segunda-feira, 28 de novembro de 2016

A Morte Investigada

A MORTE INVESTIGADA


O premiado fotógrafo português Edgar Martins (1977), a residir habitualmente no Reino Unido, expõe em Lisboa o seu mais recente e inquietante trabalho. Silóquios e solilóquios sobre a morte, a vida e outros interlúdios é apresentado em dois espaços, no MAAT- Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia/Fundação EDP e na Galeria Cristina Guerra.

           
            

O projecto envereda por uma direcção não habitual no percurso do fotógrafo, que, ao longo da sua já vasta carreira internacional, se tem interessado por temáticas de teor menos filosófico como a tecnologia, a arquitectura, a paisagem e o lugar, e por conceptualizações menos arrojadas com opções formais mais homogéneas. É o caso das obras The Rehearsal of Space & the Poetic Impossibility to Manage the Infinite (2014), The Time Machine (2011), Black Minutes of Memorial Snow (2010), Reluctant Monoliths (2009), para referir apenas as mais recentes.

Silóquios e solilóquios sobre a morte, a vida e outros interlúdios resulta de uma pesquisa realizada ao longo de três anos junto do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses. Edgar Martins apropria-se de fotografias do acervo arquivístico da instituição, em particular de provas forenses relativas a crime e suicídio, para um confronto visual, narrativo e conceptual com imagens da sua autoria, de naturezas diversas e aqui recontextualizadas.

A representação ou a evocação da morte estão presentes na prática fotográfica desde os seus primórdios. Documentar, recordar, exorcizar são funções primárias do medium. Desde a sua invenção (1839) que a fotografia é utilizada pela investigação científica como ferramenta que garante a fiabilidade. Mas é exactamente esse corpo da imagem que o fotógrafo quer invadir com questionamentos e especulações, para propor uma compreensão da nossa “relação com a morte, especialmente com a morte violenta (...), e o papel da fotografia neste processo”.

O título parece querer evocar a obra Siloques, superloques soliloques et interloques de pataphysique (Silóquios, superlóquios, solilóquios e interlóquios de patafísica) de Alfred Jarry, poeta simbolista, inventor da “patafísica” – uma “ciência das excepções” e das “soluções imaginárias” que, pela via da incoerência e do absurdo, denuncia  paradoxos da existência quotidiana. Será também por via de imaginações e imaginários que Edgar Martins redige este seu manifesto científico-poético, também ele assente numa tensão paradoxal entre a realidade e a ficção, a ciência e a invenção, uma forma de “revelar a fragilidade dos nossos sistemas conceptual e cognitivo”, segundo o autor.




No amplo espaço da galeria do MAAT, as fotografias, de dimensões variáveis, mostradas isoladamente ou em associação com outra(s), obrigam-nos constantemente a um olhar ora distante ora próximo, neste caso quando nos propõem a leitura dos pequenos textos descritivos de histórias trágicas e violentas que as acompanham. Os títulos das obras são exemplificativos: “Homem deixa uma carta de despedida com 1904 páginas e mata-se numa experiência de exploração filosófica”,O ciúme resultou em tragédia, 1971” ou “ O meu trabalho está concluído. Porquê esperar?...” são alguns dos casos reais trazidos para o campo da arte pelo fotógrafo. Este movimento do olhar, também ele um exercício mental, é transversal e contínuo. Estamos inevitavelmente cativos entre o objecto artístico e o documento, entre o presente e o passado, entre a ficção e a realidade, entre estética e ética, entre a vida e a morte.





Neste trabalho, a morte documentada cientificamente ou imaginada é também estetizada. As imagens minimalistas de Edgar Martins – pedras, papéis, superfícies, lugares, paisagens – construídas com o seu habitual rigor técnico, são visualmente muito apelativas. Em contraponto, as imagens documentais – fragmentos do cadáver, armas, projécteis, utensílios médicos, cartas – apresentam o desgaste da passagem do tempo, uma forma de estetização da ruína, no espírito da arte novecentista.


  
Um conjunto ordenado de provas documentais, uma série alinhada de versos de postais fotográficos do início do século XX e uma projecção em contínuo de imagens de arquivo, reunidos numa pequena sala, sugerem o ambiente de um gabinete de investigação, policial ou científico. A presença do dispositivo mecânico que, na sua performance articula imagem, som, tempo, luz e espaço parece ser a própria metáfora da vida enquanto passagem. 

Na Galeria Cristina Guerra, a exposição multiplica os exemplos já apresentados no MAAT, seguindo a mesma lógica expositiva: associação de imagens de diferentes proveniências, séries, formatos vários, texto que acompanha as imagens e a presença da projecção. Reafirmam-se as intenções do autor, com novas histórias e novas imagens, seleccionadas de entre as mais de 1000 fotografias realizadas e as mais de 3000 apropriadas que terá reunido para este projecto.




Um livro, com o título da exposição, vai brevemente para as livrarias. Nas 206 páginas desta cuidadosa edição da The Moth House encontramos, em reprodução fiel, as fotografias e os textos que constituem a exposição. O documento, que contém ensaios de Sérgio Mah, curador da exposição do MAAT, do académico Roger Luckhurst e do filósofo Timothy Secret, será certamente uma boa opção para recordar ou conhecer este interessante trabalho de Edgar Martins.



Créditos fotográficos:
Edgar Martins e Teresa Huertas

Outubro 2016

Este texto não segue o A.O.

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