sábado, 1 de junho de 2024

Viagem a um universo musical em expansão

Concerto Éme apresenta Disco Tinto
13 de abril 2024
Sala Lisa, Lisboa

Éme é o nome do projeto musical de João Marcelo, cantor e escritor de canções com pouco mais de 30 anos e no ativo há mais de uma década, embora se defina com bonomia como "dono de casa".

Éme é também um dos nomes ligados à editora Cafetra, um grupo de amigos que se distribuem e reconfiguram na formação de uma série de bandas, e que se mexem desde 2011 para organizar concertos coletivos, angariar fundos e editar CDs. Esta entidade híbrida, que contém projetos musicais como as Pega Monstro, Iguanas ou Sallim, inclui também elementos ligados à produção de objetos gráficos e à sua circulação. Foi nesse contexto, numa Feira Morta em 2014, que ouvi pela primeira vez Éme ao vivo, a tocar guitarra de pé ao fundo de uma sala cheia de gente, num piso, outrora consagrado à vida artística, de um edifício dos Restauradores.

Dentro do espírito do it yourself da comunidade Cafetra, faz todo o sentido que Éme tenha aprendido a tocar guitarra com tutoriais do Youtube ou com amigos que frequentavam aulas a sério. Falamos de um conjunto de pessoas que, sem grande pompa, utiliza e atualiza o que estiver ao seu alcance para fazer música, sejam instrumentos tradicionais portugueses como o adufe e o cavaquinho ou outros mais associados a fins educativos, como a melódica ou a flauta.

Dez anos, três álbuns e muitos concertos depois, encontramos Éme a apresentar o seu quinto trabalho de longa duração, "Disco Tinto", no pequeno palco da Sala Lisa, acompanhado por Moxila (que, como autora de banda desenhada, é conhecida por Mariana Pita), Miguel Abras, Lourenço Crespo e Francisca Aires Mateus. Nesta banda de cariz folk todos tocam vários instrumentos, e, na ausência de uma bateria, a percussão é de responsabilidade comum.


Fotografia: Filipa Aurélio

 
As canções de Éme são fortes o suficiente para brilharem quando interpretadas a solo e de modo acústico, mas tocadas ao vivo e em conjunto fazem transbordar a alegria e a cumplicidade, contagiando quem estiver em presença.

Embora não conheça as pessoas à minha volta, para além de esporádicos e breves contactos no tráfico de um ou outro fanzine, existe a clara sensação de estar entre amigos nesta viagem pelas canções de "Disco Tinto", com passagens pontuais por discos anteriores. Muitos de nós sabem as letras de cor, e ao meu lado um fã (roadie? amigo?) está de tal modo entusiasmado que, além de apontar a luz do telemóvel à cara dos músicos, causando-lhes óbvio desconforto, produz uma série ininterrupta de incentivos vocais, até o cantor lhe pedir gentilmente que se cale.

As letras das músicas contêm inúmeros relatos anedóticos de quem passa grande parte da vida, não "na estrada", mas em comboios a caminho de terras recônditas onde há gigs agendados. Sob a aparente comicidade dos tempos de espera passados em tascas e cafés, desencontros com produtores de espectáculos e contactos com pessoas locais, estão presentes alusões à falta de público, e, claro, à falta de dinheiro.

São histórias que vão ao âmago das preocupações de quem procura viver do trabalho autoral em Portugal, e que se revê na circunstância de "aos trinta ainda ser um indigente", como canta Éme em "Dores Laborais". E são pessoas cada vez menos jovens as que encontram nestas canções oportunidade de catarse.

O concerto na Sala Lisa terminou, apropriadamente, com a música "Lisa", que é também o nome da terra de João Marcelo. Viver na lisa remete também para essa falta de conforto material que é apanágio de uma sociedade do capitalismo tardio, cada vez mais desigual. Assim atestam a raiva e energia com que o refrão é gritado pelo público. 

Éme e Cafetra, nos gestos criativos que concretizam, cravam raízes na terra e fazem da resistência um modo de vida. Resistência à apatia, ao ressentimento, à fragmentação dos processos de produção cultural. Resistência que se materializa no trabalho consistente para um universo musical em expansão.

Nos limites da cidade

Exposição Cerco de Lisboa

Arquivo Municipal de Lisboa / Fotográfico
4 dezembro a 2 março 2024

Artistas: Augusto Brázio, Lara Jacinto, Mag Rodrigues, Paulo Catrica, Pedro Letria, São Trindade e Valter Vinagre.

Curadoria: Alejandro Castellote.

Direção de Produção: Nuno Aníbal Figueiredo (Associação Número – Arte e Cultura).


A exposição "O Cerco de Lisboa" no Arquivo Municipal de Lisboa reuniu sete artistas que interpretaram de forma única e pessoal o conceito de cerco, utilizando a fotografia como meio de expressão.

Dividida em dois pisos, a exposição oferecia no primeiro andar as fotografias dos artistas, enquanto o segundo piso estava destinado a duas salas de vídeo. A primeira exibia um vídeo de Valter Vinagre, intitulado “Aro”, acompanhando a vida diária de um grupo de pessoas em situação de sem-abrigo, num armazém abandonado. Já a segunda sala apresentava um vídeo que continha depoimentos dos artistas sobre os seus processos criativos, escolhas e interpretações do tema. Penso que foi a primeira vez que vi esta dissecação do pensamento do artista na própria exposição. Acredito que a visualização deste vídeo tenha tornado a experiência mais enriquecedora.

Descendo ao piso inicial, o das fotografias, o espaço estava organizado como um labirinto, com cada secção dedicada a um artista. Embora cada fotógrafo tivesse o seu próprio espaço, havia uma conexão subtil entre os trabalhos, criando um fio narrativo e visual que unia todos os sete cantos da exposição. Quase como um puzzle.

Este puzzle e esta viagem começa com "Chegada" de Lara Jacinto, cujas fotografias formavam uma vista panorâmica e fragmentada de pessoas e lugares. As fotografias estavam dispostas como uma linha horizontal que segue, mas que nos fazia parar e olhar não só para os pormenores, mas também para o conjunto de fotos como um todo. Esta série evocava a sensação de uma viagem, como se estivéssemos a observar a vida a passar através de uma janela de um carro. Não estamos a viver ou conhecer melhor o espaço, mas estamos a passar por ele. Dá a sensação de um olhar superficial do lugar, que não se aprofunda.





Seguindo para "Poder" de Augusto Brázio, encontramos uma interpretação do cerco da cidade através da Assembleia da República. Ao contrário do resto da exposição, interpretamos esta ideia através de um lugar de poder. As fotografias, individualmente, parecem não dizer nada. Vemos representados detalhes dos murais da assembleia, pormenores de quadros, alguns bustos intercalados com retratos de pessoas comuns. No entanto, quando olhamos para elas como um todo, e não como imagens individuais, revela-se diante de nós um diálogo sobre o colonialismo e os seus vestígios na sociedade contemporânea.
 




Em “Dentro de ti” de Valter Vinagre, tal como na “Chegada” de Lara Jacinto, parece haver uma ligação nas imagens, uma paisagem feita de várias fotografias que se interligam. No entanto, o sentimento já não é o de viajante que passa. Acabei por sentir que me demorava mais em cada imagem, havia mais pormenor e mais intimidade com o espaço e as pessoas. Senti quase como uma intromissão na privacidade de alguém. Como quem entra na casa de alguém, sem convite. Neste caso, de pessoas que não têm acesso à habitação.

 



"A Cor da Luz" de Mag Rodrigues abordava questões de identidade e exclusão, retratando pessoas com albinismo nos seus ambientes cotidianos.

Em “Malabar”, Pedro Letria fotografa artistas de rua que fazem malabarismo como forma de subsistência. A disposição das imagens na parede é feita tal qual o malabarismo, como se as imagens fossem as próprias bolas no ar, em grupos de três. Vemos uma interpretação de “cerco” como alguém que te pára na estrada, como uma cancela na entrada da cidade. Alguém que também vive nos limites da sociedade, na precariedade.





"Dos Passos em Volta" de São Trindade trazia uma perspectiva de uma caminhante que explora Lisboa, sem rumo, sem destino fixo ou hora para chegar. Pareceu-me uma análise mais pessoal e introspectiva, ao contrário das outras respostas, que fotografaram o outro. Senti que acompanhei o deambular de alguém.





A exposição terminava com "There’s more to the Picture than meets the eye. Benfica 2022-23" de Paulo Catrica, que explorava os limites da cidade através das Portas de Benfica. Paulo foca-se também mais no espaço, do que propriamente nas pessoas. Estas imagens foram as que me pareciam ter menos narrativa associada.

O que mais me marcou talvez tenha sido o vídeo “Aro”, de Valter Vinagre. Senti-me como se fosse um espectador da miséria. Como se a miséria quisesse ser “bela” de alguma forma. Certas imagens e interações pareciam pouco genuínas, quase encenadas. Será que o eram? Saí com algumas questões. Como se retrataria esta comunidade se lhe fosse dado um lugar de fala e de auto-representação? Quão diferente seria disto que vejo aqui? De que forma é que estas imagens os ajudam? Têm de ajudar? Para que servem? O que estão a dizer? Têm de dizer alguma coisa? Porque sinto este desconforto? Será que o objetivo era mesmo eu sair daqui com estas questões todas?





Ao deixar a exposição, tudo o que aqui vi continuava a ressoar na minha cabeça. Do Martim Moniz ao Cais do Sodré, senti que existiam duas Lisboas diferentes. Senti que existem, de facto, muitos muros invisíveis à nossa volta.

Talvez o maior mérito desta exposição seja chamar-nos à atenção para eles.




Há tanta gente como eu, tantos que pensam como eu

Concerto Sopa de Pedra

SMUP - Sociedade Musical União Paredense

27 de Abril de 2024

Cartaz: Madalena Matoso





Como celebração dos 50 anos do 25 de Abril, o grupo de investigação musical Sopa de Pedra proporcionou uma experiência de partilha e união a todos os presentes na SMUP, no dia 27 de abril de 2024.

Ao entrarmos no recinto, fomos recebidos por um palco decorado com cravos, já antecipando uma noite de celebração da música portuguesa e da história de luta e resistência que ela carrega. Este evento na SMUP foi o culminar de uma série de três concertos que passaram por Paris, no Theatre de la Ville - Festival la Place, e por Peniche, na inauguração do Museu Nacional Resistência e Liberdade. Os três P’s. Este último concerto, em Peniche, foi realizado no mesmo dia que o concerto na SMUP.

Apesar do desgaste que uma agenda tão intensa poderia causar, a energia emanada pelo grupo e pelo público era palpável, envolvendo-nos durante toda a atuação e revigorando-nos, tanto ao público (falo por mim) como aparentemente também a quem estava em palco.

No início do concerto, sete vozes entram em palco, faltando três para completar este grupo composto por dez mulheres. As vozes eram acompanhadas apenas por percussão e apenas em algumas músicas. O ambiente e as camadas que aquelas sete vozes criavam por si só, mesmo sem o elemento da percussão, transmitiam uma combinação única de doçura, inquietação e revolta. O repertório foi uma viagem pela música de intervenção e popular, com interpretações de canções de Amélia Muge, GAC - Vozes na Luta, Zeca e José Mário Branco, entre outros.

Um dos momentos que mudou a minha atenção durante o resto do espetáculo ocorreu durante uma interação com o público. Uma das artistas partilhou que aquela era a primeira vez que tocava em Lisboa com o grupo, mostrando surpresa pelo acolhimento caloroso e energia que estava a receber. A partir daí, prestei bastante atenção a este elemento do grupo, querendo captar as suas reações ao longo da atuação. Reações que faziam crer que o que estava a acontecer ali, naquela noite, era algo de novo. Algo que não costuma acontecer. Em palco, partilharam connosco o quanto estavam a precisar de um momento assim. Fez-me refletir sobre a dificuldade de ser artista em Portugal e a falta de valorização do nosso setor cultural. Acredito que quem corre por gosto também cansa. E se o cansaço nos impedir de correr, todos perdemos com isso.

A conexão entre quem estava no palco e quem estava na plateia era tão forte que, em muitos momentos, parecia que todos na sala partilhavam a mesma experiência. Como se aquele momento tivesse deixado de ser um concerto, transcendendo a tradicional separação entre artistas e audiência. Senti que não havia um entertainer e um espectador, apenas um grupo coeso, num momento de partilha. Se pudesse levar este sentimento para tantas outras esferas da nossa vida, se ele se materializasse noutros momentos. Mas por agora, existiu ali, de braços dados e a cantar em conjunto.

Já no final, com o palco vazio após a saída do grupo, a canção "Ó Minha Amora Madura" começa a ser cantada espontaneamente, no meio do público. De repente, toda a sala estava a cantar. As artistas regressaram e juntaram-se a este coro coletivo, mesmo na beira do palco, num dos momentos mais emotivos da noite.

Este concerto das Sopa de Pedra foi uma celebração da nossa cultura, da nossa história e da importância que temos uns para os outros.


Vida múltipla de 11 artistas gravadores

Exposição 11 Livros para 11 Artistas
Contraprova - Atelier de Gravura
9 de maio a 14 de junho 2024
Biblioteca de Alcântara

A Contraprova é um projeto associativo que agrega artistas cuja prática atravessa a gravura e a impressão artesanal. Um dos propósitos da sua fundação, em 2008, foi proporcionar um espaço de trabalho, totalmente equipado para a prática da gravura, mas também de encontro e de partilha de saberes, promovendo a divulgação e a aprendizagem das técnicas ali tornadas possíveis.

A exposição 11 Livros para 11 Artistas surge de um convite endereçado pela Biblioteca de Alcântara aos artistas da Contraprova, propondo a escolha individual de uma obra literária relacionada, por via da memória ou da imaginação, com a prática da gravura. As estampas aqui apresentadas são instâncias de materialização dessas relações, mas, tal como as estampas, as interpretações são múltiplas.

Vista da galeria da Biblioteca de Alcântara.


Começo por me deter no trabalho da artista Sofia Morais, uma gravura em linóleo com sobreposição de duas matrizes, em que um tronco castanho de mulher parece debruçar-se sobre nós, apoiando os cotovelos no passe-partout, ao mesmo tempo que pássaros se libertam do seu interior. Neste corpo condensam-se opressão e leveza, fazendo eco da dureza e precisão das palavras de Maya Angelou, autora do livro escolhido pela artista gravadora.

Sofia Morais, "O canto dos pássaros"


Susana Romão apresenta, em diálogo com um poema de Adília Lopes, uma gravura colorida cuja expressão lúdica não deixa adivinhar a complexidade do processo de produção. Trata-se de uma água forte em chapa de zinco, com mordedura profunda, a que acrescentou elementos em Tetrapak, posteriormente intervencionada em pequenos detalhes com trabalho de pincel e tintas acrílicas.

Susana Romão, "Mais vale baratas que DDT"


Refiro ainda o trabalho da artista Joanna Latka, que a partir d'O homem duplicado de José Saramago apresenta um tríptico de provas feitas a partir da mesma matriz criada com verniz mole – em que cada uma das imagens idênticas é prolongada pelo desenho, ganhando vida para além dos limites da chapa e ocupando lugares contíguos num universo comum. Apetece percorrer sem pressa as linhas sinuosas do já familiar desenho de Joanna Latka, e ensaiar leituras imaginadas nos arabescos contidos em folhas de papel esvoaçantes. A figura triplicada consome-se no exercício da escrita com a mesma entrega que é necessária à prática da gravura.

Joanna Latka, "Vida dupla de um escritor"


O facto de estas estampas estarem apenas fixadas à parede, sem vidro de entremeio, beneficia a sua visualização, num espaço em que entradas de luz natural, iluminação artificial e revestimentos polidos geram uma profusão de reflexos.

Por ter também uma ligação à impressão artesanal, tenho para mim que a gravura em metal é uma arte pesada. Da preparação e polimento das chapas à gravação mecânica (no caso da técnica de ponta seca), passando pela toxicidade da caixa de resina ou dos vapores dos ácidos corrosivos (no caso da água forte e águas tintas), todo o processo requer um certo amor ao perigo e ao que é difícil. Nada que a acuidade e delicadeza das marcas que aqui aparecem replicadas no papel deixem transparecer.

Vista da galeria da Biblioteca de Alcântara.


Dureza, precisão, complexidade e multiplicidade são conceitos que nos permitem viajar entre o universo das letras e o dos traços e sulcos da gravura, mas que não esgotam a miríade de possibilidades que estas obras fazem presentes. Por isso, e para contemplar o trabalho dos restantes artistas da Contraprova – Alexandre Jorge, Ana Neto, Daniela Crespi, Luís Fernandes, Marcela Manso, Margot Kick, Marija Tošković e Ricardo Campos – nada melhor que fazer uma visita à galeria da Biblioteca de Alcântara até dia 14 de junho.