segunda-feira, 15 de maio de 2023

TRANSBORDA

A Mostra Internacional de Artes Performativas regressou à Margem Sul sob o título TRANSBORDA, numa iniciativa que pretende promover novas perspectivas sobre a dança e possibilitar o contacto direto do público com um vasto número de artistas, coreógrafos e dançarinos de várias nacionalidades em encontros nos espaços públicos da cidade de Almada.

A Mostra reúne artistas que desenvolvem modos próprios de operar com o corpo, que trabalham o conceito de presença, as relações com os outros, e que cujos trabalhos apresentam uma forte inclinação para esse tema do corpo, muito pela preferência pela dança. O grande interesse destes artistas está nas relações entre a fisicalidade dos corpos, a identidade e modos de linguagem não verbais.

 

Francisco Thiago Cavalcanti é dançarino, ator e artista de performance brasileiro, com um bacharelato em dança  mestrado em Educação. Depois de uma longa colaboração com artista Lia Rodrigues, agora autónomo e nómada, Cavalcanti desenvolve projetos autorais através de parcerias. Apresentou e atuou numa primeira peça de sua autoria, Também se matam cavalos, a 6 de maio no auditório do Fórum Municipal Romeu Correia, em conjunto com outros artistas do grupo PACAP (Programa Avançado de Criação em Artes Performativas).

O dançarino descreve a peça como sendo “um exercício sobre a liberdade”, expressão que consta nos boletins informativos sobre a mesma, num sentido romantizado de aceitar a diversidade, segundo a subjetividade do autor. O ideal de poder ser aquilo que se quer ser, de poder escolher sem influência externa, em contraste com a definição de “normalidade” e rejeição da diferença são temas recorrentes – e sempre atuais – presentes nos vários aspetos da peça – temáticos, técnicos e narrativos.

É um trabalho colaborativo, de artistas que colocam essas ideias e questões em confronto, e que surge da aproximação de Cavalcanti com a música e a literatura. A canção Trem de Doido, de Lô Borges retrata a viagem de um comboio que atravessava Minas Gerais para levar os passageiros para o “Manicómio” de Barbacena. O episódio político-social remonta aos inicos do seculo XX, com a criação do Hospital-colónia onde mais de 60.000 pessoas marginalizadas e indiscriminadas perderam a vida ao longo dos 90 anos de funcionamento da instituição. O artista inspirou-se na letra da música e naquilo que imaginava sobre o percurso e na vivencia das pessoas afetadas e cria uma história única derivada de múltiplas fontes que investigam a história de Barbacena.

A peça de dança contemporânea acompanha um grupo de 4 crianças, centra-se na dicotomia do “ser” e do “não ser” em simultâneo, no desdobrar da identidade e nas divergências de perspetivas no reconhecimento de grupos ou comunidades marginalizadas pela sociedade. Os temas são invocados pelos vários sentidos através da música com a instrumentação, da dicotomia na gestualidade dos bailarinos – amplos ou contraídos – e no romper desses mesmos movimentos.



Francisca Pinto, dançarina freelancer portuguesa foi bolseira da Gulbenkian, e conhece Francisco Cavalcanti em 2015, em trabalho para a Companhia de Dança Lia Rodrigues no Rio de Janeiro. Os dois rumam a Portugal, embora por percursos diferentes e reencontram-se para trabalhar numa vertente mais aproximada e conjunta apresentando na noite deste 14 de maio, a peça Quando eu morrer me enterrem na floresta.

A narrativa desta performance surge também do interesse de Cavalcanti pela literatura, desta vez, de um conto de Guimarães Rosa. “Meu tio o Iauaretê” é narrado por uma voz indígena, um homem que sugere ter a habilidade de se transformar num jaguar e que, quando ameaçado pela presença de um forasteiro na floresta onde se reside, realmente sofre essa metamorfose, devorando o invasor.

Num estudo sobre a modulação na música, a peça acompanha de forma semelhante dois performers que se aproximam – entre si e com o público – e em conjunto sofrem mutações. Os temas em foco são a transformação, a relação entre o que é nativo e o que invade, e a modulação dos conceitos de humano e de animal. Pela sua agressividade e pelo desprezo que demostra em relação à natureza, o Homem é posto numa posição de fera. Da mesma forma que se essas realidades se mesclam, é demostrada a “humanidade” dos animais aquando da defesa do seu património, na reivindicação da floresta. Um cenário natural e com padrões também remete para os jaguares e o seu habitat.

A peca tem uma relação de proximidade com espaço onde foi apresentada, na Casa da Dança – onde e para onde foi também criada e ensaiada – pela aproximação desse espaço à natureza que a circunda, rodeado de outros edifícios abandonados dominados agora pela fauna e flora.

As duas performances foram assunto principal na conversa entre o crítico, curador e idealizador brasileiro Ruy Filho com os artistas responsáveis Francisco Cavalcanti e Francisca Pinto, no dia 4 de maio no Ponto de Encontro.

Adriana Grechi é coreógrafa, professora de dança e a diretora artística d'A TRANSBORDA. Em parceria com Amaury Cacciacarro forma o Núcleo de Artes Performativas de Almada – do qual este último é diretor – e mais tarde os dois criam o festival contemporâneo TRANSBORDA, na cidade onde passaram a residir em 2018. Após 13 edições de sucesso do Festival Contemporâneo de São Paulo, o par trouxe a iniciativa para Almada, assumindo a direção artística da Casa da Dança em Cacilhas e dando início à primeira edição da Mostra em 2021. A Casa da Dança foi um projeto iniciado pelo coreógrafo coreografo Paulo Ribeiro, a convite da câmara de Almada em 2019. Ao assumir a direção, Adriana Grechi e  Amaury Cacciacarro propuseram a missão de transformar a iniciativa num centro de investigação internacional ligado à dança.

A vontade do par em organizar a TRANSBORDA vinha de há muito, fortalecida pela forma como os dois trabalham juntos há mais de 20 anos, sempre com o objetivo de dar um perfil de investigação aos eventos organizados, e de se relacionar com a cidade e as suas pessoas. Pretendem, num trabalho a longo prazo e com o carácter internacional da Mostra, chegar a uma “democratização”[1] das artes performativas – reunir pessoas de culturas diversas e com experiências diferentes – e Andreia e Amaury justificam a escolha da cidade de Almada pela presença desse e outros fatores:

·         A presença de pessoas de mais de 170 países no Município, entre as quais pretendem promover o encontro, e criar ferramentas para ativar o encontro entre todos e um “público mais especializado em artes”;

·         O número, a qualidade e a dimensão dos espaços que a cidade possui, entre os quais os artistas realçam a Academia Almadense, o Centro da Juventude, o Fórum Romeu Correia,  o Teatro Azul e o Teatro Extremo.



Em entrevista, questionados sobre o seu núcleo fora de Lisboa, apesar de tão perto, os artistas revelam acreditar que esse facto torna a Mostra “mais interessante” e que se vai de encontro à definição que dão ao conceito de “transbordar”, numa lógica de sair das fronteiras, transpor áreas artísticas, ultrapassar as bordas entre elas e entre culturas, e romper com a linha entre artistas e espetadores. Num modelo de repetição, os mesmos artistas são convidados a várias edições para que o público se vá relacionando com os mesmos aos poucos, conhecendo-os e à sua obra e pesquisa, aprofundando a sua conexão.

Esta terceira edição d’A TRANSBORDA contou com uma programação extensa de performances e espetáculos a conversas e workshops, que têm vindo a acontecer desde a data simbólica de  29 de abril – Dia Mundial da Dança – e teve o seu encerramento neste domingo, dia 14 de maio. O programa completo pode ser consultado em https://www.transborda.org/programa.

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[1] Adriana Grechi em entrevista ao JN. Naves. P. (2023, 28 de abril) Transborda: a partilha das artes performativas está de volta a Almada. Jornal de Notícias. https://www.jn.pt/artes/transborda-a-partilha-das-artes-performativas-esta-de-volta-a-almada-16262420.html

Devido à proibição de fotografar durante os eventos, são apresentadas fotografias da autora na visita aos espaços durante os dias da Mostra.

Figura 1. Fórum Municipal Romeu Correia. Praça da Liberdade, Almada.

Figura 2. Teatro "Azul" Joaquim Benite. Avenida Professor Egas Moniz, Almada. 

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