens, dos não-lugares que os pés perpassam - "De fato, para ler os mapas hoje em dia, nós os desdobramos, e este hábito nos oferece, ao mesmo tempo, uma visão dessa “realidade dobrada” que é o espaço representado." (TIBERGHIEN, Gilles. Imaginário cartográfico na arte contemporânea: sonhar os mapas nos dias de hoje. Trad. Inês de Araujo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 57, p. 233-252, 2013).
Artistas inúmeros utilizaram como instrumento de registro, mapas mentais, (des)organizações de pensamento, invenções de caminhos, desenho e desejo - em papéis dobráveis (mapas) - para sinalizar, traçar e registrar trajetos e percursos percorridos em devaneio e trouxeram isso para a cena artística como uma prática muito interessante e método de trabalho. Podemos reconhecer essas práticas em alguns trabalhos como de Robert Smithson, em MonoLake; Anna Bella Geiger - Mapa Mundi I e II; Bruce Chatwin com The Songlines (percepções sonoras de caminhos atravessados); entre muitos outros.
Ana Bella Geiger - Mapa Mundi dos Ventos I
Por mais familiares que são os diagramas e mapas, a memória porém que deles apanhamos distorce a realidade por eles apresentada - nosso imaginário topográfico é atualizado a todo momento e transborda para outras instâncias visíveis e não-visíveis da nossa relação geográfica física e sentimental com os lugares que ultrapassamos; com os territórios que penetramos e das barreiras que cruzamos. É interessante pensar no processo de registro do andarilho-artista, seja por fotografias, desenhos, gestos, sons ou qualquer captação em que consiga transpor o momento atravessado. O fazer artístico se manifestando no processo e acontecendo enquanto processo. As paisagens mentais que se formam se sobrepõem às reais e desenham um mapa errante, inventado e também real.
(...) Eles são exatamente o que Deleuze e Guattari entendem por “performance” quando escrevem que “o mapa é uma questão de ‘performance’. Ora, esse mapa também é feito para se perder ou para perder nossas relações habituais com o mundo, fazendo aparecer territórios intersticiais, nomeados territórios atuais, em azul como o mar, enquanto a cidade repertoriada e densa está em amarelo e parece um arquipélago. Mas essas zonas são fluidas e móveis; e o mapa, aquático. Obtém-se assim “um conjunto de ilhas”, contínuo que penetra nos espaços plenos e se ramifica em diversas escalas até os menores interstícios abandonados entre as porções de cidade construída. (TIBERGHIEN, Gilles. Imaginário cartográfico na arte contemporânea: sonhar os mapas nos dias de hoje. Trad. Inês de Araujo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 57, p. 233-252, 2013).
É sobre a fluidez e organicidade do construir uma realidade que se faz por meio da teia da vida - é preciso fluir como água e também entender sobre medidas e precisões. É tão precisa e matemática a imprecisão do rastro artístico. É uma linha tênue entre o errar e o seguir regras. Ali mesmo onde se fazem as tramas mais bonitas da linguagem, suas pontes existentes e seu trajeto arredio. É por meio de passos confundidos e por devaneios constantes, que os mapas revelam sua força como medidor de intensidades, guardador de experiências efêmeras e captador de coisas quase que inapreensíveis.
"O artista-cartógrafo projeta assim um novo atlas que mantém, como se levada por correntes aéreas, a única massa de terra que ele elegeu e que o representa daqui pra frente. O imaginário que esse mapa testemunha não nos afasta do real, mas nos faz penetrar na visão de um artista, em sua maneira de ver e sentir, no movimento dinâmico de seus afetos, que nos restitui a imagem como a franja de um sonho. Assim como nos mapas que consultamos deixando errar nosso espírito (e que os artistas sabem guiar até regiões insuspeitas), entre duas folhas de um atlas em que não há, à primeira vista, nada a ser visto." (TIBERGHIEN, Gilles. Imaginário cartográfico na arte contemporanea: sonhar os mapas nos dias de hoje. Trad. Inês de Araujo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 57, p. 233-252, 2013).
Há um corpo-travessia portanto, que se move e que deseja deixar rastros enquanto caminha.
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