Toco a sua boca com um dedo, toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se, pela primeira vez, a sua boca entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade, eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que, por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que minha mão desenha em você. Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõe-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem, com um perfume antigo e um grande silêncio. Então as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se estivéssemos com a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.
É mesmo de se encher a boca d'água e de quase saborear com gosto pela própria língua, quando lemos essa prosa poética de Julio Cortázar. Escritor argentino, nascido no início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, conhecido por seus contos fantásticos, investiga as facetas enigmáticas e perturbadoras do cotidiano. Ao adentar a realidade e suas profundidades, manifesta em seu estilo de escrita peculiar, a subversão dos gêneros literários, a buscar autenticidade genuína em seus livros, como podemos observar em Amarelinha, por exemplo, um romance publicado em 1963, em que propõe um modo de leitura bem interessante e fora dos padrões.
Na década de 60, assume sua grande influência de Jorge Luis Borges em sua escrita, é considerado uma das figuras mais importantes da literatura hispanoamericana, sendo conhecido internacionalmente. Diferentemente de Borges, o escritor insere em sua sensibilidade artística a preocupação social: traz as classes marginalizadas e aproxima-se intensamente dos movimentos políticos de esquerda, tornando-se ativista político.
Adentrando ainda mais um pouco no poema acima trazido para esta publicação, relacionando-o com sua produção literária, podemos afirmar que a literatura de Cortázar questiona a própria vida em seu sentido mais profundo. Ao trazer abordagens inovadoras de caráter experimental em sua linguagem e em suas narrativas, mergulha no universo do fantástico, sem abandonar a realidade: o aparecimento daquilo que é fantástico no cotidiano, exaltando a complexidade daquilo que é simples e corriqueiro (assim como Borges também propõe).
Assim aqui o faz: descreve o beijo por todas as beiras e contornos possíveis. Caminha por todos os cantos da linguagem e das sensações ao descrever pelo toque, cheiro, olhar e água, uma das sensações mais indescritíveis e mais corriqueira: "e então brincamos de ciclope..." e com representações imagéticas e sem nem sequer citar a palavra beijo de prontidão, ao cruzar este texto, entendemos sobre o arrepio e o formigamento que o ato proporciona. Eis a potência da composição textual, do poder descritivo e da capacidade intrínseca da escrita ao pulsar em texto, uma sensação. Um desejo mútuo, dois corpos. A escrita que quase pode ser tocada por dedos, que pode ser sentida ou beijada.
Da fragrância obscura, dos acordes em fôlego, da saliva a vazar em cada letra, os corpos aqui dançam como a lua na água, como se já se beijavam antes mesmo de encostarem-se, como se o beijo fosse algo visceral, que vem das entranhas, acontecendo antes mesmo do encontro entre bocas. O beijo acontece em palavra, ao leitor, que em seu momento de leitura, beija sem nem mesmo sair do lugar ou sequer encostar outro corpo.
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