quarta-feira, 25 de novembro de 2020

O consumo das Artes

Conforme Kant, o gosto puro é o que privilegia a forma pura em detrimento da cor e da sua sedução quase carnal, e só é considerado puro se for avaliado com desinteresse; O sentimento de desinteresse é dado pela ausência de fins imediatos e externos sem nenhum proveito prático efetivo. Kant caracteriza a relação de sujeito diante de uma realidade bela como uma relação de “simples contemplação”. A experiência estética tem um fim em si mesmo.

Já o gosto impuro, em oposição, é caracterizado por favorecer o grosseiro, simples, comum, primitivo e sem profundidade. Estas obras, denominados pelos estéticos clássicos, vulgares, oferecem prazeres imediatos e efeitos fáceis e, conforme Bourdieu “não são somente uma espécie de insulto ao requinte dos requintados, uma maneira de ofensa ao público ‘difícil’ que não entende que lhe oferecem coisas fáceis.” O gosto impuro aprecia uma arte ligeira, frívola e fútil assim como também superficial e sedutora:

“A forma inferior do ‘lindo’ encontra-se, diz ele (Schopenhaur), nos quadros de interior dos pintores holandeses quando eles têm a extravagância de nos representar comestíveis, verdadeiros trompe-l’oil que não podem deixar de nos excitar o apetite; a vontade encontra-se, por isso mesmo, estimulada e, deste modo, põe um fim a toda a contemplação estética do objeto.”

Já Bourdieu, demonstra uma perspetiva diferente do gosto e da segmentação da sociedade face à cultura. Este define a arte como legitima ou não através da receção do público, que por sua vez é influenciado pelo espaço social que ocupam. Bourdieu segmentou a sociedade em classes sociais definidas pelos seus habitus (ou gostos), e, consequentemente, estilos de vida coincidentes e capital cultural (metáfora criada por Bourdieu para explicar como a cultura, numa sociedade dividida em classes, transforma-se numa espécie de moeda que as classes dominantes utilizam para acentuar as suas diferenças). Desta maneira, o sociólogo secciona a sociedade em três grandes classes ou habitus:


Habitus Burguês- classe dominante

“A alta burguesia pode se desprender das necessidades mais prementes e mostrar propensão para experiências não diretamente rentáveis, como o interesse pelas artes de um modo geral.” (Silva, p. 26)


Habitus Pequeno Burguês- Classe média

Esta classe define-se pela mudança das obras pertencentes às restantes camadas, quer por elevar-se ou diminuir-se: “A mudança na cultura legítima inclui, também, os modismos que estão fora da cultura erudita e que reforçam o caráter arbitrário do capital cultural: são os saberes gratuitos que servem apenas para distinguir aqueles que dominam essas informações.” (Silva, p. 27)

Habitus Popular- Classe Popular

“Bourdieu considera que a classe trabalhadora tende a mostrar uma atitude negativa com relação a valores estéticos de um modo geral. É o seu "anti-esteticismo" que decorre da premência de viver em função da satisfação de necessidades imediatas; o habitus proletário é dominado pelo pragmatismo.” (Silva, p. 26) 

Como uma continuação da teoria de Pierre Bourdieu, encontramos o Omnívoro Cultura, de Richard Peterson. No seu trabalho, baseado maioritariamente na área da música, Peterson refere que o verdadeiro gosto legitimo não se encerra apenas no conhecimento das artes elitistas, mas sim numa apreciação estética de todas as formas de arte incorporando na classe escolarizada elementos da alta cultura como da cultura popular.

Bernard Lahire, critica esta teoria que considera demasiado restrita ao domínio da música, acusando Peterson de não obter uma perspetiva do verdadeiro estilo de vida cultural e de não registar “tanto as variações intra-individuais de comportamentos de um domínio cultural para outro”. O sociólogo critica também a falta de consideração da contextualização do indivíduo que o leva a ter conhecimento de diferentes praticas que não foram escolhidas por ele, mas provêm das pessoas que o rodeiam. Por fim, Lahire critica a permanência da noção de uma sociedade seccionada: 

“Peterson permanece acantonado num raciocínio e numa metodologia feita à escala do grupo no seu conjunto, ao passo que a sua hipótese e a sua interpretação pressuporiam que estabelecesse a sua constatação de variedade cultural à escala individual, nos membros do grupo, desenvolvendo o mesmo tipo de abordagem que pus em prática.” (Lahire, p. 29). 

O autor destaca dois factores que justificam a sua perspetiva de uma sociedade atual sem classes rigidamente definidas:

A diversidade de influências culturais:

“da pluralidade da oferta cultural, por um lado, e, por outro, da pluralidade dos grupos sociais (dos mais micro aos mais macro) susceptíveis de sustentar estas diferentes ofertas culturais e de difundir as hierarquias culturais específicas que compõem as nossas formações sociais fortemente diferenciadas.” (Lahire, p.14)

A diminuição da crença na legitimidade da cultura clássica:

“Ao longo dos últimos quarenta anos, a cultura legítima clássica foi, de certo modo, vítima da ascensão da cultura científica (no seio do sistema escolar) e da ampliação da cultura de entretenimento (promovida pela indústria mais rentável do lazer e da cultura).” (Lahire,p.18)

Cada vez mais, é desenvolvida uma sociedade do entretenimento, em que, independentemente do seu estatuto social, todos recorrem e necessitam da descomprimir, adotando uma política de flexibilidade e alternância entre momentos culturais legítimos, em que o sujeito procura o conhecimento e reflexões profundas, e momentos de entretenimento “informais, descontraídos, em emoções colectivas (...) desprovidas de qualquer ‘conteúdo cultural’ propriamente dito.” O Homem atual trabalhador, que procura o sucesso profissional e uma vida familiar estável encontra tensões e stresses que o obrigam a procurar formas de descontracção, possibilitando assim a co-existência do indivíduo culto e de ‘gostos legítimos’ com uma cultura de entretenimento e de ‘gostos impuros’ .

Bibliografia:

Bourdieu, Pierre (2006) A Distinção- Critica Social do Julgamento

Lahire, B. (2008) Indivíduo e Misturas de Géneros

Silva, Gilda (1995) Tese- Capital Cultural, Classe e Género em Bourdieu (http:// repositorio.ibict.br/bitstream/123456789/215/1/OlintoSilvaINFORMAREv1n2.pdf) 

 

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