É uma manhã ensolarada de domingo. Encontro-me atrasada (e despreparada) para o choque que irei tomar. A tarefa: perceber, através do mais recente filme da realizadora Zaynê Akyol, os motivos que levaram muitos jovens curdos na diáspora a aliarem-se, na década de 1990, ao PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão, em português).
O filme é Gulîstan, Land of Roses,
um documentário exibido na edição deste ano do Doclisboa, que decorreu de 20 a
30 de outubro, na Culturgest. Trata-se de um breve e intenso recorte acerca do
cruzamento de duas linhas narrativas vivenciadas pela realizadora em uma viagem
ao seu passado e ao conflito ainda presente na região que compreende Irão,
Iraque, Turquia e Síria.
A jornada tem início no Canadá, país para o
qual Akyol imigrou quando pequena, e vai rumo às montanhas de sua regiao de
origem, o Curdistão. Complexo e com uma forte carga dramática, o filme segue os
passos antes dados por Gulîstan, amiga de infância da realizadora, que se
tornou membro do PKK, grupo curdo de resistência majoritariamente feminino e um
dos principais combatentes do ISIS.
Em Montreal, ambas moravam no mesmo
prédio. Gulîstan, aos 18 anos, cuidava da pequena Akyol, com então 5 anos de
idade. Na Turquia, viviam na mesma vila. “Ela costumava falar de coisas que eu
não necessariamente percebia. Falava sobre os curdos e também sobre comunismo.
Eu a considerava como minha irmã mais velha,” afirmou a realizadora.
Em 2000, aos 25 anos, a jovem combatente é
morta em confrontos entre o PKK e as forças armadas do Curdistão no Iraque, na
fronteira turca-iraquiana. O forte elo entre as duas e o episódio traumático
fizeram Akyol alimentar a ideia de realizar um documentário para entender a
escolha de sua “irmã” e, ao mesmo tempo, para uma possível reconexão à sua
terra natal. É então que a realizadora retorna aos acampamentos, ganha a
confiança do grupo e conhece sua personagem principal, Sodzar, que irá
mostrar-lhe tudo o que aprendeu desde que tinha nove anos e vivia em meio às
combatentes até a posição atual de líder de um dos acampamentos.
A relação de dualidade permeia o filme constantemente. Sodzar representa o espírito e, em parte, a própria Gulîstan ao desenvolver uma intensa relação de amizade com a realizadora. Akyol, por ser a pessoa por trás da câmera e por estar no front de batalha, literalmente e metaforicamente, de outra forma representa o duplo, pois é também personagem de seu próprio filme. O que é o regresso também pode ser lido como afastamento. Akyol volta a uma vida que pouco viveu e busca preencher a ausência de Gulîstan. Já as combatentes abrem mão de suas individualidades pela luta por liberdade. Pertencimento, presença, força. Reconexão, distanciamento e luta. Há um eterno fluir que reside na tentativa, no devir, que faz com que essas forças, por vezes paradoxais, se combinem nesse ato fundamental de resistência.
No documentário, a realizadora consegue
explorar um universo único e, até então, muito distante daquele retratado pela
mídia. A luta do PKK envolve conflitos simultâneos em diversos países, sendo o
grupo muito solidário com as causas daqueles que também sofrem ataques do ISIS.
Mas não é a ideologia que fundamenta o filme, e sim uma troca amorosa de
palavras e olhares. As mulheres curdas compartem seu bem mais precioso em nome
da humanidade, ensinando que na linha tênue da vida, em meio a um campo de
batalha, há grandes lições de empatia e empoderamento.
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