tenho quebrado copos
Tenho quebrado copos
é o que tenho feito
raramente me machuco embora uma vez sim
uma vez quebrei um copo com as mãos
era frágil demais foi o que pensei
era feito para quebrar-se foi o que pensei
e não: eu fui feita para quebrar
em geral eles apenas se espatifam
na pia entre a louça branca e os talheres
(esses não quebram nunca) ou no chão
espalhando-se então com um baque luminoso
tenho recolhido cacos
tenho observado brevemente seu formato
pensando que acontecer é irreversível
pensando em como é fácil destroçar
tenho embrulhado os cacos com jornal
para que ninguém se machuque
como minha mãe me ensinou
como se fosse mesmo possível
evitar os cortes
(mas que não seja eu a ferir)
tenho andado a tentar
não me ferir e não ferir os outros
enquanto esgoto o estoque de copos
mas não tenho quebrado minhas próprias mãos
golpeando os azulejos
não tenho passado a noite
deitada no chão de mármore
estudando as trocas de calor
não tenho mastigado o vidro
procurando separar na boca
o sabor do sangue o sabor do sabão
nem tenho feito uma oração
pelo destino variado
do que antes era um
e por minha força morre múltiplo
tenho quebrado copos
para isso parece deram-me mãos
tenho depois encontrado
cacos que não recolhi
e que identifico por um brilho súbito
no chão da cozinha de manhã
tenho andado com cuidado
com os olhos no chão
à procura de algo que brilhe
e tenho quebrado copos
é o que tenho feito
Ana Martins Marques
Esta publicação diz mais sobre delírios poéticos e devaneios de linguagem do que qualquer outra coisa. Sobre a metalinguagem, a língua falando de si e o texto falando dele mesmo. A palavra observadora de tudo e os poetas atentos, que percebem a vida acontecendo em composição lírica nas entrelinhas. A partir da leitura do poema Tenho quebrado copos do livro O livro das semelhanças, da poeta mineira Ana Martins Marques, é possível traçar aquilo que é de comum ao poeta: sua tentativa de despir a palavra ao máximo e frisar o que sobra dela: corpo e texto. São alguns poetas que trazem a própria poesia como tema principal de suas produções.
Neste poema em questão, o fato de Ana Martins quebrar copos, caminhar sobre os cacos, recolhê-los e observá-los, fala de uma relação direta corpo-objeto quase que indissociável. Há a noção de que o exterior foi absorvido pelo interior e que os cacos compõe corpo e pele precisamente. Pedaço por pedaço. Trata-se da objetificação do corpo por meio da palavra e a internalização do objeto caracterizando-o como sujeito. Como no momento em que diz "eu fui feita pra quebrar" podemos pensar, qual é mais quebrável ? A escritora se coloca em comparação direta com aquilo que é quebrável, frágil, que se despedaça e compõe um corpo.
O corpo, na poética de Ana, "é um país desconhecido / que não sei como visitar", por isso propõe-se uma viagem em direção à arte de compor palavras, a fim de desvendar o incógnito - a frustração do poema e suas falas de amor. A tentativa de operar o corpo através da própria palavra:
"(...) É uma eterna construção de jogos contrários. Segundo Octavio Paz em O arco e a lira, “duas forças antagônicas habitam o poema: uma de elevação ou desenraizamento, que arranca a palavra da linguagem; outra de gravidade, que a faz voltar” (PAZ, 1982, p. 47). A linguagem na poesia de Ana é como uma forma ardente do desejo que proclama sua decepcionante impossibilidade de concretização." (Sue Helen da Silva Vieira, CORPO: UM PAÍS DESCONHECIDO).
O corpo é colocado como desconhecido e na própria construção textual utiliza de jogos de palavras, em um processo de - fazer e desfazer - contínuo, apresentando ambiguidades gramaticais, manipulações de substantivos e verbos trazendo recorrente, a reflexão sobre os conflitos da cena amorosa. O poema, é portanto, o resultado da frustração - uma busca frustrada por completude que não se realiza. "Esse incógnito é o estopim da palavra que anseia ser compreendida, mas que permanece no intervalo à espera de significação." (Sue Helen da Silva Vieira, CORPO: UM PAÍS DESCONHECIDO).
tenho recolhido cacos
tenho observado brevemente seu formato
pensando que acontecer é irreversível
pensando em como é fácil destroçar
Quando a poeta traz, neste trecho acima, que acontecer é irreversível e afirma sobre a facilidade em destroçar, provoca o leitor a pensar sobre a causalidade da vida intrínseca no fazer poético - e neste caso, ao pegar emprestado a materialidade do objeto copo para falar de si, traz a dicotomia pulsante entre aquilo que é frágil e que em sua fragilidade carrega sua maior potência. Assumir-se frágil e destroçada, é existir em potência.
A poesia e seus mecanismos existe neste papel: aponta a palavra e o corpo em eterna relação de fragilidade e potência.
- É preciso destroçar-se para então em ruínas, escrever.
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