Em 2010, a e-flux publicou pela Sternberg Press o conjunto de artigos de carácter ensaístico que Boris Groys escreveu desde 2006 até essa data, para a secção e-flux journal. Como introdução a essa publicação, intitulada “Going Public”, Groys propõe uma escrita sobre arte sob uma perspectiva do poético, da sua produção, num movimento contrário à tendência de pensar e escrever sobre ela que a reduz ao seu carácter estético, e ao ponto de vista do espectador. Autor de “Art Power” (2008), “On the New” (2014), e mais recentemente, “In the Flow” (2016), Boris Groys é também professor e investigador na Universidade de Arte e Design de Karlsruhe.
Em “Camaradas do Tempo”, um desses artigos, publicado a Dezembro de 2009 no #11 e-flux journal, o autor debruça-se sobre o tema proposto pelos editores para esse número, e apresenta ao longo de quatro capítulos o que poderíamos chamar de interpretações, ou possíveis definições para a arte contemporânea.
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Groys procura neste primeiro ponto ultrapassar a definição imediata da arte contemporânea como a arte que é produzida “agora”: daí encaminha-nos para a pergunta “O que é o contemporâneo?”, apresentando assim a problemática de como e se a arte pode representar a manifestação, a presença do presente na vida quotidiana. Descrevendo primeiramente o contemporâneo como o imediatamente presente, e o presente como o “aqui-e-agora”, o autor mostra que uma arte capaz de expressar essa presença do presente poderia ser considerada uma arte verdadeiramente contemporânea, na medida em que se propõe como autêntica e incorrupta, nomeadamente da presença de outros tempos que não o presente. Somos novamente redireccionados desta definição para novas perguntas, pela evocação da critica da presença de Derrida, que pressupõe a impossibilidade de tal incorrupção. O presente é então exposto como uma força que canaliza a passagem de um passado para um futuro, ao mesmo tempo que a dificulta, ainda numa perspectiva modernista: o passado é algo a ser ultrapassado a todo o custo e a toda a velocidade, criando um presente onde é necessário abandonar as tradições e as expectativas para chegar a um futuro planeado mas incerto, num processo que começa a destabilizar as utopias e os projectos modernos.
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A dúvida gerada por essa incerteza nas projecções futuras, e mesmo pelo seu abandono, parece inverter o cenário em que o presente era um tempo preferencialmente curto ou inexistente para se afirmar como tempo que se quer quase infinitamente prolongado, reflexo de uma hesitação em transpô-lo, causada pela necessidade de analisar todos os dados antes que se possa tomar qualquer decisão que determine uma realização futura, já com a impressão de que é impossível sequer todos os dados serem conhecidos. A incerteza e indecisão, que tornam inviável a construção de projectos, mas que também tornam impensável o seu abandono, ordenam a sua reconsideração. É aqui que o autor propõe novamente uma definição para a arte contemporânea, desta vez como a arte “envolvida na reconsideração dos projectos modernos”. A questão do desacreditar nas promessas desses projectos futuros apresentam-nos o novo problema do tempo, ora acumulado ora perdido, pois seria essa perda que ditaria as deslocações dos lugares de permanência e infinitude temporal. Colocaria em causa a possibilidade de acumulação de tempo infinito nos objectos e nos lugares, nos produtos artísticos e heterotopias foucaultianas, que deveriam compensar a finitude do tempo presente. Encontramos o problema do tempo investido que se torna tempo perdido aquando da realização do projecto, quando esse mesmo projecto não se finaliza num produto passível de acumular esse tempo, e de o compensar. Compensação substituída pela narrativa histórica que passava a servir esse propósito, até também essa solução se tornar implausível, com a sua impossibilidade de projecção no futuro, e possibilidade de alteração no seu passado. Reajustamos o nosso entendimento do presente, quando o autor o descreve como tendo deixado de ser um “ponto de transição do passado para o futuro, tornando-se o lugar de um re-escrever permanente tanto do passado como do futuro - de proliferações constantes de narrativas históricas para além de qualquer controlo ou alcance individual”. Groys fala da perda das utopias e das heterotopias, da perda da capacidade de um investimento de tempo, um tempo que agora apenas perdemos, que se torna improdutivo e que não leva a nenhum futuro mapeável. Mas, Groys explica ainda, esse tempo gasto/perdido pode também ser visto como tempo excedente, que rompe com os paradigmas politico-económicos dos projectos modernos, e nos permite “ser-no-tempo”.
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Song for Lupita, Francis Alÿs (1998) |
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Em jeito de conclusão, o autor apresenta-nos uma última definição de arte contemporânea enquanto arte produzida num contexto de colaboração com o tempo, declarando o artista contemporâneo um colaborador e camarada do tempo, na sua capacidade de estar com ele e não apenas nele. A arte produzida nesse contexto é necessariamente arte com duração temporal, mas com uma alteração da temporalidade da própria arte, numa quase inversão, em que é agora o tempo que se baseia, ou apoia, nela. Groys aponta-nos ainda mais mudanças, no que toca ao papel do espectador e do produtor de arte: no âmbito do antagonismo modernista vita activa vs vita contemplativa, através da apresentação de “time-based art”, aqui certamente um termo mais abrangente do que apenas se refere à sua duração, num contexto expositivo que garante a participação do espectador, e não apenas o seu estado imóvel como Groys faz na comparação com a sala de cinema. Nesse sentido, a arte pode ser interpretada como a documentação do tempo que de outra forma se perderia, e no sentido da camaradagem que dá título ao artigo. Quando a arte se torna documentação abre-se-lhe uma nova temporalidade, um cessar de “estar" e “ser” presente, e “no” presente, passa a “documentar um presente infinito, repetitivo e indefinido”, um presente expandido de passado e futuro, um presente latente que se descobre. Da massificação do espectador e da contemplação, do cinema, é introduzida a produção artística em massa para se tornar consequentemente uma prática cultural das massas. Coloca-se a questão da sobrevivência do artista contemporâneo numa sociedade em que agora todos podem ser produtores de arte, pois a todos é acessível uma produção de documentação de tempo excedente. Mas, da mesma forma, pela simples abundância dessa documentação, dá-se a impossibilidade da existência do espectador como tal. Com apoio na teoria dos media de McLuhan, Groys demonstra como esta arte contemporânea, no seu formato expositivo, desenvolve uma concorrência entre a vita activa e a contemplativa, na criação da repetição do gesto infinito de olhar, denunciando no espectador-participante uma vita contemplactiva.
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