Um misto de
alívio, estranhamento e euforia. Quase como a confirmação de uma ainda não
muito bem compreendida, mas aguardada profecia. Sina ou incumbência de uma
natureza que se anuncia no corpo sem pedir licença à mente que brincava desavisada
na fronteira entre a inocente e romântica rebeldia sonhadora e uma certa
malícia distraída e latente.
É neste
momento, tão comum, quanto marcante na vida de uma menina, em que se encontra
Estela e que é traduzido, honesta e delicadamente, na primeira imagem de Califórnia, filme de longa metragem de estréia de Marina Person
como realizadora, em cartaz no Cinema Ideal, no Chiado, em Lisboa.
Uma plano subjetivo, captado de cima para baixo, da personagem ao se deparar com seu
primeiro período menstrual, nos convida, naturalmente à intimidade de Estela (Clara
Gallo) em sua conturbada passagem pela adolescência.
O filme tem
a sensibilidade de retratar com despretensiosa, mas afiada fidelidade, como era
ser uma adolescente classe média em 1984, na maior cidade do Brasil e faz isso
por um viés pessoal, particular e muitas vezes subestimado nas produções que tratam
da época, relegadas apenas ao
lugar-comum
do contexto político, pós ditadura militar e do movimento diretas-já.
Califórnia preenche um espaço vazio, na expressão do inconsciente de um
período. Soa como um manifesto juvenil de uma época esperançosa, não muito lembrada, mas
intensamente vivida por muitos com paixão, como a da própria realizadora, que fica
evidente através da importância da música na linguagem do filme, na trilha sonora de rock pós-punk de protesto nacional e internacional e também na intimidade um tanto auto-biográfica na abordagem das amizades e identificações, das
descobertas, experiências e da liberdade sexual, ao mesmo tempo já ameaçada ou
assombrada pela Aids, também tocada no filme.
A protagonista é a
garota interessante da turma, meio introvertida e despojadamente bonita, outro acerto de
Califórnia, que poderia facilmente adotar o caminho fácil do sensual e deixá-la
linda e nua, mas prefere ser fiel a tendência em abandonar o formal e os
padrões de beleza, presentes também na discussão do que seria uma expressão
mais livre para as mulheres na época.
Estela sonha
em visitar o tio Carlos (Caio Blat) e conhecer a Califórnia, ícones que representam
a vanguarda e o ideal, quase uma rota dourada de fuga dos os conflitos e questões
da adolescência e em direção ao que parece ser o novo, o libertário, o
prazeroso. Mas a poucos dias das esperadas férias, o adorado tio volta para
casa debilitado, misterioso e digamos que, interpretado por Caio Blat com menos
profundidade do que se esperaria para um papel tão humano e marcante quanto o
de um brasileiro homossexual e afetado pelo HIV nos anos 80; mas ainda com forte impacto na narrativa.
A realidade
se impõe, como comumente parece fazer com muitos dos anseios adolescentes, que
por sua vez se engrandecem em teor emocional, diante da frustração e mesmo ao
mudar de tom com o tempo, impulsionam a entropia um tanto violenta da vida adulta,
deixando, neste caso, apenas os postais na parede do quarto de Estela,
estampada também por outros tantos ídolos sacralizados como The Cure, Smiths,
Siouxie and the Banshees, New Order e o deus absoluto, David Bowie.
E é precisamente em face à desilusão com essa e uma outra paixão, que Estela abre espaço para JM Caio Horowicz, (que recebeu o prêmio de melhor ator coadjuvante no Festival de Cinema do Rio pelo filme) um garoto, que desafia o código da turma e com quem experimenta outras compatibilidades e afinidades, embalados pelas bandas que aterravam em vinis, sempre antes em São Paulo do que no resto do país e pelo existencialismo de "O estrangeiro" de Albert Camus, livro que também faz parte da história e que inspirou a faixa "Killing an Arab", primeiro single do The Cure, que figura numa das cenas mais catárticas do filme, capaz de impactar até mesmo quem não viveu ou não se chacoalhou ao som da banda emblemática.
Não foi fácil
convencer o dono da música, Robert Smith, a liberá-la, já que nada deu a ele
tanta dor de cabeça. Em quase 40 anos, a faixa foi diversas vezes usada com propósitos
xenofóbicos, levando o músico a proibir sistematicamente seu uso.
A cineasta teve que
convencer Smith de que a música não seria usada apenas para ilustrar uma cena,
mas que faria parte da narrativa e felizmente conseguiu
A sequência final do
filme, destaca a realização segura, porém descompromissada, como a frenética
corrida de Estela, pelas ruas de um bairro arborizado de São Paulo, acompanhada
pela câmara viva e parceira e culminando com uma cena de sexo muito natural,
suada, leve e espontânea até em seu nervosismo, que remete a urgência pela
liberdade e pela experiência do prazer, sensações tão presentes na adolescência
e nos muitos filmes sobre adolescentes e para adolescentes, mas que Califórnia,
com simplicidade e autenticidade consegue fazer relembrar, reviver e por que
não constatar, já na maturidade, que sim; tudo valeu a pena.