terça-feira, 11 de novembro de 2025

A quiet invite to live: "Perfect Days", film by Wim Wenders

 A quiet invite to live: 

“Perfect Days”, film by Wim Wenders (2023)


“Next time is next time. Now is now.”


Hoje debruço-me sobre a narrativa de Wim Wenders, que  não é uma fórmula de como devemos viver, mas convida-nos a respirar fundo através da vida de Hirayama, um homem que vive a vida na sua forma mais simples, na sua rotina e nos seus hábitos, no entanto descobrimos ser muito especial. 


PERFECT DAYS - Official Trailer


O filme retrata duas semanas na vida de Hirayama, um higienizador de casas de banho públicas em Tokyo, um trabalho muito “invisível”, mas que exerce de forma exímia, como se fosse a sua obra de arte, e logo de caras deixa-nos a pergunta: Como é que podemos ter dias perfeitos quando o trabalho é limpar sanitas? Wenders explica-nos ao longo de duas horas: Ao apreciar tudo. Reparar e apreciar como o sol incide diretamente nas folhas dançantes das árvores e nas sombras que produzem e que se transformam,  ter prazer no trabalho que fazemos todos os dias, independentemente do que seja (numa das cenas, Hirayama usa um pequeno espelho para limpar a sanita em todas as zonas onde o olhar não chega) , e ao  aceitar aquilo que a vida nos dá: um dia, o teu colega de trabalho, está doente e trabalhas por dois, no outro, a tua sobrinha faz-te uma visita inesperada.


Também podemos deixar de parte o enredo principal e olhar aos detalhes: as cassetes de clássicos, o rádio, a modesta coleção de livros,  o simples candeeiro de secretária no chão, a almofada de trigo sarraceno, as moedas deixadas ao lado do relógio. Estes simples detalhes rotineiros mostram-nos a felicidade na simplicidade,  numa vida mais analógica. Mais do que uma história profunda, há um desejo da minha parte de passar horas a olhar para cada frame e ficar a  admira-lo, o sentimento inerente de beleza e calma invade-nos pelo ecrã e faz-me querer levá-las comigo para o meu dia.


 


Hirayama, interpretado por Kôji Yakusho, é um homem de espírito claro, grato àquilo que a vida lhe oferece e procura a beleza nessas pequenas rotinas e ações cotidianas. Vive a vida em repetições, quase que ritualísticas, mas bastante simples: acordar antes do nascer do sol, dobrar o futon, ir para tokyo no seu carro com uma cassete dos anos 70, no trabalho segue os mesmo passos todos os dias, ao chegar a casa, vai de bicicleta até aos banhos públicos, jantar num restaurante de rua local, ao chegar a casa, dedica-se à leitura. E assim repete todos os dias, a sua prática diária bem estruturada, da qual nutre imenso respeito.

Tudo é estética, a beleza na simplicidade da vida, como mencionei anteriormente, no entanto, o conceito de beleza é em si algo complexo, não é só a cinematografia e o visual que carrega esse peso, o nosso emocional procura muito mais do que nos leva a querer. Aqui podemos ver como Hirayama procurava a beleza nesses pequenos gestos, especialmente na natureza que o rodeia e nos atos mais mundanos. 



Isto faz-me repensar na forma como encaramos o ambiente em que existimos e no quão desligados estamos daquilo que já existe, enquanto tentamos procurar outras formas de alcançar a beleza, ou até mesmo a perfeição. Podemos ver isto como uma crítica à vida citadina na cidade de Tokyo, em como as pessoas vivem nela e como a habitam. No entanto acho que podemos inserir esta mesma  realidade também no nosso quotidiano citadino. Como não só os nossos comportamentos cada vez mais individualizados nos distanciam do espaço em que habitamos, mas também os próprios espaços são cada vez mais construídos e programados para serem externos e distintos a nós, em vez de serem uma extensão das pessoas, algo familiar e que desperte em nós uma sensação de realidade.


No filme, existe uma constante abstinência de qualquer objeto relacionado com a “cidade digital”, objetos como um telemóvel ou um algoritmo, um metropolitano que teletransporta as pessoas a altas velocidades por pequenas segmentações da cidade (isto mais na realidade da cidade de Tokyo do que na nossa), são tudo tecnologias que contribuiram para a digitalização da experiência urbana.

Tento com isto evidenciar a falta de sentido de continuidade, que muitas vezes nos passa despercebido de tão intrínseco que está no nosso dia a dia. Os dias passam a ser divididos em casa- trabalho; Humano e natureza; eu e tu; online e presente; entretido ou aborrecido, existe uma polarização da nossa própria existência com o nosso meio, e é engraçado porque muitas vezes falamos da cidade como um tecido urbano, o tecido é contínuo e esse tecido é interrompido quando temos estruturas que não têm em atenção a “alma da cidade”, que é feita por nós, cidadãos que a habitam.


Komorebi

Existe uma palavra chave relacionada com o filme (surgem até rumores de que este pudesse ter sido o nome do filme) KOMOREBI (木漏れ日). Esta palavra japonesa descreve um conceito que já mencionei ser retratado no filme: a luz solar que passa pelas folhas que balançam com o  soprar do vento e as sombras que elas criam no chão. Mais do que a definição de um efeito visual, é também um significado de momento único, que nos convida à contemplação, a capacidade de encontrar beleza no mundo que nos rodeia. Um conceito que reconhece tanto a luz como a sombra, como uma forma de mostrar os pequenos raios de luz em momentos que nos parecem cobertos de escuridão. No mundo atual, este conceito está adormecido, mas durante todo o enredo, vemos Hirayama colecionar diversos momentos destes na sua câmara analógica, durante as suas pausas de almoço junto ao jardim público mais próximo ou ao entardecer através da janela da sua casa de bairro.


O filme convida-nos a olhar à continuidade, que se estende do nosso meio para nós mesmos, nos lugares mais íntimos da nossa mente, e que dentro de tudo aquilo que nos mantêm completos, está também a nossa própria prática de habitar com o meio, e com escolhemos habitar cidade.


Durante o desenrolar do filme descobrimos através da interação com a sua sobrinha, um pouco do seu passado e do seu afastamento familiar, e com o pouco que Hirayama nos diz, presumimos que a sua família e não concorda com as suas escolhas de vida, a forma como vive (de forma mais frugal). Assim podemos ver que apesar de ter esta forma de encarar a vida, percebemos que é também uma parte vulnerável, e que também a si lhe surgem obstáculos que nos fazem pensar quando poderá vir a quebrar o controlo da vida que criou para si, no entanto é a forma como lida com os acontecimentos de maior tensão que lhe traz balanço. Não é sobre a ação que é tomada, é sobre aceitar o que está a acontecer como parte da experiência de viver.



Termino por acrescentar que com esta pesquisa vim a descobrir, que este filme foi projetado para ser um documentário em conjunto com a câmara municipal de Shibuya sobre as casas de banho públicas da cidade, de modo a promover um novo lado de um espaço normalmente associado a algo sujo e desagradável. Como uma forma de repensar e refletir sobre um mínimo detalhe que é tornar a cidade mais habitável e tornar esta narrativa numa forma de ver e viver. Questiono-me porque levamos a vida a correr, porque nunca estamos satisfeitos, porque competimos para ser melhores? E acima de tudo, porque normalizamos isto como uma forma diária de viver? É por isso que considero este filme como um marco na minha vida, um dos melhores filmes que já vi e que levo comigo sempre, porque me faz questionar a minha existência, não em forma de “crise existencial”, mas porque me abre uma janela para mim própria sempre que penso nele. O poder emocional que carrega não nasce de grandes acontecimentos e reviravoltas dramáticas, mas de uma série de pequenos, quase invisíveis convites para redescobrir e admirar uma forma  silenciosa de existir.



Referências que considero essenciais (e que valem a pena cada segundo):


Deixo aqui o link do website criado para o filme. Para quem gostaria de poder imergir um pouco neste contexto da vida de Hirayama. Uma recriação daquilo que seriam 365 dias na vida deste personagem num “scrolling book with sound”. Uma verdadeira atmosfera poética sobre aqueles que são os valores principais que o filme pretende captar. Um design que nos leva a aprofundar este universo. Também dentro do website podemos ter acesso a material expandido, como é o exemplo dos diários escritos que nos fazem querer que isto não seja apenas mais uma narrativa cinematográfica, mas sim um pequenas partes de um universo muito mais amplo.


Em auxílio ao texto deixo também alguns links: Um vídeo muito interessante, onde o diretor Wim Wenders fala sobre a sua inspiração para Hirayama, um personagem visto quase como um monge.