13 de abril 2024
Sala Lisa, Lisboa
Éme é o nome do projeto musical de João Marcelo, cantor e escritor de canções com pouco mais de 30 anos e no ativo há mais de uma década, embora se defina com bonomia como "dono de casa".
Éme é também um dos nomes ligados à editora Cafetra, um grupo de amigos que se distribuem e reconfiguram na formação de uma série de bandas, e que se mexem desde 2011 para organizar concertos coletivos, angariar fundos e editar CDs. Esta entidade híbrida, que contém projetos musicais como as Pega Monstro, Iguanas ou Sallim, inclui também elementos ligados à produção de objetos gráficos e à sua circulação. Foi nesse contexto, numa Feira Morta em 2014, que ouvi pela primeira vez Éme ao vivo, a tocar guitarra de pé ao fundo de uma sala cheia de gente, num piso, outrora consagrado à vida artística, de um edifício dos Restauradores.
Dentro do espírito do it yourself da comunidade Cafetra, faz todo o sentido que Éme tenha aprendido a tocar guitarra com tutoriais do Youtube ou com amigos que frequentavam aulas a sério. Falamos de um conjunto de pessoas que, sem grande pompa, utiliza e atualiza o que estiver ao seu alcance para fazer música, sejam instrumentos tradicionais portugueses como o adufe e o cavaquinho ou outros mais associados a fins educativos, como a melódica ou a flauta.
Dez anos, três álbuns e muitos concertos depois, encontramos Éme a apresentar o seu quinto trabalho de longa duração, "Disco Tinto", no pequeno palco da Sala Lisa, acompanhado por Moxila (que, como autora de banda desenhada, é conhecida por Mariana Pita), Miguel Abras, Lourenço Crespo e Francisca Aires Mateus. Nesta banda de cariz folk todos tocam vários instrumentos, e, na ausência de uma bateria, a percussão é de responsabilidade comum.
Fotografia: Filipa Aurélio |
As canções de Éme são fortes o suficiente para brilharem quando interpretadas a solo e de modo acústico, mas tocadas ao vivo e em conjunto fazem transbordar a alegria e a cumplicidade, contagiando quem estiver em presença.
Embora não conheça as pessoas à minha volta, para além de esporádicos e breves contactos no tráfico de um ou outro fanzine, existe a clara sensação de estar entre amigos nesta viagem pelas canções de "Disco Tinto", com passagens pontuais por discos anteriores. Muitos de nós sabem as letras de cor, e ao meu lado um fã (roadie? amigo?) está de tal modo entusiasmado que, além de apontar a luz do telemóvel à cara dos músicos, causando-lhes óbvio desconforto, produz uma série ininterrupta de incentivos vocais, até o cantor lhe pedir gentilmente que se cale.
As letras das músicas contêm inúmeros relatos anedóticos de quem passa grande parte da vida, não "na estrada", mas em comboios a caminho de terras recônditas onde há gigs agendados. Sob a aparente comicidade dos tempos de espera passados em tascas e cafés, desencontros com produtores de espectáculos e contactos com pessoas locais, estão presentes alusões à falta de público, e, claro, à falta de dinheiro.
São histórias que vão ao âmago das preocupações de quem procura viver do trabalho autoral em Portugal, e que se revê na circunstância de "aos trinta ainda ser um indigente", como canta Éme em "Dores Laborais". E são pessoas cada vez menos jovens as que encontram nestas canções oportunidade de catarse.
O concerto na Sala Lisa terminou, apropriadamente, com a música "Lisa", que é também o nome da terra de João Marcelo. Viver na lisa remete também para essa falta de conforto material que é apanágio de uma sociedade do capitalismo tardio, cada vez mais desigual. Assim atestam a raiva e energia com que o refrão é gritado pelo público.
Éme e Cafetra, nos gestos criativos que concretizam, cravam raízes na terra e fazem da resistência um modo de vida. Resistência à apatia, ao ressentimento, à fragmentação dos processos de produção cultural. Resistência que se materializa no trabalho consistente para um universo musical em expansão.