Luta Armada - Companhia de teatro - Hotel Europa
De André Amálio e Tereza Havlíckova
Espaço da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo
(CPBC), em Lisboa
4 Abr - 14 Abr 2024
18:00H
Ciclo Abril Abriu, do Teatro D. Maria II
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Criação – André Amálio e Tereza Havlíčková
Elenco – André Amálio, Mara Nunes, Mariana Sardinha,
Mauríca Barreira Neves, Mbalango, Paulo Quedas
Criação Musical – Edison Otero
Cenografia – Ana Paula Rocha
Desenho de Luz – Pedro Guimarães
Desenho de Som - Miguel Reis
Produção Executiva – Ruana Carolina, Catarina Sobral
Assistência de Encenação - Biatriz Alves Ribeiro
Comunicação – Patrícia Cuan
Assistência Cenografia e Figurinos - Ricardo Varela
Designer – António Gomes
Co-Produção: Teatro Nacional D. Maria II, FITEI,
Teatro Académico Gil Vicente
Co-Produção das Residências: DeVIR CAPa
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O revolucionário é um homem que faz o sacrifício da sua vida, não tem assuntos nem interesses pessoais, nem sentimentos, nem ligações, nem propriedade, nem mesmo um nome. Tudo nele é absorvido por um só interesse exclusivo, um só pensamento, uma só paixão: a Revolução.
O revolucionário é um homem que fez o sacrifício da sua vida, e que, em consequência, não pertence a si próprio (...) Entre ele e a sociedade trava-se um combate de morte, uma luta aberta ou clandestina, sem tréguas e sem perdão.
O Catecismo ou «As regras nas quais se deve inspirar o Revolucionário»
Livro “Força Armada” Isabel do Carmo
Dedico este livro:
À memória de Carlos Curto, aliás Luís, e Arlindo Garrett, aliás Ernesto, que deram a vida pela liberdade e pela igualdade.
Ao Carlos Antunes, aliás Sérgio, que ligou o primeiro detonador e fez o primeiro assalto e sem o qual não teria havido Brigadas Revolucionárias.
Com esperança que os nossos netos venham a ler o que aqui fica escrito.
Aos velhos operários Artílio Baptista e Gabriel Pedro, que teimaram e estiveram nas primeiras acções das Brigadas Revolucionárias e da ARA.
Aos meus filhos Isabel Lindim e Sérgio Antunes, que são guardadores de histórias e fazem perguntas.
Ao Roger Claustre, que acompanhou a trajectória deste livro, e às nossas intermináveis conversas.
Livro “Força Armada” Isabel do Carmo
Isabel do Carmo conheceu Carlos Antunes em Paris e rapidamente perceberam que existia entre eles uma afinidade política. O ano era 1970. Ela concluía um estágio em medicina e ele estava na clandestinidade, já depois de ter saído de Portugal e de ter entrado em cisão com o Partido Comunista Português (PCP), devido a divergências com Álvaro Cunhal. É esse encontro que está na origem das Brigadas Revolucionárias (BR), organização que ao longo dessa década – mais tarde deu origem ao Partido Revolucionário do Proletariado (PRP) – realizou uma série de operações focadas no derrube do regime. Entre muitas outras organizações que surgiram antes e depois do 25 de abril, traça-se uma história de décadas de luta contra a opressão e de ativismo político. É a este universo que regressamos agora em Luta Armada, a nova criação da companhia Hotel Europa.
Não Matarás
Truque inoxidável
faca
repito faca
escrevo faca pelo corpo, desenho faca no
peito da noite
desembaraço-me do sumo inoxidável doutra faca
faca
sorrio faca no escuro dum beco
Al Berto, O Medo, Assírio e Alvim
A polarização do panorama político, com o crescente poder da extrema-direita, debates cada vez mais violentos e o crescimento dos discursos de ódio foram alguns dos motivos que levaram André Amálio e Tereza Havlíčková a emergir no passado recente de Portugal, dos 20 anos que se seguiram ao 25 de Abril, e que foram também de posições políticas extremadas, violência, luta armada e rede bombista. É daqui que nasce “Luta Armada”, a nova criação de teatro documental do projeto artístico que André e Tereza dirigem, Hotel Europa, apresentada no ciclo “Abril Abriu” do Teatro Nacional D. Maria II.
A Luta Armada continua a investigação da Hotel Europa sobre o passado recente, analisando os projectos políticos que recorreram a acções violentas como assaltos a bancos, colocação de bombas, sabotagens, entre outros, como forma de luta. Este projecto tem como ponto de partida uma extensa recolha de testemunhos de pessoas que militavam nessas organizações, assim como a pesquisa de documentos sobre as suas acções, criando um espectáculo de teatro documental multidisciplinar. Este trabalho começa por descrever as ações de grupos que viam na luta armada a única forma de acabar com o fascismo e o colonialismo português como a LUAR, Brigadas Revolucionárias e ARA; em segundo lugar os grupos de extrema direita que ficaram conhecidos como rede bombista e que atuaram no período do PREC entre 1974 e 1975, tais como o ELP, MDLP e o Movimento Maria da Fonte que alegadamente combatiam a ameaça da instauração de um regime comunista no país, mas também os movimentos independentistas dos Açores e da Madeira, que optaram por ações violentas, como é o caso da FLA e da FLAMA; terminando com o último grupo que começou a sua actividade a partir de 1980 as FP-25 que lutavam para repor o socialismo.
“Há sempre alguém que resiste / Há sempre alguém que diz não”
De volta a Luta Armada, esta nova peça da companhia Hotel Europa, começa numa roda de conversa, com testemunhos dos intérpretes (atores) sobre as suas histórias pessoais e a importância que o 25 de abril de 1974, teve nas suas vidas, principalmente pelas mudanças que trouxe ao país em termos sociais e económicos. As palavras dos filhos da revolução servem igualmente de lugar comum para uma reflexão sobre o que ainda está por fazer. Que valores faltam ainda cumprir. “50 anos depois do 25 de Abril, continua a existir pobreza, continua a existir misoginia, continua a existir homofobia, continua a haver racismo, mas não consigo deixar de pensar que apesar disso tudo, estamos muito melhor do que estávamos antes do 25 de Abril”, diz um dos atores.
Ao entrarmos no espaço da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, encontramos um ambiente de pouca luz, com algumas cadeiras, sofás e poucas mesas. As pessoas que lá se encontram, conversam descontraidamente. A sensação é que acabámos de entrar numa sala privada onde já tudo aconteceu e essa sensação é, de certa forma, constrangedora, porque não nos sentimos pertencentes a um grupo já composto. Rapidamente encontramos um espaço onde nos fixamos e que não dá muito nas vistas. Não queremos chamar a atenção, nem interromper o que parece que já começou. O relógio marca dezoito horas, em ponto e começamos a ouvir alguém a falar no que pensamos nós, num volume de voz acima do esperado. Afinal o que pensávamos ser espectadores como nós, eram na verdade os atores, misturados entre todos. Fazem uma apresentação da sua história pessoal e encaminham-nos para um local onde nos pedem a identificação e só depois de mostrarmos o nosso cartão de cidadão nos deixam avançar para um outro espaço onde encontramos uma correnteza de cadeiras para nos instalarmos confortavelmente. O ambiente permanece escuro e de certa forma ameaçador. Sentamo-nos e preparamo-nos para assistir à peça Luta Armada.
A partir daí, mergulhamos no passado, já depois de seguirmos os atores num corredor onde somos interrogados, como se estivéssemos prestes a ser detidos pela PIDE. Chegamos, entretanto, ao ano de 1961, sentados, assistimos a uma espécie de concerto-performance que nos leva nessa viagem à história daqueles que fizeram das suas vidas um veículo de luta contra a ditadura salazarista. “Na noite de 21 para 22 de janeiro de 1961 dá-se uma ação armada de enorme espetacularidade”, começa por contar André Amálio, referindo-se ao assalto ao paquete Santa Maria em 1961, a chamada Operação Dulcineia, liderada por Henrique Galvão. Foi a semente plantada para o que iria surgir depois.
André Amálio - Encenador, ator e fundador da companhia de teatro, Hotel Europa.
Artista, ator e encenador tem criado espetáculos à volta de temas como a identidade cultural e a história recente de Portugal e recentemente tem desenvolvido trabalho dentro da área de teatro documental. Formou-se enquanto ator e criador na ESTC e na Goldsmiths, University of London e está neste momento a desenvolver um MPhil/PhD na University of Roehampton. Lecionou no curso de Teatro da ESAD e na HAMU (Faculdade de Artes Performativas de Praga). Participou em espetáculos dirigidos por Ajay Kumar, Anna Furse, Antónia Terrinha, António Feio, Francisco Alves, Giacomo Scalisi, Joana Craveiro, João Brites, Lúcia Sigalho, Luis Castro, Madalena Vitorino, Marie-Gabrielle Rotie, entre outros. Fundou com Tereza Havlickova a companhia HOTEL EUROPA para a qual co-criou os espetáculos FÉ, Kino Waltz e criou PORTUGAL NÃO É UM PAÍS PEQUENO, Passa-Porte e Libertação. Está neste momento a terminar a sua tese de doutoramento com o título Re-Escrever a História Colonial Portuguesa Através do Teatro Documental.
“Considero-me mesmo um filho da revolução. Se não se tem dado o 25 de Abril, eu não estaria aqui de certeza hoje a fazer este espetáculo, porque a ditadura fascista tinha uma série de características que marcaram profundamente a minha família, como o facto de não haver um serviço nacional de saúde, por exemplo, na família do meu pai nos anos 50, o meu avô tem um problema de saúde, uma coisa relativamente simples, uma úlcera, mas isso foi suficiente para a família do meu pai ter que se endividar para pagar essa conta e ter imensa dificuldade para pagar a dívida com que ficaram. Do lado da minha mãe, a minha tia mais velha, ela não sabe ler nem escrever, ela assina de cruz e a minha mãe para ter um pouco mais de escolaridade, foi forçada a ir para as freiras para também escapar à pobreza que existia ali naquela aldeia e consegue estudar até ao quinto ano, equivalente hoje ao nono ano. Mas parte da família da minha mãe é forçada a emigrar para França, com naquela leva de portugueses que nos anos 60 emigra para fora do país e outra parte vai viver para Lisboa. Mas vão viver para um bairro de lata na zona da Ajuda e é para lá que a minha mãe vai viver quando sai das freiras e ficam lá a viver até ao 25 de Abril. Agora, 50 anos passados do 25 de Abril, nenhuma pessoa da minha família vive em nenhum bairro de lata. Já somos assim todos super classe média, mas bem ao lado do sítio onde eu vivo, existe um bairro de lata. Bem ao lado do sítio onde foi criado este espectáculo e onde foi ensaiado, existem dois bairros de lata. Continua a haver bairros de lata em Portugal, 50 anos depois do 25 de Abril, continuamos a não ser capazes de contar a nossa história colonial de uma forma inteira, precisamos ainda de fingir que não fizemos coisas que fizemos e não somos capazes ainda de escrever nos nossos livros de história, nos livros que ensinamos às nossas crianças na escola, os nomes das pessoas que lutaram e sacrificaram e que foram presas para que nós pudéssemos estar aqui hoje. De muitas maneiras, o 25 de Abril continua ainda por cumprir”.
Ainda sobre a Luta Armada, em 1967, alguns dos militantes que apoiavam Henrique Galvão e Humberto Delgado vão encontrar-se em Paris para formar uma nova organização que se dá pelo nome de A.R.D. — Ação Revolucionário Democrática. Depois de um assalto ao Banco de Portugal, logo adotam o nome Liga de Unidade de Ação Revolucionária – LUAR.
Toda a história se faz cronologicamente. Ainda antes do 25 de Abril, aborda-se a criação da Ação Revolucionária Armada (ARA), o braço armado do PCP, da BR, fala-se dos movimentos e partidos entretanto formados nas antigas colónias, como a Frelimo, o MPLA e o PAIGC. Mas a história não fica por aí.
Já em pleno Verão Quente, de 1975, vem ao assunto, a Flama — Frente de Libertação do Arquipélago da Madeira e a FLA — Frente de Libertação dos Açores. “Ambos de extrema-direita e muito violentos. Colocação de bombas, agressão a pessoas. O objetivo era ganhar a independência face ao continente devido ao que diziam ser a ameaça comunista”, explica um dos atores. Por outro lado, assiste-se ao surgimento do ELP, Exército de Libertação Nacional, ou o MDLP, Movimento de Libertação de Portugal, e também o movimento Maria Da Fonte. É uma história de violência. Dos atentados perpetrados por Ramiro Moreira à morte do Padre Max, em 1976, a peça constrói uma genealogia de acontecimentos, mas também aborda as diferentes formas de violência armada que marcaram Portugal na sua transição à democracia. Na continuação e chegados à década de 1980, aborda-se os atentados das FP-25 e reflete-se sobre a forma como o país lidou com estes movimentos extremistas, da esquerda à direita. Paira no ar a dúvida:
“Talvez seja a questão que todos devemos fazer a todo o momento, como é que podemos cumprir Abril? O que é que falta para cumprir a revolução?”.
“Apesar de tudo, temos uma posição e não somos completamente neutros. Alguns movimentos extremistas foram silenciados na nossa história recente, daí ser importante mostrá-los, até porque muitas destas pessoas ainda estão no nosso espaço público, quando muitas das pessoas que lutaram contra o fascismo são postas de lado”, sustenta André Amálio.
Há sempre formas de se olhar para a história e para o passado, através do qual vamos sempre, inevitavelmente, ver diferentes lados da barricada. Pelo caminho, o importante – explica a companhia – é que se acabe com os mitos. “A ideia de que a ditadura portuguesa foi suave, como se o 25 de Abril e o PREC tivesse sido um período de loucura, comparativamente à guerra colonial ou à ditadura em si. Tentamos desmistificar e trazer estas visões múltiplas, mas nas quais se demonstram como teve de haver muitas pessoas a resistir para podermos chegar até aqui, em democracia”.
Finalmente, escreve-se uma frase na parede, verso da célebre canção de Adriano Correia de Oliveira: “Há sempre alguém que resiste/ Há sempre alguém que diz não”, como espelho de uma história que não é pacífica. E assim termina a peça, Luta Armada.
… Pergunto ao vento que passa
Notícias do meu país
E o vento cala a desgraça
O vento nada me diz.
O vento nada me diz.
… La-ra-lai-lai-lai-la, la-ra-lai-lai-lai-la,
La-ra-lai-lai-lai-la, la-ra-lai-lai-lai-la.
La-ra-lai-lai-lai-la, la-ra-lai-lai-lai-la,
La-ra-lai-lai-lai-la, la-ra-lai-lai-lai-la.
… Pergunto aos rios que levam
Tanto sonho à flor das águas
E os rios não me sossegam
Levam sonhos deixam mágoas.
… Levam sonhos deixam mágoas
Ai rios do meu país
Minha pátria à flor das águas
Para onde vais? Ninguém diz.
… Se o verde trevo desfolhas
Pede notícias e diz
Ao trevo de quatro folhas
Que morro por meu país.
… Pergunto à gente que passa
Por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
Quem vive na servidão.
… Vi florir os verdes ramos
Direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
Vi sempre os ombros curvados.
… E o vento não me diz nada
Ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
Nos braços em cruz do povo.
… Vi minha pátria na margem
Dos rios que vão pró mar
Como quem ama a viagem
Mas tem sempre de ficar.
… Vi navios a partir
(Minha pátria à flor das águas)
Vi minha pátria florir
(Verdes folhas verdes mágoas).
… Há quem te queira ignorada
E fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
Nos braços negros da fome.
… E o vento não me diz nada
Só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à Beira de um rio triste.
… Ninguém diz nada de novo
Se notícias vou pedindo
Nas mãos vazias do povo
Vi minha pátria florindo.
… E a noite cresce por dentro
Dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
E o vento nada me diz.
… Quatro folhas tem o trevo
Liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
Aqueles pra quem eu escrevo.
… Mas há sempre uma candeia
Dentro da própria desgraça
Há sempre alguém que semeia
Canções no vento que passa.
… Mesmo na noite mais triste
Em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não.
Trova do Vento que Passa
Adriano Correia de Oliveira