“Vejam bem, que não há só gaivotas em terra,
Quando um Homem se põem a pensar…”
José Afonso
A obra que pretendo analisar encontra-se dividida em 2 momentos. Inicialmente temos o o filme do realizador luso-moçambicano José Cardoso (Beira, 1930 - 2013) “O Anúncio”. Realizado em 1966 na Beira, Moçambique, é o primeiro filme de ficção do realizador, em formato de curta-metragem. O filme retrata um dia na vida do protagonista (interpretado pelo próprio José Cardoso) onde o mesmo, vivendo numa situação precária, procura trabalho em vão, nos anúncios do jornal local ou nas obras da cidade. Eventualmente a personagem é levada para para um evento carnavalesco, onde rouba dois ovos cozidos para comer. Acaba adormecendo no local, sendo mais tarde acordado por uma tempestade e regressa de novo para a rua.
O segundo momento da obra é o tema musical que a acompanha, “Vejam Bem” de José Afonso (Aveiro, 1929 - 1987). O tema musical embora tenha sido escrito para o contexto do filme, não estava incluído na primeira versão, tendo sido adotado em 1968, ano em que a música foi escrita. O tema pertence ao álbum Cantares de Andarilho (1968), tendo lugar na faixa número onze do mesmo.
A divisão desta analise é proposta pelo facto de ambas as obras viveram, independentes e dependes uma da outra. O filme, feito dois anos mais cedo foi feito sem a existência da obra musical de José Afonso. A música existindo como colaboração entre os dois artistas, possui uma vida muito além do filme. Sendo até, a participação da música nesta curta-metragem, pouco conhecida por muitos.
Pretende-se assim inicialmente, rever os dois momentos (filme e tema musical) num contexto separado fazendo uma breve análise de cada, terminando a mesma com uma interpretação da obra num todo. Esta recensão tem como objectivo apresentar a força visual da música e letra de José Afonso, representada também ela no filme. O desafio de observação social que tanto a música como o filme nos impõem.
Difícil começar a análise do filme sem logo referenciar as semelhanças do mesmo com o movimento cinematográfico italiano neo-realista. A representação social, representação do cotidiano, a falta de conclusão, sem final (feliz ou mau) na expressão máxima do neo-realismo italiano, leva-me com rapidez ao “O ladrão de bicicletas” (1948) de Vittorio De Sica. Um trabalhador que vive (ou mesmo sobrevive) de uma bicicleta para trabalhar, a mesma que lhe é roubada e o mesmo encontra-se numa aventura (sem solução) para reaver um objecto que define a sua possibilidade de sobreviver. Em “O Anúncio”, José Cardoso encontra-se já em numa situação de desemprego, num desespero e desconforto social, sentido por muitos cidadãos moçambicanos numa altura de opressão política que o realizador tenta representar. O cariz social é directo, um cidadão que representa a luta de muitos outros. Uma imagem filmada a preto e branco num tom mexido e algo caótico que se identifica com o sentimento e ambiente sentidos e desejados pelo realizador.” (Vieira, 2022).
Como muitas outras obras de José Afonso as nuances aos problemas sociais vividos em Portugal são constantes. São feitas referencias à PIDE e a acções de clandestinidade. A “estátua” referida no texto desta música, é um dos exemplos destas subtis referencias impostas pelo autor, que sugere a tortura usada pela PIDE sobre os prisioneiros políticos, ou os “caminhos de pão”, indicando aqui os desejos de distribuição igual de bens. As “gaivotas em terra” expressão comum usada para se referir à chegada de uma tempestade, José Afonso, com bastante clareza, desafia o ouvinte a perceber que o acção do pensamento é o primeiro passo para uma mudança social, a emancipação do povo, pensador e crítico, que observa e reflecte sobre o que vê. Esta música, que se torna uma das mais emblemáticas do autor, marca uma das épocas mais políticas e interventivas de José Afonso.
O início do filme tem um carácter quase ilustrativo da música. Vendo que o filme se antecede ao tema percebe-se que José Afonso tira parte da sua inspiração da curta-metragem. Sendo um referente aos problemas sociais da época em Moçambique (“O Anúncio”, José Cardoso) e o outro de Portugal (“Vejam Bem”, José Afonso) as posições de cada artista eram próximas principalmente no que tocava à guerra colonial e à interferência de Portugal nas colónias africanas. “ (…) a transformação política do regime encontra fortes resistências à sua concretização, nomeadamente em relação à guerra colonial e à acção da polícia política (PIDE).” (Simões, 2017)
Termina o filme, num final digno do neo-realismo italiano, com um andar, um futuro incerto deixando o espectador na incerteza sobre o resto da vida do protagonista, mas sobre este final incerto, regressa José Afonso desafiando novamente o espectador/ouvinte a “ver” não o filme mas o que há para lá do mesmo. As problemáticas sociais da época, do contemporâneo que ainda hoje se pode assistir e ouvir na actualidade da sua voz.
Lista de referencias bibliográficas:
- Associação José Afonso. (2009). José Afonso em Moçambique (1964 -1967), por José Cardoso e Álvaro Simões. Associação José Afonso. Consultado a —- ———-, 2023, de https://aja.pt/jose-afonso-em-mocambique-1964-1967-por-jose-cardoso-e-alvaro-simoes/
- Associação José Afonso. (2019). Vejam Bem. Associação José Afonso. Consultado a —- ——-, 2023, de https://aja.pt/vejam-bem/
- Simões, D. (2017).“E o mar é tão grande”: Utopia e liberdade nas cantigas de José Afonso. AH! Artes e Humanidades. Mural Sonoro. Consultado a ——- ———-, 2023, de https://www.muralsonoro.com/mural-sonoro-pt/2017/3/2/86jcozih165btcoeveavhxyenkgibr
- Vieira, S. (2022). Para Bom Entendedor Meia Palavra Basta: Conversa com José Cardoso. U. Minho Editora.
Obras Artísticas:
- Afonso, J. (1968). Vejam Bem (Música). Cantares de Andarilho. Orfeu
- Cardoso, J. (Realizador). (1966). O Anúncio (Filme). Beira-64
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