terça-feira, 30 de novembro de 2021

El Río/The River: A collaboration

El Río/The River: A collaboration (Cidade do México: Gato Negro, 2018) é um livro de artista impresso em Risograph, constituído por fotografias da artista estadunidense Zoe Leonard (1961) e poemas de Dolores Dorantes (1973), poetisa e jornalista mexicana exilada nos Estados Unidos por causa do seu empenho como activista. 

O tema principal do livro é o rio que faz parte da fronteira entre o México e os EUA: o rio chamado Rio Bravo de um lado e Rio Grande do outro; a fronteira entre o estado americano do Texas e os estados mexicanos de Chihuahua, Coahuila, Nuevo León e Tamaulipas. O rio, representado nas fotografias tiradas por Zoe Leonard em 2017, constitui o encontro/contraste entre duas realidades violentamente separadas uma da outra e, ao mesmo tempo, indissociavelmente ligadas uma à outra. O rio, constitui um ponto de possível travessia, mas também de possível não-retorno.

A corporalidade e concretude desta fronteira é realçada pelo meio fotográfico, enquanto que o texto escrito mostra a transição de uma língua para outra - a passagem de um país para outro - do espanhol para o inglês. Esta dicotomia é também realçada pelo título bilingue do livro, que revela o significado que Dorantes e Leonard atribuem a este projecto. A intenção deste livro de artista parece ser a de estabelecer um diálogo entre estas realidades confinantes, de criar pontos de contacto. Dentro e através dele, o limite e a separação são desafiados pelo encontro e a hibridação. A dupla vida do rio: bloqueio e movimento, emerge da colaboração destes linguagens.













KINDERBUCH e BILDERBUCH de Dieter Roth

    "What can a book do?" 
    "Does it have to have text?" 
    ┃"How come one makes books about books?"

      - Dieter Roth


Dieter Roth

"Um dos artistas mais influentes do período pós-Segunda Guerra Mundial, Dieter Roth nasceu em Hanover, Alemanha, em 1930, filho de mãe alemã e pai suíço, e morreu em Basel, Suíça, em 1998. Dieter Roth era um artista de imensa diversidade e amplitude, produzindo livros, gráficos, desenhos, pinturas, esculturas, montagens, instalações, obras de áudio e mídia envolvendo slides, gravações sonoras, filme e vídeo. Também trabalhou como compositor, poeta, escritor e músico. Frequentemente colaborou com outros artistas, subvertendo o princípio da autoria. Esses artistas incluíam figuras significativas como Richard Hamilton, Emmett Williams, Arnulf Rainer e Hermann Nitsch. Mas foi a colaboração longa e simbiótica de Roth com seu filho, o artista Björn Roth, que permanece como um testemunho da enorme e duradoura potência do seu processo inquieto e implacável."

Hauser & Wirth


KINDERBUCH

Contribuiu para uma nova conceção do livro, quabrando as suas barreiras e elevando-o a um objeto de arte. É um livro não narrativo, não linear.

Através da intenção de atrair as sensibilidades infantis, Roth criou uma obra que dá liberdade ao leitor de navegar pelo livro de forma despreocupada e desconectada de uma lógica ou fio condutor. Sendo que não tem uma narrativa linear, esta pode ser criada de qualquer forma e apartir de qualquer página. Existe, então, uma vertente interativa com o objeto, na medida em que o leitor vai construindo a sua composição, tendo a oportunidade de ser o autor da sua própria narrativa. Assim, cada página dá valor à que a precede ou sucede, não funcionando individualmente. "É um processo de orientação e perceção ao longo das páginas", por isso, "O livro providencia um espaço onde estas formas e cores se tornam ativas, onde interagem e crescem. A performance é temporal, aparentemente musical". À medida que o leitor avança no livro as composições tornam-se mais complexas, as formas crescem e decrescem criando um ritmo visual percursivo.








BILDERBUCH

Seguindo a mesma lógica minimalista, Bilder Buch é construído por 20 páginas multicolores onde são cortadas formas quadradas que se vão sobrepondo criando cores e composições diferentes. "It stages a poetic optical performance, the ray of superimposed shapes and colors delivers a caleidoscopic display".

Assim, o livro segue uma lógica bidirecional sendo que pode ser lido do "início" para o "fim" ou do "fim" para o "início", não estando a reler nem a repetir a primeira experiência de narrativa. Cada viagem tem uma rota diferente. O autor não tem controlo sobre o leitor. O livro comporta-se como uma performance onde elementos físicos se encontram, criam uma harmonia visual mas depois divergem, tudo criado pelo leitor.









Fontes:


Samuel Beckett: Esvaziamento e Ressignificação

ESTRAGON:

What am I to say?

VLADIMIR:

Say, I am happy.

ESTRAGON:

I am happy.

VLADIMIR:

So am I.

ESTRAGON:

So am I.

VLADIMIR:

We are happy.

ESTRAGON:

We are happy. (Silence.) What do we do now, now that we are happy?

VLADIMIR:

Wait for Godot. (Estragon groans. Silence.) Things have changed here since yesterday.

ESTRAGON:

And if he doesn't come?

VLADIMIR:

(after a moment of bewilderment). We'll see when the time comes…

            - Excerto da peça Waiting for Godot – Parte II. Samuel Beckett 



             O trabalho do dramaturgo Samuel Beckett (n. Dublin, 1906) foi revolucionário para sua área, concebendo uma nova forma de fazer teatro. Sua excepcionalidade provém não somente da excentricidade de seus personagens e cenografias, mas da forma como linguagens corporais, imagéticas e falada são articuladas para criar um plano onde ocorre não somente uma suspensão da descrença aparentemente dificultada pela lacuna que separa cenografia e diálogo, mas uma significação dialógica baseada mais na forma da linguagem e do que em sua anunciação imediata.

Beckett joga com as palavras, ignorando convenções gramaticais, incutindo novos significados a termos quotidianos — ou engendrando termos novos —, utilizando-se da repetição exaustiva de palavras e infiltrando significados na cacofonia da repetição. O resultado é uma experiência existencialista que provoca questionamentos sobre os propósitos da existência, da condição humana, a identidade, a vida e a morte — não em seus personagens, mas no espectador violentamente confrontado com suas ânsias.

Na peça Waiting for Godot (1953) — que retrata dois personagens em sua espera por um terceiro, de nome Godot, que nunca aparece — o autor faz uso de diálogos compostos por sentenças que dificilmente possuem mais de uma linha. Os significados interiores de tais diálogos são inteiramente dependentes da interpretação externa, uma vez que são desenvolvidos à medida que corre a narrativa. A simplicidade do diálogo nesta peça é fundamental para o tipo de liberdade interpretativa que dá ao espectador: a cacofonia, a repetição, a terminologia corriqueira, todos estes elementos são mobilizados na criação de um texto tão vago quanto preciso, capaz de entregar nas mãos de quem o lê ou presencia a responsabilidade de sua significação.

Desenhar uma árvore

O título deste texto nasce de um pequeno livro, com o mesmo nome, de Bruno Munari. A partir desta ideia faço uma ligação aos trabalhos de desenho de Ângelo de Sousa e João Queiroz, artistas portugueses que trabalham a ideia do desenho como exercício no processo de trabalho e cruzo com a minha proposta de livro de artista como exercício. 




Nesse livro Munari propõe: 

“Ao desenhar uma árvore, lembre-se sempre de que cada galho é mais fino do que o anterior. Observe também que o tronco se divide em dois galhos, então esses galhos se dividem em dois, depois os de dois, e assim por diante, e assim por diante, até que você tenha uma árvore inteira, seja ela reta, ondulada, curvada para cima, curvada para baixo ou dobrada lateralmente pelo vento."


Ao longo do livro acompanhamos uma série de indicações e desenhos mais ou menos esquematizados na tentativa de criar uma série de regras para o desenho de uma árvore. Acompanhamos famílias de árvores e muitas variações dessas mesmas famílias. Munari agrupa semelhanças, variações e cria exceções a qualquer regra, aponta alterações criadas pelas intempéries ou acidentes improváveis. É um texto exaustivo mas divertido que nos leva à possibilidade de todos conseguirmos fazer um desenho.


No final Munari acaba com, “a perfeição, diz um antigo provérbio oriental, é bela, mas é estúpida: é preciso conhecê-la, mas quebrá-la. Agora que, penso eu, ficará claro como desenhar uma árvore, não precisa de seguir o que eu mostrei de forma ; se você já conhece a regra, pode desenhar a árvore que quiser, todas diferentes das que viu neste livro.

Pode desenhar com lápis, com caneta, com um pedaço de tijolo, com pincel de barbear, com cartão ou mesmo com esparguete, com tudo o que quiser. 

E, o mais importante, ensine aos outros.”


Ângelo de Sousa



Ainda sobre Desenho e Árvores, Ângelo de Sousa diz,


“Eu vejo, e acredito que isso acontece à generalidade dos meus colegas, qualquer forma no papel que procuro repetir ou a que procuro sobrepor uma mancha ou um risco ou o que quer que seja com o instrumento que tenho na mão, no momento, e que até posso mudar a meio, para outra cor, para outra técnica, para lápis, para tinta da china, qualquer coisa desse género. Quer dizer, vou vendo sucessivamente, indicações do que poderia existir naquele papel e tento, mais ou menos, ir seguindo essas formas com a possível fidelidade. Costumo dizer que, quando chega um momento em que se olha para lá e se diz “já não vejo mais nada”, isto é, vejo, vejo que não posso pôr mais nada, acabou o desenho." 


“...meia folha de papel de máquina, e um marcador chamado Flowmaster, que era uma coisa genial, magnífica, permanente e versátil, e foi aí que comecei a ver a forma lá no papel e a tentar segui-la. Quando não a seguia, não ficava bem, ficava mais para a direita, ficava com uma inflexão; de qualquer maneira via a forma que se seguia, ou a mancha, ou o risco, ou um dégradé, o que seja.(...) Era uma forma que brotava de baixo, que estava mais ou menos central, pesava mais em baixo e em cima era leve. Por isso continuei a chamar aquilo “árvores”, mas não era propriamente um nome, eu costumo dizer que era uma alcunha."


João Queiroz


Termino com um excerto de uma entrevista a João Queiroz, por Óscar Faria, onde o artista considera o acto de desenhar como um exercício.



“...o exercitar constante de uma série de capacidades, sejam elas mecânicas, técnicas, corporais, sensíveis, imaginativas, nas suas mais diversas combinações, mas não aplicadas imediatamente como segundo um programa externo, pré-estabelecido. Penso que um autor propõe a si mesmo exercícios originais, não pelo valor do exercício em si, mas porque essa é a forma de lavrar e aprofundar um mapa que à sua volta foi estabelecendo, cujos locais foram determinados por muitas outras instâncias para além da vontade de exercitar. Este exercício é muito distinto da ideia vulgar que vê o exercício como a imposição de um programa exterior que visa determinado fim, um determinado desenvolvimento, um determinado resultado pré-visto. O exercício como eu o entendo é algo de aberto, sem modelo prévio de resolução, sem estratégias de aproximação à imagem já dada de um resultado. É mais um modo de explorar um território, um modo de colocar novos locais num mapa. É determinado, nos seus protocolos de feitura, por dados já provindos desse território, intuídos como fazendo já parte dele. É um modo de aprofundar e de alargar, de clarificar, enriquecer e, também, uma maneira de criar zonas de sombra, de complicação e de incoerência.”



Entre estas três visões do desenho nascem muitas possibilidades de fazer. Neste intervalo interessa olhar para uma árvore e pensar nas múltiplas formas de a ver.



Referências:


MUNARI, Bruno, Disegnare un albero, Edizioni Corraini, 1978

SOUSA, Ângelo, Transcrições e orquestrações| Desenhos de Ângelo de Sousa, CAMJAP, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004

QUEIROZ, João, Obras sobre papel, Centro Cultural Vila Flor, 2009




             


 “Uma fotografia é um instante de vida capturado para a eternidade”

O cérebro humano é uma máquina, com a incrível capacidade de armazenar diversas memórias. No entanto é limitado e por esse motivo nem tudo pode ficar arquivado.

Lembro-me em pequena, da minha mãe transportar consigo uma máquina fotográfica de rolo, ao pescoço, para qualquer lugar que fôssemos. Ela tinha alguma necessidade em registar os momentos. Poucas foram as vezes que pressionei o botão para capturar algo, mas muitas são aquelas em que apareço na captura. Desde então que sempre tive a curiosidade de recorrer à visualização dessas fotografias, que relatam essencialmente, a minha infância e a da minha irmã. Na verdade, creio que talvez tenha herdado esse encanto pela fotografia e a constante necessidade de registar os momentos graças à minha mãe. E também creio que parte da minha memória de infância é derivada das inúmeras vezes a observar os álbuns.

Antes da existência da fotografia, os momentos eram captados através de pinturas rupestres e mais tarde através de pinturas realistas de grandes pintores. Através da popularização das máquinas fotográficas, as fotografias passaram a fazer parte do nosso dia-a-dia. A origem e o desenvolvimento da fotografia proporcionaram-nos a descoberta da nossa própria identidade. É através da fotografia que captamos momentos únicos, que jamais se repetirão. Aliás, o principal objetivo da fotografia, é tornar momentos únicos em algo eterno. É ela que testemunha o que realmente ocorreu naquele instante. A fotografia vai muito além de umas meras recordações. Ela é responsável por desvendar a nossa história, a nossa identidade, a nossa evolução, as nossas grandes conquistas, os lugares que visitámos e as pessoas que conhecemos. Ela não pode de forma nenhuma ser vista apenas como uma simples fotografia. Ela tem que receber o enorme valor que representa nas nossas vidas, pois é ela que nos dá provas daquilo que mudou ou não e daquilo em que nos transformámos.

É bastante importante conservar aquilo que já vivemos, pois a fotografia é capaz de despertar diversas emoções ao reviver uma memória antiga. Temos assim, a possibilidade de reproduzir esses episódios, nas nossas mentes, acrescentando ainda alguns pormenores não capturados mas que nos recordamos ao reviver essa imagem. Também é possível observarmos as nossas fotos de infância e não termos memória suficiente para recordar aquele momento que vivenciámos. Nessas alturas, a mente é capaz de produzir uma história e é aí que começamos a imaginar e a relacionar com memórias de que nos recordamos. Acaba por ser como uma espécie de um puzzle, em que vamos encaixando as peças até o completar. Neste caso o puzzle é a narrativa da nossa vida. 

No entanto, para nos podermos lembrar de algo que aconteceu ou de alguém, precisamos de ser estimulados a isso. O estímulo visual, através de imagens, para que nos possamos recordar de tudo com mais facilidade é essencial para a nossa memória.


Referências:

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

 De Profundis, Valsa Lenta.


 


Registamos diariamente imagens, sons, sensações, gestos, acontecimentos que nos contam ou que lemos, notícias que mais tarde contamos em conversas casuais. Partilhamos nas redes sociais o que ouvimos e gostamos, as nossas fotografias, o que vemos e achamos graça mas, aquilo que nos interpela e de alguma forma conduz as nossas ações quotidianas, guardamos e recuperamos constantemente, tornamos modo de vida, rotina diária. Refiro-me por exemplo aos hábitos mais simples do dia‑a‑dia, nos quais nem sequer pensamos pois são automáticos. Também não é hábito pensar naquilo que fazemos automaticamente.

O nosso próprio corpo atua quase autónomo, dono de si próprio no que diz respeito à sua relação com o ambiente ao seu redor. Muitas vezes movemo-nos quase sem dar por isso. Vamos na rua com um determinado destino e quase sem darmos conta já chegámos. A nossa mente entreteve‑se todo o trajeto ocupando-nos com outros pensamentos e o nosso corpo levou-nos ao lugar pretendido. Dou-me muitas vezes conta deste facto, que é transversal a todas as idades. Quando somos crianças, muitas vezes ouvimos que estamos com a cabeça na lua, frase que significa que embora estivéssemos fisicamente presentes, a mente navegava por outros mares.

Esta temática interessa-me particularmente, não só este alheamento associado ao automatismo, mas sobretudo a perda da capacidade de sermos alguém que é muitas coisas ao mesmo tempo. Mesmo em momentos de meditação não deixamos de ter consciência do nosso próprio ser, do espaço que ocupamos e que nos rodeia.

Em De Profundis, Valsa Lenta, José Cardoso Pires conta-nos na primeira pessoa a experiência de deixar de saber de si próprio. Curiosamente, este foi um acontecimento vivido e contado na primeira pessoa sobre um período de tempo em que ele não se reconhecia e que define como perda de identidade. Na sequência de um acidente cardiovascular (AVC) em 1995, José Cardoso Pires viveu esta experiência, tantas vezes irreversível, de deixar de ter capacidade de falar, ler e escrever, em suma comunicar. O “outro” como ele designa a sua própria existência nesse período de tempo, passava os dias deambulando pelos corredores do hospital sem conseguir reconhecer objetos comuns e pessoas. O esquecimento, que ele define como uma desmemória permanente, ocupou o seu quotidiano afastando-o das relações com os outros. Neste período vivido em inconsciência de si próprio, o seu nome deixa de ser pronunciável e a identificação dos seus entes queridos e respetivos nomes deixa de ser possível. Esvaece todo o sentido. Mesmo o reconhecimento da sua própria imagem e daquilo que o rodeia deixa de ser entendível.

“Lembro-me de que essa manhã foi invadida por um aguaceiro desalmado, ouvia-se uma chuva grossa e pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque quando acabou a Edite ainda estava ao telefone. A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear‑me com a passividade de quem está a barbear um ausente – e foi ali.
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado‑presente, de imagem‑objecto, do eu com outro alguém ou do real com a visão que o abstracto contém.” (Pires, 2015)

O outro aspeto focado neste pequeno livro é a surpreendente recuperação deste estado de ausência. Como se fosse uma nova oportunidade de vida. Neste caso, José Cardoso Pires aproveitou este regresso ao seu ser consciente para, tempos depois, redigir este livro na tentativa de descrever a experiência vivida sem pretensão a explicações científicas. No capítulo a que ele chama de “Entrelinhas duma Memória” atribui outras possibilidades de título ao seu relato: “Memória”, “Memória Descritiva” ou “Memória de uma Desmemória”. Pegando nesta ideia de ausência de memória poderíamos considerar que a memória é o que nos permite descrever, compreender e caracterizar tudo aquilo que nos rodeia, objectos e pessoas, e o nosso próprio ser enquanto indivíduos. Uma desmemória poderia ser descrita como o esquecimento permanente de uma memória outrora parte da nossa consciência. Eliminar estes registos conduz-nos a uma “morte branca” como refere José Cardoso Pires: “Bem sei, a morte branca não existe, eu estive lá. Tudo o que me aconteceu nessas paragens cabia aos outros, não me tocava. Era um glaciar. A morte branca. A memória congelada. Se o sonho é já por si uma memória, sem memória poderá o indivíduo sonhar?”
 
Não poderia terminar sem referir o exemplar prefácio do livro, da autoria de João Lobo Antunes, médico neurologista e amigo do autor. Nele encontramos uma “carta ao amigo” repleta de reflexões sobre o período de “desmemória” e a maneira como José Cardoso Pires o viveu e descreveu no seu livro. Cito um breve excerto:

“Devo dizer-lhe que é escassa a produção literária sobre a doença vascular cerebral. A razão é simples: é que ela seca a fonte de onde brota o pensamento ou perturba o rio por onde ele se escoa, e assim é difícil, se não impossível, explicar aos outros como se dissolve a memória, se suspende a fala, se embota a sensibilidade, se contém o gesto. E, muitas vezes, a agressão, como aquela que o assaltou, deixa cicatriz definitiva, que impede o retorno ao mundo dos realmente vivos.”

Obras Citadas

Pires, J. C. (2015). De Profundis, Valsa Lenta. Lisboa: Relógio D'Água Editores.

pensar a casa

Y Llechó la luz​, 2016,
Wire, paper mache, sponge, acrylics, textile

81 x 66 x 66 cm





A partir desta imagem da casa suspensa do artista Jorge Mayet e em meio a situação pessoal de mudança de país, [re]penso o espaço concreto da casa, o lugar do ambiente seguro que foi totalmente desfeito, vendido ou doado e que, agora em transição, adapta-se e busca reerguer-se em outro espaço e lugar.

Jorge Mayet é cubano, vive e trabalha em Espanha. A aspiração do seu trabalho está na distância de sua terra natal e nas memórias de suas paisagens caribenhas, por meio de suas obras apresenta os ​bohios​, típica casa do camponês cubano. As casas estão inseridas em pedaços de terra firme, acompanhadas de árvores e/ou raízes, e estas são instaladas na parede ou estão em suspensão, Mayet diz que: “minhas instalações são encarnações de minhas experiências, elas permanecem indefinidamente suspensas por fios invisíveis, como os que me ligam com minhas memórias e raízes” (2014).

Ver a imagem de uma casa suspensa, faz parecer ser possível pensar que podes sempre carregar as suas casas consigo, a independer de quão suspenso esteja no tempo presente — “porque hoje sua casa, está cá, consigo.. estás na segurança das suas terras, pisas o chão e é aquecida pela luz, que deverás está acesa” (texto meu). O filósofo Gaston Bachelard em seu livro a Poética do espaço, por meio da fenomenologia apresenta a casa como esse lugar potente e imagético, lugar do afeto que abriga e protege, afirma que 


a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. Só os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorização. Ele usufrui diretamente de seu ser. Então, os lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos num novo devaneio. É exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós. ​(BACHELARD, 2008, p. 26).


A casa integra as memórias em um espaço que transcende o tempo, seu registo não é necessariamente linear, não importa a data específica mas sim o lugar e o espaço da intimidade e seus valores. 

Neste processo de mudança, ver a imagem da casa em suspensão evidencia que, habitar uma casa, não se refere ao fato de possuir uma residência, mas ao que acontece no entre das suas paredes concretas, as vivências experienciadas na casa carregam a singularidade das histórias, relaciona-se com o si mesmo, com quem se é no mundo, ela registra e guarda as lembranças, envolve e aquece. Assim, a casa é um ambiente instituído de imagens que fala única e exclusivamente de quem nela fez morada. Para Bachelard (​2008, p.20) ​“a imagem da casa é a topografia do nosso ser mais íntimo” e prossegue dizendo:


Assim, a casa não vive somente do dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpretam e guardam os tesouros dos dias antigos. ​(BACHELARD, 2008, p.25).


Os tesouros antigos, as imagens da memória, estão nos lugares que o corpo armazenou. Como o historiador Hans Belting apresenta em sua teoria da imagem: “se outrora os lugares foram ​lugares da memória – lieux de mémoire)​, como lhes chamou Pierre Nora –, hoje torna-se sobretudo ´lugares na memória´​” (BELTING, 2001/2014, p.84). A alteração entre as preposições “de memória” e “na memória” parece sutil, mas na verdade a contração entre ​”em + ​a”​, de origem latina ​”in”, apresenta um movimento para dentro e deve ser usada com verbos que indiquem ​lugar.​

Deste prisma, a casa como lugar nas memórias é relacional, já que um corpo qualquer não contém imagens a não ser quando é visto, cheirado, ouvido, tateado ou saboreado. Contribui para este entendimento o teórico em comunicação, Norval Baitello Júnior, ao afirmar que a imagem sempre é relacional, isto é, está no interno-externo, no eu-outro, no ​meio ambiente da relação” (BAITELLO, 2019, p.62, grifo meu) e segue:


Um ambiente, portanto, é um mundo que nos cerca (conforme também diz a palavra alemã ​Umwelt​, mundo em volta). Tal conceito nos oferece um método distinto daquele que as ciências da Comunicação normalmente praticam, de buscar compreender o objeto em si mesmo, independente do seu contexto ou seu entorno. A perspectiva metodológica que se oferece agora pressupõe uma indissociabilidade entre objeto e entorno, uma vez que o objeto está imerso em um ambiente, determina-o e é determinado por ele. (BAITELLO, 2019, p.62)


Pode-se dizer que viver a casa é estar no meio ambiente onde as relações acontecem, de lá saem e lá também permanecem, sejam nas fotografias que enfeitam as paredes ou nos álbuns, sejam nos bibelôs que enchem as estantes ou nas histórias contadas nos encontros de família, ou na lembrança do cheiro do bolo no café da tarde na casa da avó — a casa, assim, permanece, como lugar na memória do próprio corpo.



Referências
BACHELARD, Gaston. ​A poética do espaço​. São Paulo: Martins Fontes, 2008
(Original publicado em francês 1957).

BELTING, Hans. A​ntropologia da imagem. Para uma ciência da imagem. Lisboa, Portugal: KKYM, 2014 (Obra original publicada em 2001).

CONTRERA, M. S.; BAITELLO JUNIOR, N. Na selva das imagens: Algumas contribuições para uma teoria da imagem na esfera das ciências da comunicação. Significação: ​Revista de Cultura Audiovisual​, [S. l.], v. 33, n. 25, p. 113-126, 2006. DOI: 10.11606/issn.2316-7114.sig.2006.65623.


Bruno Munari - Livro Ilegível

Bruno Munari (1907-1998), além de designer gráfico, também foi arquiteto, escultor, professor, pedagogo, escritor, filósofo e artista. Utilizava da sua vasta experiência e conhecimentos multidisciplinares para refletir sobre os limites da arte e da sua relação direta com sensações através das formas, cores e texturas de maneira criativa. Revolucionou a linguagem do livro quando o encarou como objeto capaz de comunicação, independente dos textos.

O que era comum, segundo o autor, era avaliar a importância do livro através do seu texto e género literário, sem considerar as potencialidades dos outros elementos que definem um livro, como o papel, formato, encadernação, tinta, tipografia, elementos gráficos e etc.. Com exceção de edições especiais, no qual era valorizado todo o material em torno do conteúdo do livro, a provocar uma experiência diferente na prática da leitura, mas sempre com o texto como foco principal. Munari defende que a experimentação é o caminho para conhecer as possibilidades de expressão dos materiais que compõem um livro, assim, nasce o termo “livro ilegível”, que o autor usa para definir os seus projetos de livros que utilizam apenas da visualidade dos recursos gráficos, sem utilizar nenhum texto. São uma série de livros sem texto, em formato quadrado e páginas de diferentes cores e cortes, onde põe em prática a criatividade.

Por conta do conceito pré-concebido do que é um livro e para que serve, Munari teve algumas dificuldades de aceitação por parte de editores nessa sa nova proposta de material. O livro “Na noite escura”, editado em 1952 foi recusado por diversos editores porque não apresentava nenhum texto, portanto era visto como um objeto que não carregava consigo informações e conteúdo de valor para ser passado adiante. Depois de editado em 1956, por Giuseppe Muggiani, o livro foi publicado em diversos outros países e línguas. 

 

1- O livro “Na noite escura”


2- Livro Ilegível

“Normalmente quando se pensa em livros pensa-se em textos (…) que se imprimem sobre as páginas. Pouco interesse se tem pelo papel, pela encadernação do livro, pela cor da tinta, por todos aqueles elementos com que se realiza o livro como objeto. Pouca importância se dá aos caracteres tipográficos e muito menos aos espaços brancos, às margens, à numeração das páginas, e a tudo o resto. O objetivo desta experimentação foi ver se é possível usar o material com que se faz um livro (excluindo o texto) como linguagem visual. O problema, portanto, é: pode-se comunicar, visual e tacitamente, apenas com os meios editoriais de produção de um livro? Ou: o livro como objeto, independentemente das palavras impressas, pode comunicar alguma coisa? O quê?”

- Bruno Munari


Com a compreensão do potencial do livro como objeto, Munari criou os pré-livros. A preocupação era justamente trazer o prazer da experiência com os livros nos primeiros estágios da infância, explorando a sua materialidade, antes do contacto com o livro escolar. Portanto, a intenção era proporcionar à criança um contacto agradável, lúdico, experimental e sensorial com o objeto. Os pré-livros de Munari são pequenos, para serem facilmente manipulados pelas mãos de uma criança, dos mais diferentes materiais e encadernações, para conviverem em meios aos brinquedos e estar no ambiente onde a criança associa ao divertimento. Desta forma os livros constroem associações prazerosas e quotidianas, favorecendo a aproximação do objeto no processo de desenvolvimento infantil. A partir de formas simples e mistura de materiais num único objeto, Munari cria projetos poeticamente ilustrados, não se preocupa em criar respostas em seus poemas visuais, mas sim acionar no leitor possibilidades infinitas.


3- Pré-livrosl

domingo, 28 de novembro de 2021

Entediante

 

Para outro projecto estou a ler sobre o tédio. O que é o tédio, as várias teorias sobre o tédio. O tédio como falta de actividades e distrações, o tédio como passar do tempo. O aborrecimento, o fastio, o enfado. O dia-a-dia, em que “nada” acontece. 


Tédio, aborrecimento, fastio, enfado, falta de entusiasmo.

vs

Distração, diversão, entretenimento, motivação, prazer.



Quando eu era pequena dizia muitas vezes que “não tinha nada para fazer”. “Mãe, o que é que eu faço? Não tenho nada para fazer.” Lembro-me bem porque a minha mãe ficava exasperada ao propor-me coisas que eu recusava. “Faz um desenho” “Lê um livro” “brinca com as bonecas” e eu respondia “não me apetece”. Tudo me parecia chato e estava aborrecida com tudo. Mas era nestes momentos que eu me forçava a fazer alguma coisa em que a minha criatividade vinha ao de cima. Pegava em objectos e juntava-os, criando novos objectos, escrevia histórias ou lia, ou simplesmente ficava a pensar enquanto olhava pela janela. Lembro-me com nostalgia dos momentos em que olhava pela janela para os prédios em frente, muitas vezes com atenção às pessoas que entravam e saíam de casa. 

Estes momentos já não existem na minha vida nem na da maior parte das pessoas. Os momentos de tédio foram substituídos por momentos nas redes sociais, momentos em busca de informação no Google, ou simplesmente a ver vídeos parvos. 


No séc. XX, no meio filosófico, o tédio surge associado com um tipo de possibilidade. 

Heidegger defende que devemos compreender o tédio existencialmente — um tipo muito particular de tédio, a que ele chamava “tédio profundo” — como um sentimento de possibilidade nele mesmo. Para Heidegger há três tipos de tédio, em que o primeiro está ligado à passagem do tempo: estar um período de tempo sem “nada para fazer”, um tempo que se arrasta em que a pessoa se sente entediada; um segundo tipo em que a pessoa está ocupada com uma actividade ou acontecimento e só mais tarde se apercebe que afinal passou esse tempo aborrecida, e o terceiro, o tal tédio profundo em que tudo é entediante. A passagem do tempo e a própria existência são a base do tédio.


Kierkegaard considera muito curioso que o tédio, que por si só tem uma natureza tão calma e serena, possa ter tanta capacidade de iniciar movimento. O efeito que o tédio provoca é absolutamente mágico.


Walter Benjamin chama ao tédio o pássaro de sonho que choca o ovo da experiência e Marx considera-o o desejo por conteúdo.


Duchamp diz Os happenings introduziram um novo elemento à arte, que ninguém lá tinha posto: o tédio. Fazer algo de maneira a entediar alguém é algo que eu nunca tinha imaginado! O que é uma pena, pois é uma bela ideia


Surge então o tédio como arte, a provocação de aborrecimento no espectador/leitor. Dick Higgins, do movimento Fluxus chama a isto o “super-tédio” (super-boredom no original).


Uma das primeiras obras que deliberadamente procurou provocar tédio foi Vexations de Erik Satie, escrita ainda no final do séc. XIX. Foi recuperada nos anos 40 e em 1964, John Cage realizou a primeira performance pública, respeitando as instruções do compositor de tocar a peça 840 vezes, repetidamente. Esta primeira performance durou 18 horas. A própria melodia é aborrecida – ou antes, criou em mim um sentimento estranho de ansiedade: ouvi durante 15 minutos e parei. 


Outro exemplo é I Will Not Make Any More Boring Art de John Baldessari, para uma exposição na qual ele não conseguiu estar presente e por isso pediu que escrevessem na parede esta frase, recriando o castigo (tornado mais popular talvez pelo Bart Simpson) na parede. Para sua surpresa cobriram todas as paredes com a frase, que é em si mesma a aceitação de que a arte pode ser aborrecida. 





Anywhere or not at all, Peter Osborne, Verso, 2013, London