Fundeado na doca seca de Cacilhas entre o Farol e os antigos estaleiros da Lisnave, a Fragata D. Fernando II e Glória remonta ao século XIX, cujo espaço é hospedeiro a peças de arte e inúmeros itens de coleção. Património da Comissão Cultural da Marinha, é hoje a 4ª mais antiga fragata de guerra, e foi a última a realizar a rota marítima à Índia. As visitas guiadas em datas especiais, como no passado 20 de maio – Dia da Marinha – contam com um recontar de acontecimentos a bordo e um workshop de Arte de Marinheiro, com demonstrações de nós.
O navio veleiro é mandado
erguer por D. João VI em 1824 e a sua construção inicia-se mais tarde em 1832,
seguida de outros períodos de atrasos durante os reinados atribulados de D.
Miguel e D. Pedro I. Com os lucros da produção de tabaco na Índia, a construção
reganha força e termina em 1843 e o navio assume os nomes do casal real da data.
Erguida na Índia, em Damão,
escolha motivada pelo historial de experiência em construção naval naquele
enclave, pelo acesso a mão de obra barata na época e proximidade do estaleiro a
florestas de madeira de teca. Nome comum das Tectona grandis, árvores
que atingem os 50 metros de altura e dão origem a uma madeira com leveza
considerável em relação à sua durabilidade, características atrativas à
construção naval. Embora de origem asiática, são descobertos vestígios pelos
europeus em destroços nas ilhas do mar Egeu, sugerindo a sua utilização em
barcos e navios desde a antiguidade.
Conta com uma história
relativamente tranquila, nunca chegando a travar qualquer combate por não ter
havido necessidade de recorrer a armamento durante os 33 anos de atividade,
servindo de embarcação para transporte de mercadorias, passageiros, e
ocasionalmente presos a despojar noutros territórios portugueses.
Já inativo, aquando da segunda
metade do século XX, Fernando II e Glória albergava uma “obra de assistência
social [1], um
projeto de habitação e recrutamento de crianças e jovens órfãos ou de famílias
carenciadas. Um incêndio a 3 de abril de 1963 deflagrou a bordo, reduzindo a
fragata a 13% da sua estrutura original. O rigor nos trabalhos de restauro nos
mais recentes anos 90, com reconstituições históricas dos ambientes e
quotidiano da vida a bordo nas viagens do século XIX, concede ao navio o prémio
Maritime Heritage Award, distinguido pela instituição inglesa World
Ship Trust em 1999. Podemos hoje comparar o design do navio veleiro aos modelos
britânicos que surgiram em seguida naquele século, sugerindo uma possível
inspiração por parte da armada Real britânica no desenho português.
A restauração da estrutura
recuperou parte da madeira original, no espírito de preservação e conservação
que o navio vindica, enquanto peça histórica e espaço museológico. O navio
veleiro consta de quatro pisos: o convés, à superfície, por onde é feita a
entrada a bordo e aos restantes espaços; a bateria; a coberta; e o porão. É ao
descer das escadas estreitas para a bateria que nos deparamos com o primeiro
manequim que habita a fragata. Amarrado pelo pescoço e pés, o “João Pedro” terá
sido um marinheiro castigado pela libertação não autorizada de passageiros de
bordo e pela resistência às autoridades que o questionaram.
Nos compartimentos pessoais do comandante observam-se uma coleção de bordados, cristais, porcelanas e pratas portugueses oferecidas por mecenas à data dos restauros da fragata entre 1980 e 1998, cujos nomes se encontram imortalizados no espaço. A este espaço de conservação juntam-se outros, como a botica onde seriam armazenadas ervas medicinais, mezinhas e remédios, e a messe de oficiais – salas que alojam peças de coleção e manequins modelo de figuras verídicas, em a entrada é limitada ao público e a sua observação é feita através das pequenas janelas presentes em cada porta. Os manequins presentes a bordo são trabalhos feitos a partir de registos históricos e documentais de caras de tripulantes, e de modelos vivos de antigo pessoal da marinha.
A bateria conta ainda com uma cozinha
e rancho central, com reproduções de fogões e material da época, e, na sua
proximidade, o curral, com transporte de animais vivos destinado ao consumo. A capacidade
do curral portaria uma estimativa de 1000 galinhas e 100 porcos para as longas
viagens aos principais destinos da armada – Angola, Moçambique e Índia.
O piso abaixo, a coberta, seria
um espaço multifuncional, em metamorfose ao decorrer do dia. Serviria principalmente
de refeitório nas horas diurnas e de espaço religioso para as rezas ao levantar
das mesas no final do dia. Na hora do recolher, eram erguidas redes ao teto e o
espaço transformar-se-ia em dormitório. Nesta mesma zona encontra-se um
oratório a Nossa Senhora da Conceição, peça que data ao século XVII exposta tal
como estaria à data das viagens do D. Fernando II e
Glória, encastrada numa espécie de deambulatório de bordo. O piso é ainda
casa à praça de armas do navio, com uma coleção de espingardas e sabres.
Por fim, o porão alberga a zona
técnica e de carga do navio, servindo ao transporte de pólvora e outros materiais
atinentes à artilheria e carpintaria. O espaço é habitado por manequins que
posam em trabalhos dessas mesmas áreas e conta com um extenso número de outras
figuras: um médico num espaço de enfermaria ambulante, decorado com os
instrumentos utilizados nas intervenções cirúrgicas da época; uma família de
civis num pequeno camarote improvisado durante viagens de transporte de
passageiros; um grupo de homens num momento de descontração, a talhar pequenas
embarcações em madeira.
As obras de restauro do D. Fernando II e Glória e a sua abertura ao
público são de um tal elevado valor histórico e cultural que insere o navio no
conjunto dos espaços museológicos do concelho de Almada. A inserção de peças de
coleção e das obras de escultura de manequins nas muitas divisões do veleiro
concedem vida aos espaços e recontam a história do quotidiano da vida na
marinha, criando uma experiência única incomparável, por exemplo, ao que seria
a exposição desses objetos numa sala típica de museu de paredes brancas. Numa
visita à fragata para o conhecer do espaço em si, as peças expostas – ou dispostas
– contam para o realismo da experiência. Sem elas o navio parecer-nos-ia vazio
e a experiência menos real. Da mesma forma, numa visita com objetivo de
apreciar as peças e a arte a bordo, é o espaço por sua vez distingue e eleva a
experiência.
[1] (1963), "Diário de Lisboa", nº 14477, Ano 42, Quinta, 4 de Abril de 1963, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos. http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_15410
Figura
1. Vista do interior da messe de oficiais. Fotografia da autora.
Figura
2. Vista do interior da botica de bordo. Fotografia da autora.
Figura
3. Vista do camarote de alojamento de passageiros civis. Fotografia da
autora.
Figura 4. Outra vista do camarote. Fotografia da autora.
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