“Noite Stravinsky” – pela Companhia Nacional de Bailado, em três tempos
I.
Os flashes da Noite
II.
As sensações
III.
O análogo da memória
I
As imagens da dança como
construções da nossa própria memória ou imaginação.
A estrutura da dança ou o efeito
que provoca nos expectadores surge como uma espécie de paralelismo com a nossa própria memória. O modo como nos recordamos dos acontecimentos ou emoções que
temos está intimamente relacionado com o modo como nos relacionamos com a
dança. Esse momento aparentemente ininteligível em que os corpos esvoaçantes
compõem uma melodia para os nossos sentidos.
Como se as cores, os movimentos dos
corpos e os sons convergissem num único momento, como se o espetáculo de dança
nos desse a oportunidade de descobrir um novo sentido em nós, talvez mais puro
e mais desperto. Se me detenho na reconstituição da memória do espetáculo, do
programa que foi apresentado escapa-me logo toda a sensação.
Para mim de fácil recordação
ficaram três palavras e já é tanto, se nos detivermos na emoção daquilo que significaram
naquela Noite de Stravinsky. São elas cadeira, brilho e cor.
É difícil escrever sobre aquilo
que nos está tão perto. A dança está dentro de nós no movimento que fazemos
para nascer já dançamos, no balanço do corpo que se levanta para um dia de
trabalho, no mais quotidiano de um autocarro a chegar à paragem e os
transeuntes a aproximarem-se e movimentarem se para o seu interior, no recolher
da noite quando nos encolhemos na cama, a vida é uma dança tão próxima que se
torna difícil falar sobre ela.
Mas regressando à apresentação
da Noite de Stravinsky no teatro Camões, constituída por três bailados: o
primeiro “AS BODAS” para mim a palavra é cadeira, pode ser simples e primordial, mas é o balanço que
me surge quando penso nessa peça. A imagem mais marcante será uma espécie de
conjunto de corpos juntos que não são homens nem mulheres, mas balançam e
balançam e nesse balançar têm a cadeira metalizada como o suporte do seu corpo, num
equilíbrio brilhante que reluz e que é enigmático ao mesmo tempo. É um eterno
balançar.
No segundo “INTERMEZZO”, a
palavra é brilho já
nos diz quase tudo não nos faltasse a sombra para perceber a luz e novamente
esta dicotomia entre luz e sombra e há uma espécie de brilho que une ambas
faces da moeda, o dia e a noite, claro e escuro. Nessa simbiose perfeita
encontramos a música que está sempre presente nesta noite com uma orquestra ao vivo
a guiar os nossos ouvidos para caminhos longínquos muito para além da sala de
espetáculos.
Por fim, no último bailado
composto por dois atos, mas não menos pungente e inquietante a “SAGRAÇÂO DA
PRIMAVERA” para mim é cor,
uma invasão de cor. Várias cores tão marcadas é como se tornassem em sons vivos
que caminham do interior da terra tão visceral e enigmático. Que chega a faltar-nos
o ar.
II
As sensações das palavras e dos
sons. Os movimentos dos corpos em torno de uma luz misteriosa na Noite de Stravinsky.
Citando Eugénio de Andrade, para
melhor explicitar o pretendido.
"(…)
um corpo é o lugar da furtiva
luz despida, de carregados
limoeiros de pássaros
e o verão nos cabelos;
é na escura folhagem do sono
que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.
O real é a palavra."
III
A memória surge à consciência tal
como uma espécie de dança dos sentidos, quando nos abstraímos da tentativa de
explicar as causas ou consequências que observamos ficamos mais próximos de realidade
interior de cada movimento. Como se a nossa memória funcionasse como uma espécie
de dança em que os sentimentos se vão misturando e reativando à medida que são atualizados
por novas cores e sensações. A memória como uma síntese que nos aparece à consciência
quando na verdade é uma construção contínua e ininterrupta que vai sendo atualizada.
E que surge como uma tentativa de legitimar a realidade, de lhe conferir um
sentido.
Ora o espetáculo de dança mais
do que nos apresentar uma peça é uma narrativa de corpos que contam uma história
sem voz e que por isso é tão livre e pode tão maravilhosamente ser apropriada por
cada mente, por cada ser pensante que a adequa e integra na sua própria história
de vida constituindo para si uma memória única e quase indecifrável. Uma dança
em que continuamente vivemos não apenas exterior, mas sobretudo interior em que
os nossos pensamentos e emoções voam como sonhos. E constituem uma espécie de memória
enigmática, só inteligível para cada um de nós neste domínio de interioridade irredutível,
individual, irrepetível e por isso fascinante.