quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Uma publicidade. Um público


Até aos anos 1970, a publicidade era sobretudo uma questão alimentar, de saúde, de consumo. Todos os designers, ilustradores, artistas plásticos, arquitetos, trabalhavam na publicidade de uma forma envergonhada, encapotada. A publicidade era vista como uma contaminação negativa. A publicidade era uma atividade mal amada mas em que as pessoas davam tudo para que as coisas saíssem bem. O mais comum era associarmos esta atividade ao consumo. Inconscientemente. De produtos, de ideias, onde a única preocupação é vender. Mas, felizmente nem sempre é assim.

Hoje conto uma história diferente.

"Pedofilia. Você pode não ver, mas pode estar acontecendo."




A agência Euro RSCG Brasil criou uma campanha para a CERCA (Centro de Referência Contra o Abuso Infantil) com o objetivo de chamar a atenção para um grave problema. Abuso infantil e a maneira como um tema como este costuma ser barrado e negado por muitas famílias brasileiras.

O diferente está no que não é visto a priori. É o que está por detrás. O depois. O que é preciso para visualizar toda a peça gráfica: apagar a luz. Desligar. Descodificar. A criatividade está no modo como a publicidade foi feita. A ousadia na forma como o agressor é mostrado no ato da agressão. 

Utilizada uma tinta florescente, as peças criam o cenário ambíguo do "ambiente casa”. Na parte superior, aparece uma criança com medo do escuro e a frase "apague as luzes e ajude a acabar com o medo de escuro que a Aninha tem". Na outra metade, quando o leitor apaga a luz, é revelada os seus segredos: a silhueta da criança e do agressor com a frase "Pedofilia. Você pode não ver, mas pode estar acontecendo”.





O que está intrínseco a este tipo de publicidade é o modo como olhamos. Como vemos os dois lados da moeda. Os dois lados da história. A dualidade de um simples olhar. Da dúvida. Da curiosidade. Assim, é de estranhar que o nosso olhar tenha duas visões e que ambas se desliguem, se desviem. O que está e o que não está, mas que mesmo assim não nos lembremos de ver tudo. É quase sempre forçado. Forçado o olhar que por outros nos obrigam a olhar novamente.

As técnicas de comunicação são cada vez mais utilizadas nesses tipos de campanha e as avaliações mostram que o impacto produzido nos receptores tem sido gigante. As ONG’s estão a ser reconhecidas pela sua importância neste tipo de trabalhos e cada vez mais requisitam profissionais da área de comunicação, não só para captar recursos, mas também para mobilizar a população a aderirem a sua causa. 

Embora a publicidade seja apresentada como a forma mais lucrativa, eficiente e apetecível de os designers usarem os seus talentos, é necessário inverter as prioridades e começar a usar o design para fins sociais e culturais, desfazendo assim a ideia do design como sinónimo de publicidade em que os designers acabam por ser vistos não só como cúmplices casuais, mas também como culpados conscientes.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Capitulares



Também denominada por Inicial, palavra que deriva do latim initialis, initium. E de acordo com João Alves Dias esta define-a como «maiúscula por vezes empregue no início de um capítulo, ou até mesmo de períodos, em corpo superior ao usado no texto. Quando ornamentada e de grandes dimensões chama-se capitular” (1994).  Por isso, uma inicial/capitular poderá ter o tamanho de várias linhas do corpo de texto e como acontece em alguns documentos medievais, ocupar uma página inteira.

            Existem dois momentos cruciais na história das capitulares: a primeira na época da pré-impressão: manuscritos e no pós-impressão: livro impresso. Com a transição dos «rolos» para os «livros», através dos códices, em que se inicia pela primeira vez, no contexto ocidental, uma estrutura gráfica coerente e facilmente abrangível, que ditou o caminho para a ornamentação e neste caso em específico à introdução da capitular. Desenvolvido nos finais do século VII, a partir dos manuscritos, e por isso uma das formas de decoração mais antiga, antecedendo desde logo à iluminura. Inicialmente caracterizavam-se por formas mais simples, não decoradas e maioritariamente monocromáticas, como maiúsculas romanas como inicial e texto do corpo escrita a minúscula carolina. Acabam por aparecer mais tarde iniciais que começam uma nova linguagem visual, um arquétipo comum, as primeiras capitulares decoradas, explorando temas geométricos, fitomórficos, zoomórficos e figuras grotescas. Nasce no século VIII, a capitular figurativa, que se destaca pelo uso da figura humana e do animal como elemento ornamental, no entanto este estilo só ganhará importância mais tarde, a partir do século XI, com a introdução da narrativa na sua composição, como por exemplo: eventos religiosos etc…



Quatro Evangelhos, escrita em Itália com letras iniciais
e decorada com uma inicial muito simples. Século VI.
Lindisfarne Gospels, um manuscrito do século VIII
           

            Com a introdução dos tipos móveis de Johannes Guttenberg em 1450, no mundo ocidental, uma enorme revolução para a história do livro, havendo uma mudança do paradigma da sua produção. Para além dos caracteres que compõem o texto, a composição gráfica ornamental é naturalmente «transferida» para este contexto mais tarde, pois inicialmente a etapa dos incunábulos, as capitulares ornamentadas ainda seriam colocadas manualmente, não fugindo às temáticas supramencionadas, e o mesmo veio-se a verificar nos séculos seguintes, como por exemplo, quando José Gonçalves se refere a algumas capitulares decoradas de século XVII «baseado numa decoração em que motivos vegetalistas, zoomórficos e antropomórficos se combinam para desenhar as letras» (2010).


Iluminura de manuscrito.
Capitular "S" - Imprensa de Luís Rodriges. 1604

Capitular b"- Imprensa de Luís Rodriges. 1604

            Durante o século XIX e inícios do século XX o uso da capitular 
decorada manteve-se bastante em voga. Porém, ao longo do último século, acabou por perder relevância na identidade gráfica do editorial. Mais recentemente, movimentos afirmativos de revivalismo no design gráfico vem buscar e despertar o imaginário colectivo destes elementos ornamentais, trazendo-as para o mundo tecnológico, estando cada vez mais voga e não confinado apenas a magazines.










The Other Side








“This is a book about beauty.
And about my love for my friends.”


The Other Side, livro homónimo ao bar que Nan e os amigos frequentam na sua juventude é um exercício de memória. Este foto livro guarda registos de duas décadas da vida da artista e dos seus amigos, transparecendo a admiração e amor que Nan tem por eles. Fotografar para Nan é um ato de amor para com quem se deixa fotografar, é uma homenagem às pessoas mais bonitas que conhece, a sua forma de lhes mostrar a força e beleza que vê neles, (“My desire is to preserve the sense of people lives, to endow them with the strength and beauty I see in them.”).


Nas suas fotografias vemos Nan e os amigos a rir, chorar, discutir, em festas, casamentos, funerais, acompanhamos o seu dia a dia, os seus rituais, atos de grande intimidade. Todas as suas fotografias mostram proximidade e intimidade e o objeto livro guarda essa intimidade entre as suas páginas. As pessoas aparecem despidas perante a câmara não só fisicamente, como emocionalmente. Vemos estas pessoas, os seus amigos, fotografados de tal maneira incessante que se tornam reconhecíveis para nós.

E, se toda a sua obra é um diário visual do que é estar vivo e da dor que vem com isso, The Other Side, em especial, é um diário da amizade, da beleza, do amor, da vida e da morte.

Jimmy Paulette and Tabboo in the bathroom (1991)
Cookie and Millie in the Girl’s bathroom at the Mud Club (1979)

Ao longo dos anos em que fotografou os seus amigos, Goldin viu muitas das suas vidas serem tiradas pelo vírus da SIDA. A intensa manifestação da liberdade sexual trouxe consigo não só a felicidade dos que a experimentaram, mas também muitos sentimentos de dor e de perda. 


Cookie Muller, uma das figuras mais fotografadas por Nan Goldin, aparece nas suas fotografias em diversas situações, em bares, com amigos, com o seu namorado Sharon, com o seu filho Max, acompanhando-a até à sua decadência, devido à doença, e até à sua morte, quando é fotografada no caixão. 

Cookie and Vittorio’s Wedding (1986)
Cookie at Vittorio’s Casket (1989)
Cookie in her Casket (1989)



Fotografar revelou-­se assim, para Nan, um ato de resistência, uma tentativa de vencer a morte através do documento, do registo fotográfico. 


Mas, 


“I used to think that I could never lose anyone if I photographed them enough. In fact, my pictures show me how much I’ve lost.” (Goldin, Couples and Loneliness , 1999)


A Gogmagog Press e a obra de Morris Cox


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Morris Cox, inglês nascido em 1903, com formação em artes e literatura, aos cinquenta e quatro anos, cansado de ter seus trabalhos – por vezes linguisticamente demasiado experimentais – recusados por editoras, decidiu fundar a sua própria private press, a Gogmagog, A partir daí, passou a publicar ele mesmo os seus escritos. Nesse primeiro momento, no qual ainda se familiarizava com a sua nova máquina de impressão em letterpress, lançou títulos que misturavam textos e imagens de forma tradicional, ou seja, fazendo do livro apenas um veículo para a expressão de um conteúdo e não o conteúdo em si.

Essa história mudou quando, em 1960, Cox acidentalmente descobriu que a tinta poderia ser transferida de uma matriz de impressão por métodos bastante diferentes daqueles que lhe haviam sido ensinados na escola de artes, o que ele veio, mais tarde, a chamar de action printing. Nesse mesmo ano publicou The Curtain, livro que traz um poema de sua autoria ilustrado com gravuras feitas a partir de pedaços de estopa, trapos de tecido, folhas secas, penas, tinta diluída com gasolina, e até mesmo um crânio de passarinho. A partir daí os processos de impressão de suas publicações se tornaram eles próprios a essência das mesmas, perdendo suas atribuições meramente funcionais para se tornarem parte do processo criativo.

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Após o lançamento do The Curtain, a Gogmagog Press disparou a experimentar radicalmente diferentes formas de impressão e materiais na composição dos seus livros. Concepção e execução passaram a não se apresentar como processos distintos, mas cooperativos e indissociáveis. Morris Cox misturou técnicas e tintas, resgatou processos históricos e subverteu-os, fez do texto imagem, do paratexto texto. Utilizou objetos efêmeros e descartáveis, alheios ao mundo da impressão, para imprimir em papéis refinados, bem como construiu suas próprias máquinas para aperfeiçoar o sistema de impressão indireta que estava a desenvolver.






Outro trabalho interessante de Cox, realizado em 1963, quando ele estava com sessenta anos, é o livro Crash!, que pode ser considerado uma espécie de manifesto gráfico do autor, que descreve, nas páginas finais,  as técnicas utilizadas por ele para a impressão de cada uma das imagens ali presentes. Nessa altura a Gogmagog Press já estava a transcender a sua primeira missão de simplesmente publicar os trabalhos de seu idealizador para se transformar ela mesma na própria obra de Morris Cox. Cada livro era uma aventura de produção, uma soma de texto, imagem e produção que não se encaixava em nenhuma categoria preexistente. Todos encadernados manualmente pelo autor.





Ao se aproximar dos oitenta anos, quando o trabalho de impressão começou a se tornar mais penoso para seu corpo, Cox trocou o letterpress e as máquinas de impressão indireta que criou por uma máquina de xerox, na qual seguiu produzindo seus livros até os oitenta e seis anos.




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Morris Cox morreu em 1998, aos noventa e quatro anos. Seu trabalho segue até hoje relativamente pouco conhecido, mas seu vigor é ímpar.



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Referências Bibliográficas:
PIQUEIRA, Gustavo. Morris Cox e sua Gogmagog Press. Editora Lote 42: São Paulo, 2017.



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