sábado, 30 de dezembro de 2017

OLHO ZOOMÓRFICO / CAMERA TRAP Mariana Silva

No encalço da falha humana...

“A linguagem da perspectiva traz consigo várias pressuposições sobre aquilo que significa compreender outras mentes. Num modelo de mundo dividido entre subjectivo e objectivo, munido do método da projecção empática, compreender uma outra mente só pode significar ver com outros olhos (ou cheirar com o nariz de um outro, ou ouvir com o “sonar” de um outro dependendo da espécie) [...] Nenhum teólogo medieval recomendaria adoptar a perspectiva de um anjo para compreender a mente de um anjo, da mesma forma que nenhum especialista em inteligência artificial procura adoptar a perspectiva de um computador.” É com as palavras de Lorraine Daston em “Intelligences Angelic, Animal, Human” (in Thinking with Animals: New Perspectives on Anthropomorphism, New York: Columbia University Press, 2005) que Mariana Silva, jovem artista Portuguesa residente em Nova York, parte numa viagem reflexiva em torno da extinção de espécies animais e as diferentes representações da natureza por via natural ou tecnológica, objectiva ou subjectiva, real ou virtual, como formas de conservação/condenação das mesmas. Continuando o debate iniciado em trabalhos anteriores, onde questionou os processos de selecção e preservação de objectos artísticos e do património cultural, colocando em causa o próprio conceito de museu – obra que lhe valeu o Prémio Novos Artistas da Fundação EDP, em 2015 – Mariana Silva solidifica assim o seu posicionamento artístico, trazendo em cena um forte conjunto de interrogações coerentes e actuais, baseadas na falência humana e na sua superação, tanto ao nível cultural e social como ecológico. 

Em Olho Zoomórfico / Camera Trap a autora serve-se, mais uma vez, da instalação audiovisual para submergir o observador a um estado de indagação constante, alimentado não só pelo diálogo que se estabelece entre as protagonistas da peça principal, audível em toda a sala, como por aquele que se forma entre o espectador e as diferentes projecções. A exposição é constituída por três peças apenas, sendo a primeira uma impressão sobre tela recortada (3m x 16m) disposta de forma a dividir a sala e a criar uma espécie de portal para uma realidade paralela, onde convivem três diferentes projecções. 

A tela recortada, intitulada Media insecto, exibe duas imagens que representam grandes massas migratórias de aves detectadas em radar a diferentes horas da noite. O recorte permite a ondulação da tela em referência ao movimento destas massas, tão dificultado pela pressão urbana actual e, contraditoriamente, facilitado pela captação radar, que permite o seu estudo e acompanhamento. São estas subtis dicotomias que formam o trabalho da autora e que conduzem todo o argumento expositivo: a relação humana com a natureza, com a sua observação e as diferentes formas de observação, com as imagens virtuais e a tecnologia como simulacros de vida já extinta ou em risco, a visão nostálgica de uma captação em habitat natural e a visão de um futuro de representações, aparências e semelhanças/dissemelhanças inorgânicas. Há assim uma tensão que nos acompanha à medida que nos apercebemos do peso que reside em cada peça e a forma como o conceito é trabalhado.

                                Pormenores de sala.

Camera Trap é a primeira projecção da sala, em ecrã circular convexo, onde passa, em loop de cerca 7 minutos, páginas do livro de 1926 – How to hunt with the Camera, A Complete Guide to all forms of Outdoor Photography – em referência aos primeiros conservacionistas que procuravam reformular os hábitos de caça burgueses com a captação de imagens baseadas em artifícios cinegéticos. Este será depois mencionado, em jeito de ironia, no decorrer da trama da peça principal – Olho Zoomórfico – composta por duas projecções vídeo em ecrã circular, lado a lado, sugerindo não só o olho humano como também dois universos paralelos onde se distinguem várias modos de percepção: objectivo/subjectivo, real/virtual, razão/emoção, consciente/subconsciente, presente/futuro... Ao longo de 22 minutos (loop), um dos ecrãs exibe curtas passagens do quotidiano de Ngueve e Margot, duas amigas que debatem sobre a extinção das espécies na sequência da chegada de um dispositivo de realidade virtual que permite a Ngueve experienciar diferentes representações do mundo. O quotidiano é interrompido pelas imagens que se assume serem geradas pelo dispositivo, exibidas no ecrã adjacente. O observador é assim capturado pela trama e vê-se imerso nesta realidade provocada, tentando primeiro perceber o que antecede aquele momento e por fim deixando-se levar pela pertinência do assunto e pelo encadeamento entre o diálogo e as imagens. 

No texto que abre a exposição lemos: "Se a máquina fotográfica foi importante no estabelecimento da ideia de conservação da natureza, a partir do final do século XIX e até muito recentemente, deveremos interrogar até que ponto o sistema de perspetiva que lhe está associado é adequado à percepção das verdadeiras interações das espécies em ecossistemas reais e das diferentes escalas nas quais as alterações climáticas têm expressão". Será a nossa obsessão pela imagem, pelo ver e o observar através das nossas próteses tecnológicas a condenação dos vários sistemas colectivos na natureza? Serão os ecossistemas paralelos, gerados pelos dados da monitorização, a nossa única aproximação ao que foi a observação da vida animal? Mais que uma abordagem clássica do tema, são estas as questões que nos assombram quando deixamos a sala de exposição do Espaço Projecto da Fundação Calouste Gulbenkian e olhamos, quase instintivamente, para a câmera fotográfica que trazemos na mão...


DO OUTRO LADO DO ESPELHO Fundação Calouste Gulbenkian


Onde o real se encontra com o imaginário... 


Crystal Girl no.69 (2012), Noé Sendas
   
     Espelho – este é, literalmente, o protagonista da exposição patente na Galeria de Exposições Temporárias da Fundação Calouste Gulbenkian. Dificilmente se imaginaria que se pudesse construir toda uma mostra à volta de um simples objecto, mas a verdade é que o espelho surge e repete-se na iconografia da arte europeia desde, pelo menos, o final da Idade Média, sendo amplamente explorado pelo universo artístico nos mais variados suportes, seja na pintura, na escultura, na fotografia ou no cinema, até à actualidade. Literal na sua abordagem, ou não estaria a sala expositiva dividida por superfícies espelhadas, Maria Rosa Figueiredo, curadora e conservadora do Museu há 44 anos, propõe ao visitante o que Alice experimentou há mais de um século atrás: “Let’s pretend the glass has got all soft like gauze, so that we can get through (…)” (Lewis Carroll, Through the Looking Glass and What Alice Found There, 1871). 

     Exaustiva mas assertiva, a exposição Do Outro Lado do Espelho explora os diferentes modos de representação deste objecto na obra de arte. Cruzando arte contemporânea com arte antiga e abrangendo um leque variado de suportes, ela leva-nos numa viagem pelo universo fragmentado da reflexão, onde não faltam referências e alusões ao mito de Narciso ou às aventuras da heroína de Lewis Carroll, para onde remete, intencionalmente, o título da mostra. Omnipresente, o assunto persegue-nos por todos os cantos, impondo perpetuamente o confronto e a auto-análise em súbitos encontros com o Eu que nos acompanha. Os espelhos que dividem o espaço expositivo, tanto devolvem a nossa imagem como deixam antever o que está para além, fazendo do observador agente activo (desperto pela curiosidade) e parte integrante da narrativa. 

        À entrada, a estátua em bronze La Femme au Miroir (1931) de Ernesto Canto da Maya faz as honras da casa e denuncia esse eterno gesto feminino que veremos representado em quase todas as obras. Mais adiante, um espelho de René Lalique (1899), pertencente ao fundo do Museu, emoldurado por duas serpentes que tentam o visitante a deliciar-se no reflexo que condenou Narciso e a atravessar o pórtico que capturou Alice. Apercebemo-nos então que a exposição está dividida em cinco núcleos temáticos: O Espelho Identitário; O Espelho Alegórico; A Mulher em frente ao Espelho; Espelhos que Revelam e Espelhos que Mentem; e O Espelho Masculino. Ao longo das 69 obras que compõem os diferentes núcleos, desfilam nomes como James Abbott McNeill Whistler, Jorge Varanda, Simon Vouet, Ana Vieira, Ambrose McEvoy, Paula Rego, Eduardo Luiz, Noé Sendas, Richard Hamilton, Daniel Blaufuks, entre outros. 

       Particularmente interessante no espaço dedicado ao espelho enquanto mediador na consciencialização do Eu, é o vídeo de Victor Kossakovsky, Svyato (2005): durante dois anos, o cineasta cobriu os espelhos da sua casa para que pudesse proporcionar ao seu filho a experiência única do primeiro confronto com a sua própria imagem. O filme, de cerca 30 minutos, mostra o espanto da criança perante a sua materialidade. O mesmo espanto manifestado por Henry Russel, a criança representada na pintura adjacente, do século XVIII, por George Romney. Verdadeira “armadilha de aparências”, o espelho foi sempre intérprete de várias analogias e atributo de diferentes alegorias no mundo das artes. Em O Espelho Alegórico, este aparece como metáfora de vícios e virtudes, da Vaidade à Prudência, da Ciência à própria morte. De destacar as iluminuras deste núcleo, em particular, O Livro de Horas de Afonso I d’Este, do início do século XVI, que representa a figura da Morte inserida na letra que dá início ao texto introdutório do Ofício dos Mortos: um esqueleto vestido de azul, segura um espelho evocando a efemeridade da vida humana. 

Imagem no Espelho (1974), Richard Hamilton
      Entre um Almada Negreiros e um painel de azulejos do século XVIII, atribuído ao Mestre P.M.P, o núcleo seguinte é presenteado com mais um vídeo que solta o sorriso a qualquer visitante – Mirrors of Bergman: de Kogonada, mostra excertos de filmes de Ingmar Bergman, nos quais mulheres se olham ao espelho. Imediatamente ao lado, em Espelhos que Revelam e Espelhos que Mentem, o mesmo objecto devolve-nos uma realidade inversa, que pode ser tão verdadeira quanto falsa. Aqui reside o irreal, o absurdo, o manipulado e o multiplicado. Algumas anamorfoses do século XVIII reforçam o sentido deste núcleo. Nele, incluem-se peças inspiradas, mais uma vez, no universo de Alice, como as pinturas de Eduardo Luiz e algumas fotografias de Cecília Costa e Noé Sendas, cuja Crystal Girl no.69 (2012) dá rosto ao cartaz da exposição. No final deste núcleo, um auto-retrato de Arpad Szenes (1930), no qual a cabeça do artista é representada pelo espelho que reflecte uma figura feminina, faz a ligação com o último espaço da mostra, dedicado ao universo masculino e ao uso que fazem do espelho, sobretudo como auxiliar dos seus auto-retratos, como é o caso de Jorge Molder, Richard Hamilton e Daniel Blaufuks. De destacar Mãe (1997) no centro deste núcleo, pintura a pastel de Paula Rego, única mulher neste rol, onde coloca o protagonista de O Crime do Padre Amaro olhando para o seu reflexo, enquanto experimenta uma saia. É com humor e alguma ironia que as mulheres dão lugar aos homens, num espaço habitualmente associado à intimidade feminina. À saída, são poucos os que reparam no grande espelho que reflecte as últimas impressões da exposição...