Em dezembro de 2016 passam 520 anos desde que D. Manuel I
ordenou a expulsão dos judeus de Portugal.
Seguindo o exemplo dos reis católicos
espanhóis, D. Isabel e D. Fernando, o rei português decretou a expulsão do país
de todos os judeus que recusassem a conversão ao catolicismo através do batismo,
rompendo, assim, com uma longa tradição de tolerância cultural e religiosa. D.
Manuel cedia, desta forma, a uma condição imposta por Espanha, para que pudesse
casar com a viúva de seu primo Afonso, D. Isabel, e milhares de judeus tiveram
de optar entre a expulsão e a conversão.
Aquando da expulsão dos judeus de Espanha, em 1492,
Abrãao Zacuto, astrónomo, matemático e historiador de origem judaica,
refugiou-se em Lisboa, tendo sido nomeado astrónomo e historiador real por D.
João II, cargos que exerceu até ao reinado de D. Manuel I. Zacuto foi consultado por este monarca acerca
da possibilidade de se viajar por mar até à Índia, projeto que apoiou e
encorajou.
Primeira página das tabelas do Almanach
Perpetuum de Abraão Zacuto
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Nos finais do século XV, entre os primeiros quatro livros
impressos em Portugal, surge o primeiro livro de cariz totalmente científico,
referente não a temas literários ou religiosos mas à matemática e à astronomia,
o Almanach Perpetuum, da autoria de Abraão Zacuto, publicado
originalmente em hebraico e traduzido para latim e para castelhano pelo Mestre
José Vizinho, médico da corte de D. João II, astrónomo e discípulo do autor.
Do
ponto de vista técnico, a tipografia dos judeus portugueses era uma das mais
avançadas da época: as suas edições eram cuidadas, impressas em bom papel ou
pergaminho, sobriamente decoradas e com tintagem bem distribuída. A composição
era feita com caracteres de excelente recorte, do género sefardita (comum às
edições portuguesas e espanholas), diferente do utilizado noutros países
europeus, designadamente na Itália e na Alemanha.
O Almanach
Perpetuum é o primeiro livro
com origem na comunidade judaica mas destinado a um público mais vasto e não
apenas ao público da religião judaica, uma vez que foi impresso em latim, a
língua franca da Europa de então.
O facto
de ter sido impresso em 1496, pouco tempo após a introdução da técnica de
impressão em Portugal, mostra a importância da divulgação da informação que
consta nesta obra.
O Almanach Perpetuum reproduz o movimento dos
astros por referência a coordenadas astronómicas. Prevê os momentos e
coordenadas de acontecimentos celestes, as chamadas efemérides. As suas tabelas
numéricas permitiam determinar a posição dos astros, o momento dos eclipses e
fazer diversos cálculos astronómicos e astrológicos.
Com as primeiras quatro tabelas solares do Almanach
era possivel determinar com rigor a posição do Sol na eclíptica. Com este
valor, recorrendo a uma quinta tabela, era possível obter o valor da declinação
do Sol, parâmetro necessário para o cálculo da latitude do lugar de observação,
quando utilizada a medida da altura meridiana desse astro.
As tabelas eram válidas para os anos de 1473 a 1476. Para
os anos seguintes era necessário fazer cálculos, através de uma outra tabela
que Zacuto integrou na obra. O grau de precisão era tal que elas foram
utilizadas como base de diversas outras tabelas destinadas aos navegantes, onde
se indicavam os resultados dos cálculos requeridos pelas tabelas de Zacuto.
Estas tabelas foram essenciais para o bom sucesso das
navegações ultramarinas portuguesas.
O desenvolvimento da arte de navegar e, consequentemente,
os Descobrimentos, que muitos apontam como o início da globalização, jamais
teriam sido possíveis sem o contributo técnico, científico e cultural de árabes
e judeus.
Num ano como o de 2016, marcado
pela intolerância cultural e religiosa, patente na crise dos refugiados, no terrorismo e no ressurgimento
de ideologias nacionalistas e de extrema direita, sobretudo na Europa, é importante recordar o
exemplo da obra de Abraão Zacuto e do seu impacto civilizacional e histórico.
Sem tolerância e abertura de espírito esta obra jamais teria sido publicada.
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