quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Elogio da Mão


No momento em que começo a escrever, vejo as minhas próprias mãos, que solicitam o meu espírito, que o arrastam. Cá estão, companheiras incansáveis.
 

Por meio das mãos, o homem trava contacto com a dureza do pensamento. Elas impõem uma forma, um contorno e, no domínio da caligrafia, um estilo. É com as mãos, por meio das mãos,  que o homem trava contacto com com a textura e o peso do pensamento.
 

Mãos como servas, talvez, mas dotadas de um espírito livre, crítico, enérgico. Rostos sem olhos e sem voz, mas que vêem e que falam.
 

Há cegos que adquirem, com o tempo, um tal refinamento de tacto que são capazes de discernir ao mero toque, pela espessura infinitesimal da imagem, os naipes de um baralho. Mas mesmo quem enxerga precisa de mãos para ver, para completar, tacteando e apalpando, a percepção das aparências. As mãos têm as suas aptidões inscritas na sua silhueta e no seu desenho: mãos finas, dedos longos e móveis do argumentador, mãos proféticas, banhadas por fluidos, mãos espirituais, cuja mesma inacção tem graça e carácter, mãos ternas.
 

Mãos como meio de conhecimento dos objectos do Mundo. Mãos que quanto mais tocam mais entendem, quanto mais tocam mais memorizam, quanto mais tocam mais captam, mais distinguem, mais assimilam- mais guardam. Mãos que acolhem, albergam, que conservam em si.
 

Mãos criadoras e mão pensantes.
 

Que privilégio é o seu? Porque nos fala com tanta força persuasiva este órgão mudo e cego ? Porque é um dos mais originais, um dos mais diferenciados, à maneira das formas superiores da vida.
Maravilhosa constituição da mão humana, com os seus ossos e ligamentos, com os longos dedos capacitados de inúmeras funções e responsabilidades, com as suas memórias acumuladas e vidas gravadas, com tudo o que podem albergar e sentir, relembrar e produzir.

Articulado por meio de gonzos delicados, o punho arma-se sobre um sem-número de ossículos. Cinco ramos ósseos, com um sistema de nervos e ligamentos, projectam-se por baixo da pele, para depois se separar de chofre e dar origem a cinco dedos separados, cada um dos quais, articulado sobre três juntas, com atitude e espírito peculiares. Uma planície abaulada, percorrida por veias e artérias, arredondada nas bordas, une o punho aos dedos, ao mesmo tempo que lhes encobre a estrutura oculta. O verso é um receptáculo. Na vida activa da mão, ela é susceptível de se distender e de se endurecer, assim como é capaz de se moldar ao objecto.
Esse trabalho deixou marcas no oco da mão, e podem-se ler aí, se não os símbolos lineares das coisas passadas e futuras, ao menos o traço e como que as memórias de nossa vida de resto já apagada – e quem sabe, até, alguma herança mais antiga. De perto, trata-se de uma paisagem singular, com montes, a grande depressão central, os estreitos vales fluviais, ora fissurados por acidentes, cadeias e tramas, ora puros e finos como uma escritura. Toda a figura permite o devaneio. Não sei se o homem que interroga esta chegará a decifrar algum enigma, mas parece-me bem que contemple com respeito essa sua serva orgulhosa.

 

A sua vida livre, sem o pesado fardo do mistério (que os nossos corações humanos carregam) abandonadas aos sonhos, aos gestos inúteis e puros, aos gestos gratuitos e por isso tão incontornáveis - é fascinante. Mesmo em repouso não são uma ferramenta sem alma. Estão vivas. Pulsantes. Mesmo sozinhas, as mãos vivem com intensidade, vivem livres, disponíveis, desobrigadas. Mãos desembaraçadas, espontâneas.
Não são um par de gémeas idênticas. São diferentes. Como todos sabemos, intitulamo-nos de destros ou de canhotos - por involuntariamente darmos mais uso à direita ou à esquerda. Há muitas teorias sobre a dignidade da direita e sobre a sua maior nobreza, mas, a verdade é que, quando a esquerda lhe falta, ela recai numa solidão difícil e quase estéril. Uma precisa da outra. A esquerda, normalmente associada ao outro lado, ao menor lado, é capaz de se adestrar ao ponto de cumprir todos os deveres da outra.
Construída da mesma maneira, tem as mesmas aptidões, às quais renuncia para auxiliar a outra. É sorte que não tenhamos duas mãos direitas. Não fosse assim e naufragaríamos por um terrível excesso de virtuosismo. Teríamos levado ao limite extremo a arte dos malabaristas – e provavelmente nada mais.
Serão as mãos do Homem ou será o Homem das mãos? Quer isto dizer- O homem fez a mão. Mas a mão também fez o homem. Permitiu-lhe certos contactos com o universo que os outros órgãos e partes do corpo não facultavam. Erguida contra o vento, incansável lutadora revelada, incita o Homem à captura do mundo. Multiplicava as superfícies delicadamente sensíveis ao conhecimento do ar, ao conhecimento das águas.
As mãos são o nosso mais notável meio de experiência do universo, capazes de capturar o imponderável, mesmo nas correntes translúcidas que não têm peso e que o olho não vê. Tudo o que se faz sentir com o cálido e ferveroso batimento da vida, tudo o que tem casca, textura, forma, seja ela qual for, tudo é presa para a mão, tudo isso é objecto de uma experiência que a visão ou o espírito não podem por si sós conduzir.
 

A possessão do mundo exige uma espécie de faro táctil.
 

A visão desliza pelo universo. A mão sabe que o objecto é habitado pelo peso, que é liso ou rugoso, que não está soldado ao fundo de céu ou de terra com o qual ele parece formar um só corpo. A acção da mão define o oco do espaço e o pleno das coisas que o ocupam. Superfície, volume, densidade e peso não são fenómenos ópticos. Foi entre os dedos, no oco da palma das mãos, que o homem primeiro os conheceu. O espaço, ele mede-o não só com o olhar, mas também e mais ainda com a mão e com o passo. O tacto preenche a natureza de forças misteriosas. Sem ele, a natureza seria semelhante às deliciosas paisagens da câmara escura, diáfanas, planas e quiméricas.
Para os usos correntes da vida, os gestos da mão emprestaram ímpeto à linguagem, ajudaram a articulá-la, a distinguir os seus elementos, a isolá-los de um vasto sincretismo simbólico, a ritmá-la e mesmo a colori-la de inflexões subtis.
O artista toca, mexe, apalpa as coisas e a sua textura, o seu peso, o seu verdadeiro toque. Tocam porque têm de tocar, sempre, para ir descobrindo a surpresa iminente de cada objecto, de cada coisa. Para compreenderem melhor . As coisas que são tocadas, que são pelas mãos abordadas e, quem sabe, conhecidas: deixam de ser estranhas- tornam-se companheiras. O carpinteiro conhece a madeira como ninguém - sabe-lhe o peso, calcula-lhe as reacções, compreende os seus gestos, lê os seus sinais...
Com as mãos vivemos as mais espantosas aventuras da matéria. É também certo que sabemos que elas tocam, mas não só tocam- alteram. Têm a libertadora capacidade de metamorfosear as coisas, num exercício enérgico e imparável de renovação perpétua da Criação.
Num atelier de artista, estão inscritas por toda parte as tentativas, as experiências, os presságios da mão, as memórias seculares de uma raça humana que não esqueceu o privilégio de manipular.


Por vezes, como que por distracção, tão grande é seu império mesmo na servidão, a mão introduz uma tónica, uma nota sensível, e nos concede a recompensa de reencontrar o homem na árida magnificência do deserto.
Quando tudo nos parece intangível, e porventura talvez o seja mesmo, temos ainda as mãos - para tocar as coisas, para tocarmos nos outros, corpo com corpo - e descobrimos a possibilidade da vida, da sensibilidade, do calor. Quando tudo  parece longínquo e friamente distante de nós, temos ainda as mãos - para nos lembrar que o mundo pode ser um bocadinho nosso, para nos lembrar que as coisas têm algum sentido, mesmo que seja trágico - temos a maravilhosa e fascinante escolha de tactear, de fazer um chamamento de aproximação de lá até cá, de experienciar a matéria viva dos acontecimentos.
 

No desenho improvisado, onde a mão domina o homem, nesse lugar onde a mão tem vida absolutamente própria e livre, nesses traços desprovidos de consciência, talvez nesses acidentes viscerais, o artista recebe com gratidão a dádiva do acaso e põe-na respeitosamente em evidência.
 


Por fim, é importante compreender que o “Elogio da Mão” é escrito quando esta começa a ver o seu lugar contestado pela possibilidade de uma arte mecânica independente do toque, do contacto entre a mão e o mundo. Mas não devemos nunca esquecer que as mãos, pura e simplesmente como são e porque são, nos ampliam as perspectivas, nos engrandecem as probabilidades - por se meterem em todo o tipo de aventura, por tentarem contínua e abandonadamente a sua sorte.

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