Foi com grande interesse que na última aula ouvi o professor João Queiróz abordar o filme 8 1/2 do Fellini, ao aproveitar a famosa expressão, aparentemente enigmática ou non sense, "Asa Nisi Masa", para nos fazer um pedido especial, a propósito dos nossos trabalhos sobre o Livro de Artista. "Peço-vos a vossa a-ni-ma, a vossa alma!", disse-nos, aludindo simultaneamente ao carácter leve e puro da mesma.
Este pedido insólito, mas intenso, persistiu na minha mente para além dos limites temporais da aula, e tem-me levado ao questionamento recorrente sobre como "amplificar e simplificar" este exercício que me tenho vindo a propor realizar - o de transpor um documento sonoro para o formato livro (de artista). Como ser "fulgurante" através de um objeto? Como pôr o máximo de intensidade no mínimo de elementos? Como expressar o todo pela parte? Como elaborar uma síntese e deixar o acessório de fora? E como fazê-lo de forma leve, mas com grande entrega e alma? Por outras palavras, como transcender a minha psyche, como diria o Yung? Ou ainda, como conciliar o mundo material/científico com o mundo imaterial/sagrado a partir deste trabalho?
Alma leva-me ao conceito de aura, que Walter Benjamim desenvolve não só no seu famoso e muito citado texto "A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica", como também no seu ensaio "Pequena História da Fotografia", de 1931. Aura, para este autor, é "uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja." Originalidade, autenticidade e unicidade são princípios a que deve responder uma obra de arte e que estão englobados pelo conceito de Aura, através do seu estatuto "aqui e agora" (hic et nunc). A aura de uma obra de arte estaria também relacionada com seu carácter sagrado, ao ter um valor de culto. De facto, dois dos aspectos fundamentais de um livro de artista são a sua unicidade por um lado, ou seja, o objeto original é o autêntico e único, não se prevendo à partida a sua reprodução em múltiplos, e a sua alma por outro, ou seja, a sua capacidade de conter algo de transcendental e místico, de intangível. São estes dois aspectos que podem fazer elevar o livro de artista à categoria de obra de arte e de estar mais próximo da possibilidade de ter uma aura.
Augustine Berque, no seu livro "Thinking through Landscape", especula que no Ocidente a separação entre o mundo físico e o mundo mitológico começa a dar-se já na Escola de Mileto, na Grécia clássica, tendo esta cisão sido intensificada pela Revolução Científica e pelo Iluminismo, no séc XVII, altura em que se instituiu o classic modern western paradigm:
"With the Milesian school (Thales, Anaximander, Anaximenes. . .) in the sixth century bc, for the first time in the history of the world, Ionian thought separated natural phenomena from mythology and began to think phusis, in the sense of what gradually gives rise to the “science of nature”: physics. The separation from myth is decisive. Without it, the modern scientific revolution would not have occurred. As Asano Yuichi has shown, it is precisely because the separation remained incomplete in China, where a kind of “nature” thought appeared at the same time as in Ionia, that modern physics could not emerge there. Both the Dao and the Tian retained some divine characteristic, derived from their religious origins, which is the reason why they were never separated from the moral and political realm. Neither Heaven (Tian), nor the “from itself thus” (ziran) belonging to the Way (Dao) became “nature” in the sense of modern physics. This neutral object, established in Europe in the seventeenth century as the classic modern western paradigm (henceforth CMWP), was elaborated by Bacon, Galileo, Descartes, Newton, and several others after the Copernican revolution."
Esta divisão radical entre o "mundo natural" e o "mundo mitológico" em duas partes totalmente irreconciliáveis - o material/científico e o sagrado/espiritual, e que vivemos ainda mais intensamente na contemporaneidade, remete-me para a necessidade de enraizamento como possível movimento de resistência. Suscita-me ideias sobre a noção de permanência, de integração e de envolvimento.
Arnold Berleant, no seu texto "The Aesthetics of Art and Nature", propõe a meu ver uma solução para este problema da separação de mundos, quando põe em causa a estrutura convencional da estética clássica, contrariando até a fundamentação que lhe foi dada por Kant: a estética da visualidade contemporânea deve ser substituída pela estética da envolvência, ou seja, recusa a separação entre sujeito e objeto e defende a tese de que o homem como ser total habita a natureza que o envolve, transforma-a e é transformado por ela. Da continuidade entre o humano e o natural decorre a necessidade de uma estética do comprometimento (engagment), uma continuidade ontológica de imersão, integração e responsabilidade.
Em suma, para este projeto do livro de artista, é meu desejo torná-lo simultaneamente um objeto depurado mas intenso, sistematizado mas intuitivo, racional mas sensível. É este o meu compromisso e desafio. Ambiciono também, tal como o próprio podcast Árvores sem Raízes (de Eduardo Costa Pinto), contribuir para enraizar um pouco mais o homem sem raízes contemporâneo tanto no espaço que habita como na comunidade que o acolhe, integrando todas as suas diferentes dimensões (e da sua paisagem): racionais e emocionais, materiais e espirituais.
Bibliografia:
BENJAMIN, Walter, "A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica - 3ª versão" in "A Modernidade", Assírio & Alvim, 2017
BERQUE, Augustine, "Thinking Through Landscape", (3ª edição), Routledge, 2013
SERRÃO, Adriana Veríssimo (coord.), "Arnold Berleant", in: "Filosofia da Paisagem, Uma Antologia", Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011
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