Phil Karlson, um assistente de realização veterano, com
colaborações em várias películas da Universal
durante a década de 1930, acabaria por se tornar realizador numa fase já relativamente
tardia. Tendo produzido um corpo de trabalho heterogéneo ao longo da sua
carreira, em que figuram desde comédias musicais e filmes de época a westerns e policiais, Karlson era uma
espécie de “funcionário” do sistema de estúdios, forçado, como tantos outros, a
fazer “vários filmes em que não acreditava (…) para poder usufruir de alguma
liberdade (…) para fazer os que queria. (Dixon, 2007) .
Kansas City Confidential, uma das
pérolas secretas do film-noir dos
anos 50, encontra-se neste último grupo. O ciclo Hollywood B, que a Cinemateca Portuguesa dedica a autores mais
obscuros do cinema norte-americano, mostra assim uma das obras mais
significativas deste realizador, e em relação à qual pretendo basear esta breve
crítica.
Os
filmes de cunho autoral de Karlson giram, invariavelmente, em torno de uma
problemática comum: o retrato de uma América moral e socialmente corrupta,
“onde os homens e mulheres honestos só podem depender de si próprios, se
pretendem alcançar justiça” e em que “tudo vem com um preço”, traduzido,
normalmente, em “sangue, morte e traição”. (Dixon, 2007)
Estas são as regras do jogo presentes em Kansas
City Confidential, lançadas logo após os créditos iniciais do filme, sob a
forma de um pequeno texto introdutório com um duplo sentido: uma premissa para o
enredo (dando conta de um crime aparentemente perfeito, cujas culpas acabaram
por recair sobre um inocente), assim como uma crítica social, transversal à
obra mais “séria” do realizador.
Observamos, logo na primeira cena, Tim Foster
(interpretado por Preston Foster) a estudar o local do seu próximo assalto – um
banco. Foster precisa de uma equipa para levar a cabo o seu plano, acabando por
recrutar um trio de marginais que, com as suas motivações pessoais e
características diferenciadoras, proporcionam um dos pontos mais interessantes
desta obra: Peter Harris, Boyd Kane e Tony Romano (interpretado aqui pelo
genial Lee Van Cleef, um dos “vilões” mais emblemáticos da história do cinema
norte-americano). O plano passa por ludibriar as autoridades, utilizando um
camião semelhante ao de um trabalhador de uma loja local – Joe Rolfe, um
veterano da Segunda Guerra Munidal e ex-cadastrado, que se assume aqui como o
protagonista relutante do filme. O assalto é bem-sucedido e, quando os membros
do gang se reagrupam após o mesmo, Foster entrega a todos uma carta rasgada que
os identificará aquando da entrega da sua quota-parte do saque (os assaltantes
estão mascarados e não se conhecem). Entretanto, as autoridades acabam por
prender Rolfe, torturando-o durante dias na esquadra, até ser finalmente dado
como inocente e posto em liberdade. Aqui se dá “o ponto de não retorno” desta
narrativa, uma vez que o protagonista não pode voltar ao seu antigo emprego. O
tempo que esteve sob custódia da polícia, acrescido ao facto de ser já um
ex-presidiário, destruíram irremediavelmente a sua reputação, tornando-o num
pária aos olhos da sociedade. Sem nada a perder e frustrado pela incompetência
das autoridades, Rolfe decide então fazer justiça pelas próprias mãos,
encetando uma procura pelos verdadeiros culpados, que culminará no obrigatório confronto
final com Foster.
No
que diz respeito ao enredo, Kansas City
Confidential apresenta alguns dos temas recorrentes do film-noir: a opção por personagens moralmente ambivalentes, por
oposição à tradicional dicotomia herói/vilão dos filmes dos grandes estúdios da
época, um foco na parte mais sórdida e desfavorecida da sociedade e a evocação
– em segundo plano – dos traumas da Segunda Guerra Mundial, que se imiscuem de
forma subtil na narrativa, por intermédio da personagem de Rolfe. Já em termos
formais, o trabalho de Karlson – talvez por constrangimentos de budget – não denota a estilização dos
planos e cuidado com os décors, tão próprios de filmes maiores do género, como The Third Man e The Big Sleep. Na verdade, em Kansas
City Confidential, fica-se com a sensação que a preocupação por localizar
espácio-temporalmente a acção em Kansas City (e posteriormente no México) se
tratou mais de um pensamento acessório, do que outra coisa. O filme aposta mais
em planos fechados e de conjunto, pautados pelos ocasionais estabilishing shots que, embora
permitindo uma dinâmica interessante entre personagens, tornam a acção algo
uniforme e, por vezes, aborrecida. Onde o filme brilha, contudo, é na montagem,
que consegue transmitir uma tensão crescente até ao showdown entre Rolfe e Foster. É esta mesma tensão que se
estabelece após o assalto, aliás, que, juntamente com o anonimato do trio de
assaltantes, influenciou Reservoir Dogs,
de Quentin Tarantino. Talvez o feito mais famoso desta obra de Karlson.
Kansas City Confidential é um filme interessante de um autor menor que, embora
não se conseguindo impor como uma obra de referência do film-noir, é eficaz na veiculação de alguns dos preceitos que
tornaram este género tão apelativo: A ancoragem do enredo num contexto
verosímil em relação aos anos do pós-guerra e na sordidez dos meandros em que
estas personagens se movem, assim como uma aposta clara num protagonista cuja backstory o torna mais complexo do que
os tradicionais heróis do cinema dos grandes estúdios. Não obstante denotar
algumas fragilidades técnicas, Kansas
City Confidential consegue, mesmo assim, manter uma narrativa
entusiasmante, inserindo-se de forma coerente no universo temático dos melhores
filmes de Karlson.
Referências:
Dixon, W. W.
(June de 2007). Phil Karlson: The
Forgotten Master of Film Noir.