A Mostra Internacional de Artes Performativas regressou à Margem Sul sob o título TRANSBORDA, numa iniciativa que pretende promover novas perspectivas sobre a dança e possibilitar o contacto direto do público com um vasto número de artistas, coreógrafos e dançarinos de várias nacionalidades em encontros nos espaços públicos da cidade de Almada.
A Mostra reúne artistas que
desenvolvem modos próprios de operar com o corpo, que trabalham o conceito de
presença, as relações com os outros, e que cujos trabalhos apresentam uma forte
inclinação para esse tema do corpo, muito pela preferência pela dança. O grande
interesse destes artistas está nas relações entre a fisicalidade dos corpos, a
identidade e modos de linguagem não verbais.
Francisco Thiago Cavalcanti é
dançarino, ator e artista de performance brasileiro, com um bacharelato em
dança mestrado em Educação. Depois de
uma longa colaboração com artista Lia Rodrigues, agora autónomo e nómada,
Cavalcanti desenvolve projetos autorais através de parcerias. Apresentou e
atuou numa primeira peça de sua autoria, Também se matam cavalos, a 6 de
maio no auditório do Fórum Municipal Romeu Correia, em conjunto com outros
artistas do grupo PACAP (Programa Avançado de Criação em Artes Performativas).
O dançarino descreve a peça como
sendo “um exercício sobre a liberdade”, expressão que consta nos boletins
informativos sobre a mesma, num sentido romantizado de aceitar a diversidade,
segundo a subjetividade do autor. O ideal de poder ser aquilo que se quer ser, de
poder escolher sem influência externa, em contraste com a definição de
“normalidade” e rejeição da diferença são temas recorrentes – e sempre atuais –
presentes nos vários aspetos da peça – temáticos, técnicos e narrativos.
É um trabalho colaborativo, de
artistas que colocam essas ideias e questões em confronto, e que surge da
aproximação de Cavalcanti com a música e a literatura. A canção Trem de Doido,
de Lô Borges retrata a viagem de um comboio que atravessava Minas Gerais para
levar os passageiros para o “Manicómio” de Barbacena. O episódio
político-social remonta aos inicos do seculo XX, com a criação do
Hospital-colónia onde mais de 60.000 pessoas marginalizadas e indiscriminadas
perderam a vida ao longo dos 90 anos de funcionamento da instituição. O artista
inspirou-se na letra da música e naquilo que imaginava sobre o percurso e na
vivencia das pessoas afetadas e cria uma história única derivada de múltiplas
fontes que investigam a história de Barbacena.
A peça de dança contemporânea acompanha um grupo de 4 crianças, centra-se na dicotomia do “ser” e do “não ser” em simultâneo, no desdobrar da identidade e nas divergências de perspetivas no reconhecimento de grupos ou comunidades marginalizadas pela sociedade. Os temas são invocados pelos vários sentidos através da música com a instrumentação, da dicotomia na gestualidade dos bailarinos – amplos ou contraídos – e no romper desses mesmos movimentos.
Francisca Pinto, dançarina freelancer
portuguesa foi bolseira da Gulbenkian, e conhece Francisco Cavalcanti em 2015,
em trabalho para a Companhia de Dança Lia Rodrigues no Rio de Janeiro. Os dois
rumam a Portugal, embora por percursos diferentes e reencontram-se para
trabalhar numa vertente mais aproximada e conjunta apresentando na noite deste
14 de maio, a peça Quando eu morrer me enterrem na floresta.
A narrativa desta performance
surge também do interesse de Cavalcanti pela literatura, desta vez, de um conto
de Guimarães Rosa. “Meu tio o Iauaretê” é narrado por uma voz indígena, um
homem que sugere ter a habilidade de se transformar num jaguar e que, quando
ameaçado pela presença de um forasteiro na floresta onde se reside, realmente sofre
essa metamorfose, devorando o invasor.
Num estudo sobre a modulação na
música, a peça acompanha de forma semelhante dois performers que se aproximam –
entre si e com o público – e em conjunto sofrem mutações. Os temas em foco são
a transformação, a relação entre o que é nativo e o que invade, e a modulação
dos conceitos de humano e de animal. Pela sua agressividade e pelo desprezo que
demostra em relação à natureza, o Homem é posto numa posição de fera. Da mesma forma
que se essas realidades se mesclam, é demostrada a “humanidade” dos animais
aquando da defesa do seu património, na reivindicação da floresta. Um cenário
natural e com padrões também remete para os jaguares e o seu habitat.
A peca tem uma relação de proximidade
com espaço onde foi apresentada, na Casa da Dança – onde e para onde foi também
criada e ensaiada – pela aproximação desse espaço à natureza que a circunda,
rodeado de outros edifícios abandonados dominados agora pela fauna e flora.
As duas performances foram assunto principal na conversa entre o crítico, curador e idealizador brasileiro Ruy Filho com os artistas responsáveis Francisco Cavalcanti e Francisca Pinto, no dia 4 de maio no Ponto de Encontro.
Adriana Grechi é coreógrafa,
professora de dança e a diretora artística d'A TRANSBORDA. Em parceria com Amaury
Cacciacarro forma o Núcleo de Artes Performativas de Almada – do qual este
último é diretor – e mais tarde os dois criam o festival contemporâneo
TRANSBORDA, na cidade onde passaram a residir em 2018. Após 13 edições de
sucesso do Festival Contemporâneo de São Paulo, o par trouxe a iniciativa para
Almada, assumindo a direção artística da Casa da Dança em Cacilhas e dando
início à primeira edição da Mostra em 2021. A Casa da Dança foi um projeto
iniciado pelo coreógrafo coreografo Paulo Ribeiro, a convite da câmara de
Almada em 2019. Ao assumir a direção, Adriana Grechi e Amaury Cacciacarro propuseram a missão de
transformar a iniciativa num centro de investigação internacional ligado à
dança.
A vontade do par em organizar a TRANSBORDA vinha de há muito, fortalecida pela forma como os dois trabalham juntos há mais de 20 anos, sempre com o objetivo de dar um perfil de investigação aos eventos organizados, e de se relacionar com a cidade e as suas pessoas. Pretendem, num trabalho a longo prazo e com o carácter internacional da Mostra, chegar a uma “democratização”[1] das artes performativas – reunir pessoas de culturas diversas e com experiências diferentes – e Andreia e Amaury justificam a escolha da cidade de Almada pela presença desse e outros fatores:
·
A
presença de pessoas de mais de 170 países no Município, entre as quais
pretendem promover o encontro, e criar ferramentas para ativar o encontro entre
todos e um “público mais especializado em artes”;
·
O
número, a qualidade e a dimensão dos espaços que a cidade possui, entre os
quais os artistas realçam a Academia Almadense, o Centro da Juventude, o Fórum
Romeu Correia, o Teatro Azul e o Teatro
Extremo.
Em entrevista, questionados sobre
o seu núcleo fora de Lisboa, apesar de tão perto, os artistas revelam acreditar
que esse facto torna a Mostra “mais interessante” e que se vai de encontro à
definição que dão ao conceito de “transbordar”, numa lógica de sair das
fronteiras, transpor áreas artísticas, ultrapassar as bordas entre elas e entre
culturas, e romper com a linha entre artistas e espetadores. Num modelo de
repetição, os mesmos artistas são convidados a várias edições para que o
público se vá relacionando com os mesmos aos poucos, conhecendo-os e à sua obra
e pesquisa, aprofundando a sua conexão.
Esta terceira edição d’A
TRANSBORDA contou com uma programação extensa de performances e espetáculos a
conversas e workshops, que têm vindo a acontecer desde a data simbólica de 29 de abril – Dia Mundial da Dança – e teve o
seu encerramento neste domingo, dia 14 de maio. O programa completo pode ser
consultado em https://www.transborda.org/programa.
____
[1] Adriana Grechi em entrevista ao
JN. Naves. P. (2023, 28 de abril) Transborda: a partilha das artes
performativas está de volta a Almada. Jornal de Notícias. https://www.jn.pt/artes/transborda-a-partilha-das-artes-performativas-esta-de-volta-a-almada-16262420.html
Devido à proibição de fotografar durante os eventos, são apresentadas fotografias da autora na visita aos espaços durante os dias da Mostra.
Figura 1. Fórum Municipal Romeu Correia. Praça da Liberdade, Almada.
Figura 2. Teatro "Azul" Joaquim Benite. Avenida Professor Egas Moniz, Almada.
Sem comentários:
Enviar um comentário