MUSEU
CALOUSTE GULBENKIAN
Galeria
Principal
“Do Outro Lado do Espelho”, é uma exposição presente na Galeria Principal do Museu Calouste Gulbenkian, sob a curadora de Maria Rosa Figueiredo, a colaboradora mais antiga
desta instituição, sendo este o seu último projecto antes de se reformar.
Enganei-me na porta e entrei na exposição do lado errado... a começar pelo final. Iniciei assim a minha viagem através dos múltiplos jogos de espelhos e ilusões ópticas existentes no espaço da exposição. Tentei procurar uma lógica para seguir um caminho, mas não a encontrei e decidi procurar o ponto de partida correto.
No caminho, cruzei-me com um quadro de Luís Noronha da Costa (1942) que me despertou interesse. Ao aproximar-me dele, tive a sensação de já ter visto aquele lugar indefinido e infinito, criado pela sequência repetitiva de um reflexo nos espelhos, em direção a um ponto de fuga. Atrevi-me a dar-lhe um nome: “A Bailarina”, pois o quadro é Sem Título. Fascinou-me o mistério e o ambiente indefinido para onde esta imagem me conduz.
A terceira sala é dedicada ao tema - A mulher em frente ao Espelho: A Projecção do Desejo. Uma mulher em frente ao espelho demonstra a sua vontade de ser aceite, apreciada, admirada e até desejada pelo “outro”. Pode também representar muitas outros dilemas como o desejo de uma aparência melhorada, o confronto com as marcas do tempo, uma frustração perante a sua imagem, ou uma procura de identificação.
Não podia passar indiferente à obra de Paula Rego (1935) - Preparando-se para o Baile, 2001-2002,
com as suas figuras ambíguas e controversas. Neste quadro vislumbramos um
quarto de vestir feminino, habitado por meninas e mulheres que se desvendam na
sua relação com o espelho. Observamos várias personalidades diferentes,
raparigas que se admiram ao espelho, outras que nem se atrevem ver-se nele,
talvez por repudio, desinteresse ou frustração.
Enganei-me na porta e entrei na exposição do lado errado... a começar pelo final. Iniciei assim a minha viagem através dos múltiplos jogos de espelhos e ilusões ópticas existentes no espaço da exposição. Tentei procurar uma lógica para seguir um caminho, mas não a encontrei e decidi procurar o ponto de partida correto.
Espelho na porta de saída | Biombo de espelhos da Galeria |
No caminho, cruzei-me com um quadro de Luís Noronha da Costa (1942) que me despertou interesse. Ao aproximar-me dele, tive a sensação de já ter visto aquele lugar indefinido e infinito, criado pela sequência repetitiva de um reflexo nos espelhos, em direção a um ponto de fuga. Atrevi-me a dar-lhe um nome: “A Bailarina”, pois o quadro é Sem Título. Fascinou-me o mistério e o ambiente indefinido para onde esta imagem me conduz.
Luís Noronha da Costa (1942) - Sem Título, não datado |
O
assunto abordado na exposição, é “a arte do Espelho” ou “o espelho na arte”,
consoante o ponto de vista de cada um. O título, alusivo ao livro de Lewis
Carroll (1832-1898) “Alice do Outro Lado
do Espelho”, é muito apelativo dando-nos desde logo uma interpretação do seu conteúdo, mas também pode pecar por condicionar
demasiado as expectativas do visitante.
A
história de Alice Liddell, a protagonista do livro “Do Outro Lado do Espelho”,
aprofunda esta procura de uma identidade, longe do contexto social; trata-se de
uma “viagem” que relata uma transformação, uma passagem da infância para o
caminho da maturidade e da autonomia. Atravessando o espelho, Alice abre a
porta para um mundo desconhecido, iniciando um processo de autoconhecimento, confrontando-se com este
ambiente surrealista de sensações e emoções. Alice mergulha num delírio onde
tudo é muito bizarro e absurdo, como o mundo adulto pode parecer a uma criança.
O
espelho é um instrumento poderoso, objecto de contemplação ou de análise da
realidade, permite-nos ver para além daquilo que o nosso olhar alcança. Desde
sempre um objecto fascinante para muitos artistas, sejam eles escritores,
pintores, escultores, fotógrafos, cineastas..
É
por isso muito interessante que a
curadora tenha desenvolvido uma exposição inteiramente em torno deste objecto
representado na arte das mais diversas formas. É um conceito muito versátil que
me suscitou muita curiosidade em saber quais as obras e os autores escolhidos,
visto existirem diversas possibilidades.
Apesar
de todas as obras terem o espelho como ponto de encontro, cada uma tem a sua
individualidade própria.
Ao
iniciar novamente o meu percurso começando agora pela porta definida como a entrada
principal, voltei a sentir-me inquieta pela falta de uma lógica condutora,
fosse ela cronológica ou de qualquer outra ordem. Servi-me dos textos escritos
nas divisórias das salas para me tentar enquadrar, mas mesmo assim continuei um
pouco perdida, por não estar a conseguir encaixar as obras em cada uma das 5
secções encontradas pela curadora para organizar a exposição. De obra para obra
existe um bloqueio na minha linha de pensamento, constantemente a ser
interrompida a cada introdução de uma nova obra, sempre à procura de uma
relação com o conceito descoberto na obra anterior, o que é de certa forma
confuso, inquietante e perturbador.
Foi
então que, tal como Alice Liddell, decidi libertar-me da lógica racional e
seguir as minhas próprias associações e interpretações livremente, seguindo um
roteiro motivado pelas das próprias obras. Segui desfrutando a ambiguidade
existente na grande maioria das obras, escolhendo caminho entre a figuração e a
abstracção, e emergido no conceito da exposição.
A
exposição é composta por 69 obras (“número-espelho”) de artistas europeus e está
dividida em 5 secções: Quem sou eu? O
Espelho Identitário / O Espelho Alegórico / A mulher em frente ao Espelho: A
Projecção do Desejo / Espelhos que Revelam e Espelhos que Mentem / O Espelho
Masculino: Autorretratos e Outras Experiências.
Quem
sou eu? O Espelho Identitário incide
na questão da procura de uma imagem onde podemos identificarmo-nos enquanto
sujeito. Isto levado ao extremo, resulta na coincidência entre o sujeito e a
sua imagem, deixando de se distinguir os limites de ambos, como na fotografia
de Cecília Costa (1971) – Isabel,
série Pli, 2005.
Esta
fotografia reflete a dualidade física e psicológica do ser humano. Ao
interpretar aquela figura feminina, senti a vontade de fugir da realidade aparente
e projetar-me na imagem refletiva. Talvez também pelo facto da figura se
encontrar oculta para o espectador, exista o impulso de nos vermos no corpo
daquela figura.
Cecília Costa (1971) – Isabel, série Pli, 2005 |
Neste núcleo sobre a ‘procura da identidade’, a peça Who Cares? (não datada) de Ana Jotta
(1946) despertou a minha atenção. Com ironia e sentido de humor particular esta
representação desafia e dá força ao argumento por trás da exposição. De forma
inteligente, Ana Jotta, no lugar de um ser humano coloca um coelho em frente ao
espelho, alusivo à história de “Alice Do
Outro Lado Do Espelho”, que desvaloriza o que vê no reflexo.
Ana Jotta (1946) - Who Cares?, não datada |
Do
mesmo modo, o Espelho “No”, 2014 - peça de Stefan Bruggenmann (1975) inserida na secção Espelhos que Revelam e Espelhos que Mentem - leva-nos a pensar na questão da
impossibilidade de refletir a realidade como ela existe, e quase se impõe como
uma crítica à arte que o tenta fazer.
Contrariando
as pinturas que representam o espelho, esta peça consiste na utilização de
espelho real, pintado de uma forma minimalista, com a palavra “NO” inscrita no
centro.
Stefan Bruggenmann (1975) - Espelho “No”, 2014 |
É
uma peça em constante movimento refletindo as diferentes situações dos
visitantes da exposição e as outras obras que a rodeiam, denunciando diversas
situações na interacção das imagens com a palavra “NO” – um jogo muito interessante.
Na
secção O Espelho Alegórico, os
artistas recorrem à alegoria para representar vícios, virtudes, e outras
qualidades ou conceitos abstractos. Aqui, o Espelho é encarado como
uma metáfora de virtudes e defeitos, mas também do tempo que passa e que conduz ao envelhecimento e à morte
inevitável, tendo sempre a mulher como intérprete.
Interessou-me
particularmente a peça de Ana Vieira (1940-2016) – Toucador, 1973 – artista que admiro. Tornar presente um contorno para
transmitir uma ausência – ideias muito presentes no trabalho de Ana Vieira.
Trabalho este repleto de representações inventadas compostas por partes de
objectos ou seres conjugados de forma a transmitir-nos uma presença espiritual
ou uma vivência física. O facto de, mais uma vez, não vermos nenhum rosto,
deixa espaço para que o espectador se possa revêr naquele contorno humano inserido
num contexto intimista.
Existe
também a possibilidade de contornarmos a peça e obtermos dois pontos de vista
diferentes, consoante o lado do espelho que escolhemos.
Ana Vieira (1940-2016) – Toucador, 1973 |
A terceira sala é dedicada ao tema - A mulher em frente ao Espelho: A Projecção do Desejo. Uma mulher em frente ao espelho demonstra a sua vontade de ser aceite, apreciada, admirada e até desejada pelo “outro”. Pode também representar muitas outros dilemas como o desejo de uma aparência melhorada, o confronto com as marcas do tempo, uma frustração perante a sua imagem, ou uma procura de identificação.
Privacidade,
sedução, e libertação pretendem ser alguns dos temas na base das obras reunidas
nesta sala.
Paula Rego (1935) - Preparando-se para o Baile, 2001-2002 |
Espelhos
que Revelam e Espelhos que Mentem. Nas obras escolhidas para esta
secção, reparamos como os artistas fazem uso do espelho para criar ilusões de
óptica, imagens ambíguas e misteriosas, que confundem o espectador e o fazem
sonhar uma realidade paralela. As anamorfoses, muito usadas nos séculos XVIII e
XIX, tal como mais adiante, os espelhos convexos como forma de explorar outras
dimensões físicas; fazem-nos pensar na fragmentação da realidade e na ilusão da
mesma, que se compõe aos nossos olhos.
No
domínio da imaginação, estão incluídas nesta sala, várias obras inspiradas na “Alice de Do Outro lado do Espelho”, como
a pintura de António Dacosta (1914-1990) – Sem título (Menina da Bicicleta), 1942: Alice
passeia de bicicleta do outro lado do Espelho, e o às de Copas remete-nos para
a Rainha de Copas – personagem de “Alice
no País das Maravilhas”.
António Dacosta (1914-1990) – Sem título (Menina da Bicicleta), 1942 |
O
artista conhecido como um dos surrealistas portugueses, nesta pintura-colagem faz
emergir um espelho de mão em forma de face vazada, com uma pequena régua onde vemos
os dois olhos recortados. Ao mesmo tempo, o espelho tem também a forma do
buraco da fechadura da porta, por onde podemos espreitar interpretando uma cena
de um erotismo subtil, sinalizada pelo ás de copas. O quadro não me fascina pela
mestria surrealista mas intriga-me pela a composição complexa, que nos dá várias
dimensões físicas, e emocionais.
Com a presença do espelho, alternamos
entre a bidimensionalidade e a tridimensionalidade, tentando entender o que
vemos na imagem.
Ainda
nesta sala, também me impressionou o díptico de Luís Noronha da Costa (1942) Sem título – Díptico, de 1984. O ângulo entre os dois planos
pintados que compõem a obra, permite-nos acreditar na relação das duas imagens.
Como se toda a composição fizesse sentido e nós podéssemos ter dois pontos de
vista em simultâneo, enriquecendo o conteúdo do que observamos. Mais uma vez,
somos forçados a preencher o vazio daquele corpo voltado de costas para nós e
entrar naquela personagem, presa na moldura dos espelhos que se refletem um no
outro.
À direita, Luís Noronha da Costa (1942) Sem título – Díptico, de 1984
|
No último conjunto, com o título O Espelho Masculino: Autorretratos e Outras
Experiências, vemos agrupadas várias obras de artistas masculinos que
utilizam o espelho como objecto central do seu trabalho, onde predomina
o conceito de duplicação. Desde as representações mais clássicas que começam a recorrer ao
espelho para conseguirem uma imagem mais fiel da realidade – antes da
fotografia e do filme – até às obras mais próximas da contemporaneidade, com
experiências conceptuais com recurso a espelhos. Além da presença de artistas
como Jorge Molder, Daniel Blaufuks, ou Richard Hamilton, a desforra
feminina acontece com Paula Rego (1935) no quadro
Mãe, série O
Crime do Padre Amaro, onde é recriada uma personagem masculina do Crime do Padre Amaro,
romance de Eça de Queiroz, com uma saia.
Paula Rego (1935) no quadro Mãe, série O Crime do Padre Amaro |
O
facto desta obra de Paula Rego estar na sala O Espelho Masculino:
Autorretratos e Outras Experiências, juntamente com os artistas
masculinos, não é por mero acaso. Achei curiosa a decisão, e pesquisei sobre as
intensões das curadoras.
Paula
Rego é uma artista defensora da liberdade da mulher face às convenções sociais,
e neste sentido, é muito oportuno colocar uma pintura dela no meio dos pintores
masculinos que afirmam ter uma relação com o espelho apenas por questões
ciêntificas e analíticas, ou por questões práticas de auto-representação.
Neste
quadro, Mãe, criteriosamente
escolhido, a figura central feminina do quadro parece olhar para nós
abstraindo-se da realidade que a rodeia. A figura masculina é ridicularizada,
parecendo frágil e manipulada pelas mulheres, apresentando-se de saias e
admirando-se ao espelho num acto de vaidade. A postura destas duas figuras em
confronto, subverte os preconceitos de género existentes em relação à
representação do espelho na arte.
Saí
da exposição, pelo mesmo sítio por onde entrei, e senti ter feito um percurso
consistente na travessia imaginária do espelho, entendendo por fim, as
intenções da curadora. Acredito que o facto de não ter existido nenhuma ordem lógica
para orientar a visita, pode bem ter sido o sucesso do envolvimento pessoal que
estabeleci ao passar por este processo.
As 5
secções criadas e os textos à entrada de cada uma delas são apenas pistas baseadas
na análise feita por Maria Rosa Figueiredo em colaboração com Ana Paula Rebelo Correia no
desenvolvimento do conceito do espelho enquanto tema alegórico, e de Leonor
Nazaré membro da equipa responsável pela Colecção Moderna da Fundação.
O jogo de espelhos na própria galeria da
exposição, permite-nos ver o reflexo de algumas obras e descobrir outras coisas
consoante o nosso posicionamento físico, além
de incentivar o visitante à participação neste mundo fragmentado de reflexos,
onde a sua imagem se mistura com a das figuras em exposição.
Também
é de salientar o volume considerável de artistas nacionais representados nesta
selecção, penso ser outro dos pontos fortes da exposição dando-nos referências de
várias épocas diferentes.
Ao terminar a exposição, achei muito positivo o
facto de haver espaço aberto para que seja o espectador a construir o caminho
que pretende. Atrevi-me a fazer esse percurso sem grandes preconceitos de
contexto histórico-sociais, baseando-me nos meus interesses e descobertas
pessoais em cada obra, seguindo o meu instinto e deixando-me contaminar; Do
mesmo modo que Alice Liddell fez quando atravessou o espelho e se libertou do
contexto convencional onde vivia.
As obras
que mais me fascinaram foram as mais ambíguas, as mais estranhas ou
controversas, as que podem ser outras coisas para além da sua primeira
aparência; as que nos suscitam dúvida sobre a realidade representada e
simultaneamente a possibilidade de imaginarmos essa mesma realidade da forma
que melhor nos serve.
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