No
encalço da falha humana...
“A linguagem da perspectiva traz consigo várias pressuposições
sobre aquilo que significa compreender outras mentes. Num modelo de mundo
dividido entre subjectivo e objectivo, munido do método da projecção empática,
compreender uma outra mente só pode significar ver com outros olhos (ou cheirar
com o nariz de um outro, ou ouvir com o “sonar” de um outro dependendo da
espécie) [...] Nenhum teólogo medieval recomendaria adoptar
a perspectiva de um anjo para compreender a mente de um anjo, da mesma forma
que nenhum especialista em inteligência artificial procura adoptar a
perspectiva de um computador.” É com as palavras de Lorraine
Daston em “Intelligences Angelic, Animal, Human” (in Thinking with Animals: New Perspectives on Anthropomorphism, New
York: Columbia University Press, 2005) que Mariana
Silva, jovem artista Portuguesa residente em Nova York, parte numa viagem
reflexiva em torno da extinção de espécies animais e as diferentes
representações da natureza por via natural ou tecnológica, objectiva ou
subjectiva, real ou virtual, como formas de conservação/condenação das mesmas.
Continuando o debate iniciado em trabalhos anteriores, onde questionou os
processos de selecção e preservação de objectos artísticos e do património
cultural, colocando em causa o próprio conceito de museu – obra que lhe valeu o
Prémio Novos Artistas da Fundação EDP, em 2015 – Mariana Silva solidifica assim
o seu posicionamento artístico, trazendo em cena um forte conjunto de
interrogações coerentes e actuais, baseadas na falência humana e na sua
superação, tanto ao nível cultural e social como ecológico.
Em Olho
Zoomórfico / Camera Trap a autora serve-se, mais uma vez,
da instalação audiovisual para
submergir o observador a um estado de indagação constante, alimentado não só pelo
diálogo que se estabelece entre as protagonistas da peça principal, audível em
toda a sala, como por aquele que se forma entre o espectador e as diferentes projecções.
A exposição é constituída por três peças apenas, sendo a primeira uma impressão
sobre tela recortada (3m x 16m) disposta de forma a dividir a sala e a criar
uma espécie de portal para uma realidade paralela, onde convivem três
diferentes projecções.
A tela recortada, intitulada Media insecto, exibe duas
imagens que representam grandes massas migratórias de aves detectadas em radar
a diferentes horas da noite. O recorte permite a ondulação da tela em
referência ao movimento destas massas, tão dificultado pela pressão urbana
actual e, contraditoriamente, facilitado pela captação radar, que permite o seu
estudo e acompanhamento. São estas subtis dicotomias que formam o trabalho da
autora e que conduzem todo o argumento expositivo: a relação humana com a
natureza, com a sua observação e as diferentes formas de observação, com as imagens
virtuais e a tecnologia como simulacros de vida já extinta ou em risco, a visão
nostálgica de uma captação em habitat natural e a visão de um futuro de
representações, aparências e semelhanças/dissemelhanças inorgânicas. Há assim
uma tensão que nos acompanha à medida que nos apercebemos do peso que reside em
cada peça e a forma como o conceito é trabalhado.
Pormenores de sala.
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Camera
Trap é a
primeira projecção da sala, em ecrã circular convexo, onde passa, em loop de cerca 7 minutos, páginas do
livro de 1926 – How to
hunt with the Camera, A Complete Guide to all forms of Outdoor Photography – em referência aos primeiros
conservacionistas que procuravam reformular os hábitos de caça burgueses com a
captação de imagens baseadas em artifícios cinegéticos. Este será depois mencionado,
em jeito de ironia, no decorrer da trama da peça principal – Olho
Zoomórfico – composta por duas projecções vídeo em ecrã circular, lado
a lado, sugerindo não só o olho humano como também dois universos paralelos
onde se distinguem várias modos de percepção: objectivo/subjectivo,
real/virtual, razão/emoção, consciente/subconsciente, presente/futuro... Ao
longo de 22 minutos (loop), um dos
ecrãs exibe curtas passagens do quotidiano de Ngueve e Margot, duas amigas que
debatem sobre a extinção das espécies na sequência da chegada de um dispositivo
de realidade virtual que permite a Ngueve experienciar diferentes
representações do mundo. O quotidiano é interrompido pelas imagens que se
assume serem geradas pelo dispositivo, exibidas no ecrã adjacente. O observador
é assim capturado pela trama e vê-se imerso nesta realidade provocada, tentando
primeiro perceber o que antecede aquele momento e por fim deixando-se levar
pela pertinência do assunto e pelo encadeamento entre o diálogo e as imagens.
No texto que abre a exposição lemos: "Se a
máquina fotográfica foi importante no estabelecimento da ideia de conservação
da natureza, a partir do final do século XIX e até muito recentemente,
deveremos interrogar até que ponto o sistema de perspetiva que lhe está
associado é adequado à percepção das verdadeiras interações das espécies em
ecossistemas reais e das diferentes escalas nas quais as alterações climáticas
têm expressão". Será a nossa obsessão pela imagem, pelo ver e o observar
através das nossas próteses tecnológicas a condenação dos vários sistemas
colectivos na natureza? Serão os ecossistemas paralelos, gerados pelos dados da
monitorização, a nossa única aproximação ao que foi a observação da vida
animal? Mais que uma abordagem clássica do tema, são estas as questões
que nos assombram quando deixamos a sala de exposição do Espaço Projecto da
Fundação Calouste Gulbenkian e olhamos, quase instintivamente, para a câmera
fotográfica que trazemos na mão...
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