A MORTE INVESTIGADA
O premiado fotógrafo português Edgar Martins (1977), a
residir habitualmente no Reino Unido, expõe em Lisboa o seu mais recente e
inquietante trabalho. Silóquios e solilóquios
sobre a morte, a vida e outros interlúdios é apresentado em dois espaços,
no MAAT- Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia/Fundação EDP e na Galeria
Cristina Guerra.
O projecto envereda por uma direcção não habitual no percurso
do fotógrafo, que, ao longo da sua já vasta carreira internacional, se tem
interessado por temáticas de teor menos filosófico como a tecnologia, a
arquitectura, a paisagem e o lugar, e por conceptualizações menos arrojadas com
opções formais mais homogéneas. É o caso das obras The Rehearsal of Space & the Poetic Impossibility to Manage the
Infinite (2014), The Time Machine
(2011), Black Minutes of Memorial Snow
(2010), Reluctant Monoliths (2009),
para referir apenas as mais recentes.
Silóquios e solilóquios
sobre a morte, a vida e outros interlúdios resulta de uma pesquisa
realizada ao longo de três anos junto do Instituto Nacional de Medicina Legal e
Ciências Forenses. Edgar Martins apropria-se de fotografias do acervo
arquivístico da instituição, em particular de provas forenses relativas a crime
e suicídio, para um confronto visual, narrativo e conceptual com imagens da sua
autoria, de naturezas diversas e aqui recontextualizadas.
A representação ou a evocação da morte estão presentes na
prática fotográfica desde os seus primórdios. Documentar, recordar, exorcizar
são funções primárias do medium.
Desde a sua invenção (1839) que a fotografia é utilizada pela investigação
científica como ferramenta que garante a fiabilidade. Mas é exactamente esse
corpo da imagem que o fotógrafo quer invadir com questionamentos e especulações,
para propor uma compreensão da nossa “relação com a morte, especialmente com a
morte violenta (...), e o papel da fotografia neste processo”.
O título parece querer evocar a obra Siloques,
superloques soliloques et interloques de pataphysique (Silóquios, superlóquios, solilóquios e interlóquios de patafísica) de Alfred Jarry, poeta simbolista,
inventor da “patafísica” – uma “ciência das excepções” e das “soluções
imaginárias” que, pela via da incoerência e do absurdo, denuncia paradoxos da existência quotidiana. Será
também por via de imaginações e imaginários que Edgar Martins redige este seu manifesto
científico-poético, também ele assente numa tensão paradoxal entre a realidade
e a ficção, a ciência e a invenção, uma forma de “revelar a fragilidade dos
nossos sistemas conceptual e cognitivo”, segundo o autor.
No amplo espaço da galeria do MAAT, as
fotografias, de dimensões variáveis, mostradas isoladamente ou em associação
com outra(s), obrigam-nos constantemente a um olhar ora distante ora próximo, neste
caso quando nos propõem a leitura dos pequenos textos descritivos de histórias
trágicas e violentas que as acompanham. Os títulos das obras são
exemplificativos: “Homem
deixa uma carta de despedida com 1904 páginas e mata-se numa experiência de
exploração filosófica”, “O
ciúme resultou em tragédia, 1971” ou “ O
meu trabalho está concluído. Porquê esperar?...” são alguns dos casos reais
trazidos para o campo da arte pelo fotógrafo. Este movimento do olhar, também ele
um exercício mental, é transversal e contínuo. Estamos inevitavelmente cativos
entre o objecto artístico e o documento, entre o presente e o passado, entre a ficção
e a realidade, entre estética e ética, entre a vida e a morte.
Neste trabalho, a morte documentada cientificamente ou
imaginada é também estetizada. As imagens minimalistas de Edgar Martins –
pedras, papéis, superfícies, lugares, paisagens – construídas com o seu
habitual rigor técnico, são visualmente muito apelativas. Em contraponto, as imagens
documentais – fragmentos do cadáver, armas, projécteis, utensílios médicos,
cartas – apresentam o desgaste da passagem do tempo, uma forma de estetização
da ruína, no espírito da arte novecentista.
Um conjunto ordenado de provas documentais, uma série
alinhada de versos de postais fotográficos do início do século XX e uma
projecção em contínuo de imagens de arquivo, reunidos numa pequena sala, sugerem o ambiente de um gabinete de investigação, policial
ou científico. A presença do dispositivo mecânico que, na sua performance
articula imagem, som, tempo, luz e espaço parece ser a própria metáfora da vida
enquanto passagem.
Na Galeria Cristina Guerra, a exposição multiplica os
exemplos já apresentados no MAAT, seguindo a mesma lógica expositiva:
associação de imagens de diferentes proveniências, séries, formatos vários,
texto que acompanha as imagens e a presença da projecção. Reafirmam-se as
intenções do autor, com novas histórias e novas imagens, seleccionadas de entre
as mais de 1000 fotografias realizadas e as mais de 3000 apropriadas que terá
reunido para este projecto.
Um livro, com o título da exposição, vai brevemente para as
livrarias. Nas 206 páginas desta cuidadosa edição da The Moth House
encontramos, em reprodução fiel, as fotografias e os textos que constituem a
exposição. O documento, que contém ensaios de Sérgio Mah, curador da exposição
do MAAT, do académico Roger Luckhurst e do filósofo Timothy Secret, será
certamente uma boa opção para recordar ou conhecer este interessante trabalho
de Edgar Martins.
Créditos
fotográficos:
Edgar Martins
e Teresa Huertas
Outubro 2016
Este texto não
segue o A.O.
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