quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Origem da sinalética: quando o ser humano começou a comunicar no espaço

 

Origem da sinalética: quando o ser humano começou a comunicar no espaço


Enquanto termino um trabalho de sinalética, comecei a pensar em quais terão sido as primeiras formas de o ser humano comunicar informação no espaço. A sinalética é o conjunto de sinais e sistemas visuais criados para informar e guiar pessoas e esta forma de comunicação pode ter surgido no Mesolítico ou até mesmo no Paleolítico.

Os povos nómadas provavelmente utilizavam, como principal meio de orientação, os elementos visuais da paisagem, claro que também podiam recorrer a pistas ambientais não visuais, como o vento, os cheiros, os sons, a temperatura, a humidade, exemplos como “segue junto ao rio e vira em direção à montanha quando sentires uma corrente de ar” ou “vai até ao vale e vira no carvalho grande em direção ao lago” ilustram bem essa forma intuitiva de orientação. Sabe-se que o nosso cérebro, mesmo sem recorrer à visão, consegue manter uma representação interna de um trajeto percorrido percebendo o movimento do corpo no espaço (subir, descer, virar, parar) e criando assim uma noção interna de como voltar para trás num percurso. Ainda assim, faz sentido pensar que a forma mais eficaz de melhorar a orientação seria através de sinais visuais. E modificar intencionalmente elementos da paisagem podem ter sido as primeiras maneiras de um humano comunicar no espaço com os outros. Atos tão simples como cortes em árvores, virar pedras numa determinada direção ou deixar ossos num caminho, podem ter sido as primeiras formas intencionais de demarcar caminhos ou territórios de maneira visível, podem ser os primeiros sinais de direção, de aviso e informação concebidos por seres humanos.

Um dos exemplos mais evidentes de comunicação no espaço são os cairns: montículos de pedras. Vários arqueólogos acreditam que já no Mesolítico (10.000 a.C.) estes montes podem ter tido uma função direcional, ajudando grupos nómadas a encontrar passagens ou trilhos. Estes foram utilizados por muitas culturas pré-históricas e serviam para marcar rotas em terrenos abertos. Além disso, podiam também assinalar sepulturas ou lugares sagrados.



Outra possível forma de comunicação espacial podem ser algumas gravuras rupestres. É possível que através de símbolos como círculos, linhas, pegadas ou setas estilizadas gravadas em árvores ou pedras tivessem o objetivo de comunicar no espaço. Algumas destas gravuras podiam sinalizar caminhos para fontes, caminhos de caça ou marcação de território de um clã.




Há ainda uma forma de sinalização mais efémera e prática: marcadores. Estes consistiam em objetos deixados intencionalmente em locais estratégicos. Restos de caça são o exemplo mais evidente, mas outros objetos simbólicos poderiam ser deixados por uma pessoa para comunicar com outros membros do seu clã, deixando mensagens muito práticas como "por aqui passou caça" ou "caminho para o acampamento".
















Procurámos sempre comunicar através do ambiente. Quando a  comunicação e orientação eram fundamentais para a sobrevivência, estes primeiros gestos eram atos de comunicação e de pertença, uma forma proteger e orientar os outros. Com o passar do tempo, estes gestos evoluíram para sistemas complexos de orientação e identidade visual que se tornaram essenciais na forma como nos movemos, entendemos e habitamos o espaço. E hoje, quando desenhamos ou seguimos uma seta, estamos a dar continuidade a uma das tradições e formas de comunicação mais ancestrais.







Sombra a Sombra

 

Sombra a Sombra

De Sombra a Sombra vejo
uma Sombra de cada vez.  


É um verso da letra de uma música de Amália Rodrigues que dá nome ao álbum da artista Milhanas. E assim, um sentimento de quem se revê nas letras que ouve é descoberto. Este é o efeito que os temas do álbum Sombra a Sombra causam quando ecoam no nosso ouvido, no nosso corpo e até na nossa alma.
        Podia seguir-se uma descrição de letras e músicas que explicassem de forma literária o sensorial dos temas de Milhanas. Mas, não. Isso seria tirar o efeito sentimento expontâneo em quem quer que lesse este comentário e por curiosidade fosse ouvir o álbum. Envés disso, este comentário será ambíguo e, talvez, pouco revelador e misterioso, chegando até a ser confuso.
        O que são as Sombras a que Milhanas se refere? Certamente não serão aquelas regiões escuras formadas pela obstrução de luz por parte de um determinado obstáculo. Mas talvez sejam isso, obstáculos. Obstáculos que não se veem, no entanto, sem dúvida que se sentem com uma intensidade quase inexplicável.
        A verdade, é que todos temos este lado Sombra. Alguns mais visíveis que outros, mas todos o temos Lá. Lá nas catacumbas do nosso ser. Escondidas, ocultas, a tentar passar pelas frechas de dor que sentimos ao longo daquilo que chamamos de vida. E quando é que estas Sombras se veem? Quando é que aparecem os obstáculos? Talvez, os obstáculos sempre lá estiveram e apenas quando entra um pouco de luz em nós se formem as Sombras. Talvez aí as possamos ver e compreender o que são estas Sombras, todas as suas formas, e de onde vêm.
        Não é fácil, atenção, muitas vezes olhamos para elas, mas não as vemos tal como são. A luz muda e as Sombras tomam várias formas. É difícil e demora tempo até que percebamos as dimensões do obstáculo. No início, é assustador, a Sombra é, tal como o nome indica, sombria. É difícil confiarmos no que não vemos e no que vemos com várias formas. Mas a luz vai entrando. E quanto mais olhamos para a Sombra mais forte a luz incide e mais nítida a Sombra se torna. Talvez as Sombras não sejam o oposto da luz, mas o seu reflexo mais honesto e verdadeiro. E, talvez, as várias formas que tomam demonstrem todas as verdades que há nelas e em nós. Talvez existam apenas para nos lembrar que a claridade, quando chega, não vem sozinha — revela consigo o contorno do que ainda não compreendemos. O contorno do obstáculo que tentamos perceber. 
        É neste espaço que muitas vezes nos encontramos e que Milhanas parece cantar. Um espaço intermédio onde a luz não cega, mas também onde já não temos medo do escuro. As Sombras de que fala e que todos temos são obstáculos humanos: são memórias, fragilidades, saudades, histórias que não aceitamos, partes de nós que tentamos esconder até de nós mesmos. Que insistem em permanecer escondidas, mas que também nos definem. Temos sempre esta tendência e necessidade de esconder aquilo o que em nós não gostamos. Sem nos apercebermos que quanto mais fugimos, mais a Sombra cresce e mais nos define. Ouvi-la é quase como um olhar para dentro do nosso ser — uma viagem pela matéria invisível das emoções, agora visível, definida pela Sombra. Parafraseando, "De sombra a Sombra vejo", vemos, as formas, reconhecemos a verdade e escolhemos, no lugar da Sombra, retirar o obstáculo e deixar a luz entrar.
            Dizem que a melhor arte vem dos lugares de maior sofrimento e dor e que os melhores artistas são os que mais sofrem. Não sei se será verdade. Para mim, esse tal lugar, pode ser uma Sombra. Não é necessariamente um lugar de dor, será se a deixarmos estar. Se não a quisermos ver e curar. Entretanto, se nos permitirmos olhá-la e aos seus contornos, pode ser que se torne na maior arte que alguma vez criámos.
        No fim, Sombra a Sombra é um convite a aceitar essa coexistência: o claro e o escuro, o que mostramos e o que escondemos, o que sentimos, o que reprimimos e deixamos por dizer. Entre a voz suave e a densidade das palavras, Milhanas constrói um espelho — e cada um de nós vê ali, no reflexo, o que consegue e suporta ver, de Sombra a Sombra, uma Sombra de cada vez.






















https://open.spotify.com/intl-pt/album/0ozAQXRCGl3YchkCIvD9ib?si=xE3z3G_pRJqqa-kpRe-jbg

Azulejo Publicitário em Portugal

 Ao passar por Porto de Lagos, há alguns meses atrás, deparei-me com um painel de azulejos no qual se encontrava representada uma paisagem composta por uma praia, uma chaminé típica do Algarve e flores. No centro, destacavam-se as palavras: “Algarve... e Schweppes”. Mais tarde, descobri que existem vários painéis publicitários em azulejo da mesma campanha, espalhados por diferentes locais do Algarve.





Ao pesquisar mais sobre o assunto, percebi que foi em Portugal que esta forma arrojada de fazer publicidade teve a sua maior expressão.

Nos finais do século XV chegaram a Portugal, vindos de Sevilha, os primeiros azulejos, usados para decorar igrejas e palácios. Em 1560, começaram a surgir em Lisboa as primeiras oficinas de olaria a produzir azulejos, e já no século XVI o azulejo tornava-se um símbolo visual da identidade portuguesa. Até ao final do século XVIII, o azulejo manteve uma função sobretudo decorativa, mas na segunda metade do século XIX, com o progresso industrial e o desenvolvimento urbano, surgiu uma nova utilidade: a publicidade.

O azulejo publicitário espalhou-se por quase todo o país e foi usado por vários tipos de comércio: leitarias, padarias, mercearias, indústrias cerâmicas, serralharias, lojas de materiais elétricos, entre tantos outros.

Com o crescimento urbano, novas populações migraram para as cidades. Muitos comerciantes e industriais de origem rural começaram a utilizar o azulejo como meio de comunicação comercial, recorrendo a composições mais simples, apenas com lettering nas fachadas. Até aos anos 30, predominavam estilos naturalistas, que os comerciantes de origem rural utilizavam nos azulejos publicitários. Este tipo de imagética, alusiva à ideia de que os produtos tinham “origem no campo”, possibilitavam a criação de uma relação de maior confiança e proximidade entre o consumidor e o estabelecimento.






Com a Revolução Industrial e os novos métodos de impressão, a publicidade e a comunicação visual evoluíram rapidamente. Os cartazes passaram a fazer parte da vida das cidades e surgiram novos tipos de letra e novas abordagens gráficas. O aspecto dos painéis de azulejos publicitários passaram a refletir esta fase experimental, marcada por criatividade, diversidade e ausência de regras rígidas.






É comum encontrar diferentes estilos tipográficos misturados no mesmo painel, muitas vezes de forma improvável. Essas combinações dão aos azulejos um espírito urbano. Os tipos de letra que surgem já estão completamente afastados do desenho caligráfico e tornam-se cada vez mais experimentais. Começam a aparecer as letras egípcias (ou mecânicas), associadas à Revolução Industrial, as letras grotescas (sem serifas e com pouco contraste), e também letras ornamentais, ligadas à fantasia e Art Déco. E surgem letras alongadas, condensadas, com sombras, contornos decorativos e formas geométricas e as mais variadas experiências tipográficas.






É também notória a utilização constante de letras em caixa alta, um grito. É evidente que o objetivo é reforçar o impacto visual, já que muitos painéis encontravam-se em ruas estreitas ou de passagem rápida e era essencial chamar a atenção dos transeuntes. É também de notar que a informação tipográfica presente era reduzida apenas ao essencial, pois grande parte da população era iletrada. Desta forma, os painéis costumavam mostrar apenas o nome do estabelecimento e ilustrações dos produtos vendidos, para que a leitura fosse direta e objetiva.

Ao contrário da publicidade moderna, geralmente efémera, os painéis de azulejos publicitários resistiram ao tempo. Graças à sua durabilidade, tornaram-se testemunhos visuais que preservaram marcas, estilos e memórias que representam o comércio e refletem a sociedade da época.



Todas as imagens foram retiradas do arquivo: Azulejo Publicitário Português

terça-feira, 28 de outubro de 2025

O Habitat do Jovem Artista - Espaços de Exposição Alternativos

Uma inauguração é um tempo-espaço estranho e viciante. Ninguém chega muito cedo, com medo de ser o primeiro, nem muito tarde, com medo de perder a exposição. Toda a energia vive, normalmente em cerca de duas ou três horas de conversas, bebidas e pausas de “vamos lá fora que aqui está calor”, acompanhadas por cigarros.

No meio de tudo isso vê-se arte e pondera-se os "comos" e os "porquês". São ambientes sociais e que, não fossem os locais e as obras sempre diferentes, se tornariam repetitivos rapidamente. Na pequena cidade de Lisboa a comunidade artística vai-se conhecendo muito facilmente ao frequentar este género de eventos, surgem os jovens artistas com sede de partilha. Nas grandes instituições estão os grandes artistas, e as inaugurações parecem algo muito elitista e pouco acessível, apesar de serem eventos populosos com entrada e comida gratuitos. Neste sentido, vão surgindo espaços alternativos de exposição, muitas vezes manipulados pelos artistas e não tanto por galeristas ou curadores, locais férteis de entreajuda onde as oportunidades se criam a elas mesmas.

Um destes eventos foi, por exemplo, a exposição “Nada Mais Que Isto”, que ocorreu dia 23 de agosto. Tomás Saraiva é um jovem artista que frequenta neste momento o mestrado de curadoria em Coimbra. O seu amigo Jaime Martins-Barata mudou de casa em agosto, e portanto, entre fins e inícios de contrato, com uma casa vazia, ainda por sofrer mudanças, surgiu a ideia de fazer uma exposição. A partir do texto “Contra a Interpretação” de Susan Sontag, numa exposição que durou apenas o tempo da inauguração, surgiu algo equilibrado e extremamente forte. A folha de sala, feita por Margarida Leal, tem de ser lida por um espelho, e pelas paredes da pequena casa íamos encontrando frases que remetiam a esta ideia da necessidade (ou não) de interpretação de um texto ou objeto artístico. Com artistas em estados de carreira distintos e um ambiente acolhedor, passou-se uma noite bonita sem grandes barreiras.


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No dia 19 de setembro inaugurou a exposição “Brincar É No Pátio!”. João Marques e Tatyana Cristina, ambos ex-alunos da Faculdade de Belas-Artes, abriram as portas do seu atelier conjunto em Carnaxide e deram a oportunidade a colegas e amigos de mostrarem as suas obras. Participaram mais de trinta pessoas nesta exposição que decorreu ao longo de três dias (19, 20 e 21 de setembro). A inauguração começou às 18h e estendeu-se até às 4h da manhã, com dj’s e músicos pela noite dentro que participavam também na exposição. Peças de parede, pinturas, fotografias, esculturas, objetos, livros e vídeos. Havia uma secção só com diários gráficos para consulta; obras que se adaptavam ao espaço, cerâmicas num tanque cheio de rãs que acompanhavam os dj’s; uma secção de mostra de videoarte ao ar livre; e hambúrgueres vegetarianos na grelha.


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A razão de ter decidido escrever sobre este tema foi uma inauguração que se passou na última sexta-feira, dia 24 de outubro. O coletivo W.A.S.P. é formado por um conjunto de estudantes de diferentes áreas, Odete Lopes (design), Tiago Verdasca (arquitetura) e Tiago Boto (pintura) e tem como objetivo a organização de eventos para integração numa comunidade artística, dando palco às mais diversas práticas. Esta última exposição tinha como título “Vogados” e passou-se num antigo escritório de advogados, tendo sido possível visitar nos dias 24, 25 e 26. Através de convite e open call, vinte e nove artistas apresentaram o seu trabalho. Organizado por salas, achei curioso o facto de cada uma ter uma atmosfera diferente, quase como se pertencessem a pequenos universos. Talvez porque a iluminação também variava de sala para sala, visto que não tinham acesso a eletricidade, a improvisação ganhou espaço através de fios que vinham do andar de cima e se ligavam a abajures de diferentes formas espalhados pelos escritórios.


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Estes espaços e eventos são o que fazem os jovens artistas sobreviver em Portugal. Iniciativas autopropostas, que alimentam a vontade de criação. Improvisos que dinamizam espaços e reestrutram o modo de pensar uma exposição. São as nascentes do que mais tarde chega às grandes massas e se considera “boa arte”, lugares de uma beleza imensa, onde tudo flui e comunica.


1. Vista da exposição "Nada Mais Que Isto", escrito "contra factos não há interpretações" numa parede com pilhas de livros do dono do apartamento.
2. Vista da exposição "Nada Mais Que Isto", escrito "conteúdo <3" na porta do frigorífico.
3. João Marques, Sete dias, 2024
4.Mapa da exposição "Nada Mais Que Isto".
5. coletivo ssensível, conteúdo ssensível, 2025. livro de artista à venda na exposição.
6. André Carreiro Oliveira, Grifo, O Trampolim Vertical, 2025
7. Sarah Pripas, Deixei a luz e fiquei com o ponto, 2024
8. Mapa da exposição "Brincar É No Pátio"
9. Wesley Barros, na minha casa a água da sanita é bebível, 2025
10. João Salvador, Armadilha, 2025
11. Rita Fonseca, Sem Título, 2025
12. Mapa da exposição "Vogados"

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Gatafunhos, Garatujas e outros Rabiscos


A experiência de dar aulas de ilustração a alunos que, na sua maioria, têm uma aprendizagem muito reduzida na técnica do desenho faz-me frequentemente chocar com o facto de todos nós carregarmos preconceitos e expectativas acerca do que deve ser a “boa” arte ou o “bom” desenho (ou, às vezes, tão somente daquilo que deve contar como arte) que tendem a funcionar como elementos inibidores e paralisantes da criação e da criatividade.


Forçar estes alunos a desenharem apesar dos seus entraves, apesar dos seus critérios de perfeição, é quase sempre uma experiência inicialmente frustrante ou mesmo dolorosa. Mas quando o processo corre bem é quase sempre porque se deu uma reconciliação com o que o aluno via como um defeito, uma insuficiência. Como se a dado momento o desenhador se passasse a identificar com as suas imperfeições naturais e passasse a ver nas suas idiossincrasias e nos seus trejeitos naturais uma forma de expressão pela qual se pode responsabilizar e passar a cultivar. Neste processo eu acho que encontramos um acto figurativo de dar à luz, de fazer um objecto passar de um mundo a outro, passar de um mundo de objectos acidentais para o mundo dos objectos intencionalmente artísticos.


À maneira de método maiêutico do Sócrates de Platão, o papel do professor de desenho também tem qualquer coisa de parteira, ajudar o aluno a reconhecer os seus gestos e os seus traços no papel como sendo unicamente seus, criaturas suas, e transportá-los para o mundo dos objectos da arte.


O mundo está cheio de linhas e traços que foram deixados órfãos, que nunca ninguém perfilhou ou neles reconheceu um acto criativo, e nesse sentido é quase sempre encantador encontrarmos espalhados em cadernos e papéis soltos os rabiscos que a humanidade sempre produz quando está entediado numa sala de aula, a conversar ao telefone ou sentado numa mesa de um café à espera de alguém. São milhões de folhas e folhinhas, post-its e caderninhos, margens de jornal ou talões de supermercado, que acabam órfãos num qualquer caixote do lixo próximo. Mas quantos daqueles gatafunhos não conterão linhas e arranjos originais, modos de traçar, preencher e texturar que nunca ninguém tinha feito antes? Quantas dessas garatujas nas mãos do artista certo não teriam motivado movimentos estéticos e artísticos inteiros? Um mistério de estatística incerta.



Felizmente, alguns desses rabiscos são acidentalmente preservados por motivos insuspeitados e que nada têm que ver com o mundo da arte. É o caso dos rabiscos que se encontram no Arquivo Histórico do Banco de Nápoles e que adornam centenas de páginas de extratos contabilísticos e outros documentos bancários.


Os chamados scarabocchi (a expressão inglesa doodles é já quase universalmente reconhecida para nomear estas marcas no papel) deixados pelos contabilistas e guarda-livros dos séculos XVII e XVIII, encontram-se por todo o lado nestes documentos, entalados entre colunas de números, nas guardas das capas, nas margens das folhas.




Estes rabiscos não nasceram de um impulso artístico no seu sentido convencional, nasceram antes da monotonia e do aborrecimento. Os escriturários e contabilistas dos banco públicos de Nápoles -  funcionários destacados com a função de registar e copiar as mesmas transacções dia após dia - viviam um universo de tédio e de repetição. E, aqui, os desenhos parecem exercer uma função de libertação, de mergulho parcial num qualquer outro mundo que comunica com a nossa rotina trivial sem darmos por isso.



Não é minha pretensão convencer ninguém que leia este modesto texto de que os arquivos escondem grandes e geniais obras de arte. Provavelmente nem uma. O meu objectivo é antes apontar para a ténue membrana que pode separar a intenção de produzir arte do fluir espontâneo e desinteressado da nossa mão. Essa membrana é ténue de facto e, para ser rompida, não precisa de muito mais que um acto voluntário nosso de tomarmos responsabilidade pelo que surgiu acidentalmente e cultivarmos como nossas as descobertas que daí seguem.



(Infelizmente não consegui reunir muitas imagens significativas para ilustrar este texto. O que aqui figura é, na sua maioria, tirado do livro de Giuseppe Zevola, Piaceri de Noia, publicado em Milão em 1991.)


domingo, 26 de outubro de 2025

Cultura e Resistência Visual: Zineb Sedira (Joana Roque, 14707)

A exposição Zineb Sedira: Cultura e Resistência, atualmente patente no Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian, propõe uma reflexão sobre memória, identidade e visualidade pós-colonial. A artista franco-argelina, a viver entre Paris e Londres, tem construído uma obra profundamente comprometida com a história das diásporas e com os modos como as imagens constroem, e contestam, narrativas hegemónicas.

No CAM, Sedira revisita o imaginário político e estético das décadas de 1960 e 1970, evocando o fervor dos movimentos de libertação africanos e o papel do cinema como instrumento de solidariedade internacional. O visitante é acolhido por uma sucessão de ambientes imersivos - salas repletas de cartazes, revistas, bobinas de filme e mobiliário da época - que recriam o espírito militante do Festival Panafricano de Argel de 1969 e do cinema pós-independência.



Sedira trabalha o arquivo não como simples depósito de documentos, mas como território de reimaginação. Inspirando-se em práticas de “contravisualidade” (Mirzoeff, 2011), a artista reinscreve imagens esquecidas de solidariedade afro-asiática e revolução cultural, transformando-as em matéria viva. O arquivo torna-se um espaço de resistência à amnésia coletiva, um lugar onde a história se reativa através do olhar contemporâneo.



Noutra peça, Way of Life (2023), a artista recria a sua sala-de-estar em Brixton, transformando o espaço doméstico num cenário de memória cultural. Discos de vinil, plantas, retratos e livros compõem um ambiente familiar que, no contexto museológico, adquire uma dimensão política. A casa torna-se o lugar onde a história das migrações e das resistências quotidianas se inscreve de forma sensorial. Esta estética desafia as fronteiras entre arte e vida, entre público e privado. Ao convidar o espectador a habitar este espaço, Sedira transforma a experiência visual num gesto de partilha.



Concluindo, a exposição de Zineb Sedira propõe uma cultura visual da resistência: uma prática que se constrói entre o arquivo e a performance, entre o documento e a ficção. As suas obras convocam o olhar crítico, pedindo que o espectador se torne participante num processo de reconstrução histórica.

Mais do que representar a memória, Sedira cria as condições para a sua reativação. No CAM, o passado das lutas anti-coloniais e das utopias pan-africanas é revisitado não como nostalgia, mas como possibilidade de futuro. Num tempo saturado de imagens, a artista recorda-nos que ver é, também, um ato político.

Andi Schmied: Private Views - A High-Rise Panorama of Manhattan

 Em Nova Iorque, a paisagem vertical é um símbolo de poder e desejo. As torres de vidro e aço que se erguem sobre Manhattan são mais do que edifícios, são expressões materiais do capital global, da exclusividade e da desigualdade urbana. Um universo fechado e inacessível à grande maioria da população mas com impacto.
O projeto Private Views: A High-Rise Panorama of Manhattan (2020), da artista e arquiteta húngara Andi Schmied, movida pela curiosidade de perceber como eram as vistas destes grandes arranha-céus, tornou-se numa grande investigação crítica sobre o mercado imobiliário de luxo em Nova Iorque e o seu impacto na cidade. Através de uma personagem fictícia, onde se passava por uma potencial compradora milionária, e com uma representação cuidadosamente pensada, a artista conseguiu aceder a um conjunto de apartamentos situados em alguns dos prédios mais exclusivos de Manhattan. 
Toda a investigação materializou-se numa exposição e objeto editorial, que problematizam a forma como a vista, enquanto elemento principal, se torna uma mercadoria reservada à elite. Num momento histórico em que a verticalização da habitação afeta o imaginário urbano, Private Views oferece uma perspetiva crítica sobre a relação entre a altura, a visibilidade e o poder, revelando as implicações políticas e estéticas que esta elite tem sobre o contexto da cidade contemporânea.


Encenação, infiltração e observação


A artista construiu uma persona, dá pelo nome de Gabriella, mulher húngara abastada à procura de um apartamento em Manhattan.
Este processo performativo permitiu-lhe atravessar as fronteiras deste sistema altamente protegido, onde o capital económico leva ao capital visual. Visitou apartamentos avaliados entre 10 e 85 milhões, ação que colocou em evidência a teatralidade do mercado imobiliário de elite, onde cada visita torna-se numa encenação cuidadosamente coreografada pelo agente imobiliário para atrair os magnatas a adquirir o imóvel. Desde os agentes que mostravam apenas a área até aos que elaboraram um discurso cativante, no livro são incluídas algumas das conversas com estes agentes, onde realçam sempre os mesmos aspectos. Desde a exclusividade do imóvel até às vistas “sem preço”, dos mármores raros aos acabamentos “bespoke” (feitos à medida). São sempre citados os materiais de luxo utilizados e os nomes dos designers por detrás de toda a obra.
Também ficou claro neste discurso a diferença de tratamento quando se dirigiam ao seu marido. Andi visitava a maioria dos apartamentos sozinha e o discurso era sempre direcionado para que ela tentasse convencer o seu marido a comprar, quando o trazia, ela tornava-se completamente invisível, já que o homem é sempre visto como a pessoa com capital para comprar este tipo de imóveis.
A artista transforma estas interações em material de análise, expondo a forma como o discurso do luxo opera como narrativa ideológica.

A vista como principal ponto atrativo 


Em Manhattan, a “vista” tem um valor comercial. As janelas panorâmicas sobre a cidade funcionam como um mecanismo que divide o observador privilegiado do espaço coletivo da cidade mais embaixo. A artista capta este fenómeno através da sua lente. Preocupada que parecesse estranha a utilização de uma câmera profissional para fotografar os apartamentos, rapidamente percebeu que os agentes não se importavam com as suas ações estranhas. Concluiu que se agisse de forma estranha mais convincente era a sua personagem, isso significaria que tem muito dinheiro e não se preocupa com a forma como se apresenta.



Arquitetura e poder


Quem obtém estes edifícios não usufrui das regalias e do estatuto associados a eles. Estes edifícios encontram-se, na sua maioria, totalmente vazios. Servem apenas como investimento seguro para grandes empresários locais e internacionais que, por vezes, já são proprietários de diversos imóveis na mesma zona. Estes apartamentos são utilizados para alugar ou para futuramente vender por um valor mais alto.
A inserção de Andi Schmied no universo do imobiliário de luxo não é apenas uma manobra artística, mas também uma análise arquitetónica e social. Os edifícios que documenta como o 432 Park Avenue, o One57, o Trump Tower ou o Central Park Tower, representam a materialização arquitetónica de um sistema económico baseado na acumulação e na desigualdade.
Estes grandes edifícios criam diretamente problemas na cidade. As sombras criadas por eles recaem sobre outros edifícios, parques e ruas, criando a escuridão em plena luz do dia. Esta ação modifica toda a fauna e flora da cidade, além de afetar a vida do cidadão comum.


Mais do que um simples levantamento fotográfico, o projeto funciona como um atlas das desigualdades que caracterizam as metrópoles contemporâneas. Ao apropriar-se da linguagem, estética e encenação, a artista devolve-as sob a forma de ironia e crítica.
Mais do que criticar quem tem o direito à vista, o trabalho questiona quem tem o direito à cidade. A partir da observação das alturas, Private Views revela as profundezas da desigualdade urbana e convida-nos a reconsiderar a própria ideia de “panorama”, como metáfora do distanciamento social e económico que define o espaço urbano do século XXI.



Os dois vídeos que despertaram o meu interesse para este projeto



ENTRE A VIOLÊNCIA OCULTA E A VISCERALIDADE VISUAL

Recentemente chegou ao fim a exposição “Paula Rego e Adriana Varejão: Entre os vossos dentes” no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian.

Paula Rego nasceu em Lisboa em 1935 e Adriana Varejão, no Rio de Janeiro em 1964. Rego saiu de Portugal em direção à Inglaterra aos 17 anos, incentivada pelo pai a seguir com a formação artística na Slade School of Fine Art, em Londres. Varejão passou boa parte da infância em Brasília, mas retornou ao Rio de Janeiro nos anos 1980, onde estudou em cursos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Até fixar residência em Londres em 1976, Rego e sua família viveram entre Portugal e o Reino Unido. Varejão atualmente reside no Rio de Janeiro, mas já passou temporadas em diversos lugares do Brasil e do mundo: de Maceió a China.

Artistas que parecem distantes, de gerações e continentes distintos, se cruzam e dialogam harmoniosamente a partir de visualidades viscerais e críticas profundas, como a mostra do CAM revela. A obra de Varejão, a qual eu já conhecia e tinha visto de perto outras vezes, com referências à carne, ao sangue e ao contraste entre ambientes assépticos e elementos carnais, invoca, a partir de sua constituição visual e física, sentimentos fortes, que perpassam a náusea, a repulsa, o medo e o fascínio. O trabalho de Rego, que eu não conhecia antes de visitar essa exposição, aprofunda as discussões trazidas por Varejão através de obras multifacetadas e sensíveis, abordando, por exemplo, a condição feminina frente à complexidade da violência de gênero. 

Na sala “Rituais de Limpeza”, uma série de gravuras de Rego que representam mulheres em situação de consumação do abordo são colocadas ao lado de obras de Varejão que retratam espaços estéreis com vestígios de sangue, fios de cabelos e fluídos corporais. Rego oferece uma plataforma a mulheres que são invisibilizadas em um procedimento doloroso que é feito às escondidas e é criminalizado pelo Estado. Varejão mostra um espaço paradoxo, onde a higiene absoluta encontra vestígios de uma atrocidade. Enquanto Rego é direta e literal em sua crítica, Varejão constrói uma ambientação sinistra e misteriosa que, quando se junta às obras de Rego, ganha uma nova dimensão e revela uma violência oculta que não é dita, mas é sentida profundamente.

  

Essas obras me remeteram imediatamente ao filme “A Substância” de 2024, da diretora francesa Coraline Fargeat, em que uma celebridade estadunidense, interpretada pela atriz Demi Moore, ao ser demitida devido a idade, decide tomar uma droga clandestina que promete criar temporariamente uma versão mais nova e aprimorada de si mesma. No filme, um banheiro de azulejos brancos, muito semelhante ao pintado por Varejão, é o cenário onde ocorrem as cenas mais brutais e difíceis de assistir: a protagonista sofre ferimentos terríveis e enfrenta dores inimagináveis para satisfazer as expectativas de uma sociedade machista e etarista. No filme, assim como nas obras expostas no CAM, a violência de gênero é traduzida em uma visualidade visceral, que incomoda o espectador e incita reações intensas. 

Nesse sentido, o que essas artistas revelam é que a experiência da violência de gênero atravessa gerações e oceanos. Ao abordar aspectos sombrios dessa dura realidade, tanto Paula Rego e Adriana Varejão, quanto Caroline Fargeat nos ensinam que a cultura visual, utilizada de maneira consciente e intencional, pode ser um instrumento valioso e potente para a produção de uma arte crítica. O uso do sangue, da carne, do terror, do sofrimento de mulheres contorcidas constrói uma dimensão visual impactante que busca refletir uma sociedade cruel, que criminaliza o aborto, nega às mulheres o direito ao próprio corpo e julga-as por causa de sua aparência, idade, comportamento e decisões de vida. Na luta contra essas violências, a arte de Rego, Varejão e Fargeat é uma arma poderosa, capaz de transformar a visualidade em crítica e a imagem da dor em resistência.

Obsolescência programada: uma análise do consumo no século XXI

Num mundo marcado por incertezas crescentes e colapsos sociais, económicos e ambientais iminentes, a cultura do consumo acelerado, impulsionada por tendências efémeras e pela obsolescência programada, alimenta um ciclo contínuo de compra e descarte. Este processo mascara necessidades reais com desejos efémeros perpetuando-se um problema estrutural que não parece ter solução.

A paisagem cultural, as cidades, as estradas, as ruas, os meios de comunicação, estão repletos e saturados de mensagens publicitárias que incitam ao consumo. Um consumo obstinado, compulsivo e eticamente questionável, que prejudica o planeta enquanto enriquece as grandes corporações. De acordo com os dados do Banco Mundial, cerca de 20% da população consome 80% dos recursos disponíveis, concentrando a riqueza nas mãos de aproximadamente 300 a 400 famílias. Três das mesmas detêm, sozinhas, o equivalente ao PIB anual de 48 países africanos, com cerca 600 milhões de pessoas. Curiosamente, satisfazer os requisitos básicos de acesso a água potável e a saneamento por todos os países, custaria cerca de 13 biliões de euros, sensivelmente o mesmo valor que é gasto, todos os anos, em perfume na Europa e nos Estados Unidos.

Eventos como a Black Friday, criada nos Estados Unidos após o Dia de Ação de Graças e rapidamente globalizada, marcam tradicionalmente o início da época natalícia e representam o auge do consumo contemporâneo. As campanhas promocionais associadas ao evento, provocam emoções e a ilusão de uma “compra inteligente”, estimulando o consumo impulsivo. Sob o disfarce de uma narrativa de oportunidade e poupança, as empresas aumentam os lucros e renovam o mercado, evitando o desperdício dos produtos não vendidos durante a estação e garantindo a continuidade do ciclo de produção.

Em contrapartida, e como resposta crítica a esta lógica consumista, surge em 1992, no Canadá, o “No Buy Day”, um dia de abstinência à compra por 24 horas, com o propósito de gerar uma reflexão coletiva capaz de questionar os modelos de pensamento desumanos, chamando a atenção aos efeitos que estes hábitos podem ter a nível global, nomeadamente em países de terceiro mundo, onde é frequentemente enviado lixo eletrónico sob o pretexto de reutilização de equipamentos avariados ou em fim de vida.



Manifestação em São Francisco, Novembro de 2000


De acordo com um relatório da ONU, em 2022, foi produzido 62 milhões de toneladas de lixo eletrónico, grande porcentagem dos quais é depositada ilegalmente em países como Gana, retratada muitas vezes como a “Lixeira do Mundo”. Embora o envio de lixo eletrónico para países em desenvolvimento esteja proibido pela União Europeia, esta prática ilegal continua a ser recorrente, uma vez que muitas empresas encontram formas de contornar a legislação. Se a tendência da reparação e reutilização dos equipamentos nos países desenvolvidos não for efetivamente consciencializada, estima-se que o lixo eletrónico produzido globalmente possa atingir os 82 milhões de toneladas em 2030.


Lixeira de Agbogbloshie


Seria a solução, se a obsolescência programada deixasse, de facto, de existir? Como seria um mundo em que os produtos não tivessem prazo de validade? Embora tal cenário possa parecer utópico, as suas consequências seriam significativas para o próprio ser humano e para a estrutura social que o sustenta, isto é, o emprego. O filme “The Man in the White Suit” de 1951, é uma comédia britânica, que ilustra simbolicamente essa tensão. A narrativa companha um cientista que criou um tecido revolucionário, indestrutível e resistente a nódoas, fabricando assim a peça “perfeita”. A sua descoberta, em vez de celebrada, desencadeia hostilidade tanto dos donos das fábricas como dos operários, que temem a perda dos seus empregos. O filme é então um choque entre o progresso e interesses estabelecidos, implicando que o que o fim da obsolescência programada poderia gerar desemprego e instabilidade social.





Num tempo em que o consumo se tornou sinónimo de identidade e pertença, pensar alternativas éticas e sustentáveis implica repensar não apenas o que compramos, mas sobretudo por que e para quem compramos. A transição para um modelo de vida mais consciente requer uma mudança profunda de mentalidades, que ultrapassa a dimensão económica e se enraíza no campo cultural, social e moral. O No Buy Day torna-se, assim, mais do que um simples gesto simbólico: representa um convite à introspeção coletiva e à construção de um novo paradigma, em que o valor das coisas não reside na sua posse, mas na sua permanência, utilidade e impacto humano.