Com a curadoria de Pedro Gadanho e Luísa
Santos, esta exposição reúne 22 artistas internacionais - dos Estados Unidos e
América Latina à Europa e ao Médio Oriente - que através
da Arte em Vídeo traduzem o impacto, a tensão e o conflito, vividos após a crise de
2008.
É uma exposição diferente, na medida em
que exige um compromisso maior da parte do espectador – tempo e disponibilidade
- contrariando a forma como o público consome habitualmente uma exposição nos dias de hoje.
Quase todas as obras, implicam que o espectador se envolva para acompanhar uma
narrativa, seja ela linear ou desconstruida, sequencial ou abstracta. O
conteúdo da exposição apesar de consistente, é muito denso para ser absorvido
por inteiro de uma só vez.
O mais interessante da exposição no seu todo, além
da diversidade cultural, é o facto de levantar a questão do papel estruturante da
arte e da cultura como grandes recursos para a abordagem à temática do
conflito.
O ponto de partida – a crise financeira
de 2008 - é uma problemática contemporânea. Acredito que o conjunto destes registos
em vídeo, poderá vir a ter um impacto ainda maior daqui a uns anos, quando a
distância ao problema possa então revelar
a dimensão do seu impacto; tornando a visão destes artistas, quase como um
registo histórico ou uma premonição.
Considero feliz a escolha do nome da
exposição, por ser suficientemente dramático para identificar uma crise, que
não é só financeira. Todos os conflitos que se manifestam em torno da tensão
criada pela crise financeira, tornam-se sintomas e causas de um problema maior
– o rumo das sociedades contemporâneas, e o confronto das diferentes culturas,
potenciado pela globalização.
A escolha do conteúdo da exposição
permite-nos ter uma visão periférica através dos diversos pontos de vista. Revelando percepções dos acontecimentos numa dimensão material vivida, mas
também na imaterialidade da imaginação e da ficção,
escondendo partes de um todo; conseguimos um maior entendimento do mundo.
Todas as obras apresentadas têm em comum
a forma de registo: o vídeo. A introdução do vídeo como medium no meio artístico desde meados de 1960, permitiu aos
artistas uma produção imediata, muitas vezes em tempo real, das problemáticas
contemporâneas. Além do baixo custo e da evolução técnica permanente desta
forma de arte poderosa.
A exposição consegue ainda transmitir-nos
a ideia de que a arte, neste caso a arte em vídeo, tem também um efeito
pacificador, ao demostrar em tempo real as múltiplas faces, condicionadas pelos
diferentes e muitas vezes opostos, contextos.
É de salientar também a construção de ficções
para transmitir realidades imateriais, do âmbito das emoções, dos afectos e das
relações humanas, como acontece em Quicksand (2017) de Nikolaj Larsen (1971, Dinamarca).
A questão
evidenciada por Nicolaj Larsen, trata uma das tensões sociais que caracterizam
o colapso do projeto europeu, em parte resultante da crise financeira global de
2008.
No lugar de
uma identidade coesa, a Europa está a tornar-se um espaço de dispersão, incertezas
e conflitos sociais: conflito na Ucrânia, crise dos refugiados,
crise imobiliária, «Brexit», condições precárias dos
trabalhadores, terroristas e nacionalismos exacerbados...
A narrativa
de Quicksand poderia passar-se nas águas do Mediterrâneo
onde todos os anos morrem migrantes naufragados. Em vez disso, avança para o
ano 2033, onde Jason, a personagem principal, se vê envolvido numa crise
política e financeira na cidade de Londres,
e "decide pagar a um traficante de pessoas para o levar para um sítio
melhor, no sul”- usando as palavras do artista.
Quicksand |
Nesta viagem que fazemos através de uma espécie
de simulacro proporcionado pela forma como o vídeo nos é apresentado, sentimos
uma enorme identificação com os refugiados que morrem no Mar Mediterrâneo. O
som intenso do mar e das vozes humanas espacializado na sala onde o vídeo está
inserido, e a vibração do mesmo som por debaixo dos nossos pés, permitem-nos
mergulhar por inteiro naquela situação. Os tons cinzentos e o grão das imagens
transmitem-nos uma realidade sombria e dramática. As imagens do Mar imenso e
profundo, sem nunca vermos ninguém, colocam o espectador no centro da acção.
Através do personagem, sentimos o desespero, o afogamento, o sufoco da luta
pela sobrevivência.
São ficções como esta que acrescentam conhecimento
à nossa percepção da crise financeira; dando-nos uma visão diferente daquela que já
conhecemos.
Acredito muito que não existe uma única realidade dos factos, mas sim várias perspectivas sobre determinado objecto
representado. Quantas mais perspectivas experimentarmos ao observarmos um
objecto, melhor será a nossa percepção do mesmo. E desta forma, poderemos ter
uma maior compreensão da realidade.
Considero muito interessante o confronto
entre as grandes questões sociais deste período conturbado e as pequenas
histórias colaterais, que muitas vezes levantam argumentos que fazem tremer as
nossas convicções.
The Trainee |
Em The Trainee (2008), lembrando-nos “o estilo” de Sophie Calle (1953, Paris), a artista Pilvi Takala (1981, Filandia) faz-se passar por estagiária numa equipa de Marketing da Deloitte. Ao logo do processo, Pilvi vai evidenciando a sua falta de preocupação em não estar a produzir, e estar necessariamente a fazer “nada”. O incómodo e constrangimento é sentido pelos colegas que se esforçam diariamente por acompanhar o ritmo frenético do trabalho ou pelo menos, para fingir que o fazem ao longo das horas fixas de trabalho. Desta forma, o vídeo expõe questões relacionadas com as condições do estagiário e com a realidade do trabalho nas grandes empresas, no contexto europeu actual.
Diário |
Marilá
Dardot (1973, Brasil) apresenta-nos Diário (2005), um
conjunto de 3 vídeos. Elaborado numa residência artística na Casa Wabi, no
México, este projecto consiste na escolha de manchetes de jornais para realizar uma performance e um vídeo
diários. A artista filmou-se a escrever com água os títulos das notícias dos
jornais num muro de betão. A experiência demonstra a efemeridade da memória dos
acontecimentos que lemos nas notícias, com recurso a uma metáfora -
quando Marilá acaba de reescrever a notícia com água, já não se consegue ler o
seu início, pois evaporou entretanto.
Sincronias I |
Sincronias I |
Parei durante algum tempo no vídeo Sincronias
I ( 2014-2016) de Marc Larré
(1978, Espanha). Entrei naqueles espaços que reflectem um ponto de vista
pessoal - inquietação e frustração face aos acontecimentos derivados da crise
de 2008. É um vídeo composto por analogias que nos fazem pensar os factos revelados.
O artista junta textos de notícias actuais com imagens quotidianas de um
universo pessoal e conjuga-os numa sequência estranha para criar o que poderia
estar a ser o telejornal. Não nos é imposto um ponto de vista, mas provocado
quase um “efeito Kuleshov” - inevitavelmente estamos sempre a
tentar estabelecer relações entre as imagens e os textos apresentados,
remetendo-nos para a realidade das notícias ou das não notícias, que nos chegam
diariamente.
This Lemon Tastes of Apple |
This Lemon Tastes of Apple
(2001), de Hiwa K. (1975, Iraque),
impressionou-me pela veracidade do contexto transmitido. Este registo é filmado
num cenário com imagens cruas de violência, fazendo-nos sentir aquele sítio e
aquelas pessoas mais de perto. Neste documentário, acompanhamos o caminho
percorrido pelo artista nas manifestações de 2 meses contra o Governo Regional
Curdo no Iraque, na Turquia e no Irão em 2011, no último dia antes da proibição
dos protestos. É comovente confirmar a importância da união de um povo na luta
pela defesa de direitos fundamentais da dignidade humana, como o direito de protestar,
e de ter uma voz activa na vida política do país.
Ao vermos o vídeo, não entendemos o
idioma falado nem o contexto onde se passa a acção, mas sentimos a tensão existente
ao sermos totalmente transportados para o interior daquele conflito social.
Das muitas obras apresentadas, as que me
despertaram mais interesse foram as pequenas histórias, os pontos de vista mais
pessoais e subjectivos, as consequências colaterais ao centro da questão. Penso
que a saturação de informação criada pelos orgãos sociais sobre os grandes
assuntos relacionados com a crise de 2008 do ponto de vista politico e
financeiro foi de tal ordem intensa, que nos provoca um afastamento da
responsabilidade que temos enquanto indivíduos, face ao problema. A saturação
pode criar um efeito anestésico..
quase como se as coisas perdessem o seu significado e importância através da
demasiada exposição e repetição.
Neste prisma, são as histórias das
pessoas e a forma como a crise afectou a nossa vivência e as relações humanas,
que passam a ter mais relevância.
Acredito que esta exposição consegue
fazer o espectador reflectir sobre a importância e o compromisso dos artistas
na resolução dos problemas e conflitos sociais. A abordagem artística
geralmente não nos impõe opiniões ou pontos de vista, mas denuncia situações deixando
o espectador interpretar à sua maneira.
A exposição faz-nos questionar o papel
do artista enquanto informador, enquanto voz activa, enquanto interveniente da
sociedade. Os artistas têm uma forma diferente de observar, e esta é tão ou
mais importante do que as abordagens feitas sob o olhar da ciência, da
comunicação social, da história, da economia, da política ou da religião.
Retive este pensamento a ecoar: o artista tem uma responsabilidade social, de
tornar visível o pouco visível e conceder-lhe a devida importância.
Sem comentários:
Enviar um comentário