terça-feira, 19 de outubro de 2021

Livro de Artista e os Campos da Margem e do Prefácio

    A diversidade dos livros de artista é do que mais fascinante existe. O livro de artista de Ana Torrie (1982) – "Silvestre", incluído na coleção de Livros de Artista da Biblioteca de Arte da Gulbenkian ficou na minha memória por ser uma peça tão simples e bela. O seu formato retangular, vertical e comprido é absolutamente extasiante de se olhar. É constituído por um tríptico, seis partituras e uma brochura. A inserção do tríptico fez-me, automaticamente, pensar no Renascimento, que sendo a época das luzes, parece contraste para um livro, predominantemente, escuro e expressionista; ainda que consonante com as partituras. Procurar por livros de artista foi o primeiro passo para ter uma noção visual do que pode vir a ser um objeto deste cariz.



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    Lendo alguns excertos de Paulo Silveira, em “A página violada: Da ternura à injúria na construção do livro de artista”, aferi brevemente o significado de livro de artista como “um campo de atuação artística...” e “um resultado específico das artes visuais”. O autor aponta duas dimensões no livro de artista. A materialidade, ou plasticidade, da página no que toca a expressar, enaltecer, evidenciar ou apreciar as suas conformações sagradas; e, a dimensão da violação dos cânones do livro, reformando, transformando ou desconstruindo-o. Estamos, por isso, perante uma dicotomia: a de reforçar versus romper. A partir de um destes exercícios, o artista passa a ser capaz de se envolver na construção do livro enquanto obra de arte.

    Daisy Turrer, por sua vez, apresenta um estudo chamado “O livro de artista e o paratexto” (inserido em Pós: Belo Horizonte, v.2, n.3, p.73-81, maio. 2012.) – que tem por objeto o livro de artista enquanto elemento de subversão do espaço codificado do livro. Com enquadramento na dimensão de rompimento, Daisy reflete sobre o “domínio da margem” e, inspirando-se noutros autores, sobre a função do prefácio. 

    Ao evidenciar a relação hierárquica entre texto e o extratexto, tudo o que a palavra não diz, mas mostra é o domínio da margem. Já o prefácio é considerado ter uma função enganadora – é um texto colocado no início do livro, um pré-texto, mas que o autor escreve após concluir o livro. Há várias perspetivas sobre o que constitui o prefácio – o fim da escrita, o fim do autor no livro ou o término do livro – em todas, é aceite a ideia de que começamos a leitura pelo fim da escrita: “ é um discurso colocado antes de outro discurso, mas escrito após,  que a ele se refere. O prefácio é, cronologicamente, sempre posfácio (MUZZI, 2008, inédito)” (T., Daisy. 2012). – A condição geográfica do prefácio é, por isto, paradoxal. E é um paradoxo interessantíssimo enquanto objeto de estudo. Levou-me, inclusive, a pensar, como seria uma obra de prefácios - um prefácio, sobre o prefácio, sobre o prefácio, do prefácio... e por aí, até a paciência de escrever prefácios se esgotar. Teria esta obra um objeto original, para começar? Seria ele uma reflexão sobre prefácios, ou um tema livre? Pode ser um desafio supérfluo, ou muito interessante, para pôr em prática um dia. 

    Daisy Turrer conseguiu realmente captar a minha atenção. Toda a relação entre escrita e livro é incrivelmente interessante e complexa. Pensar que o livro impõe os seus limites materiais à escrita, é como uma disrupção num pensamento clássico de que a escrita é livre. E, talvez o seja, conceptualmente. Mas num livro padrão, não o poderá ser formalmente... A não ser que perca essa condição de livro editorial, passando a ser tratado enquanto obra de arte, um objeto dependente da visão e vontade do seu autor. Compreendo agora a importância do desafio do livro de artista, principalmente para alguém que quer aprender Tipografia e Edição. Transcender a dimensão do óbvio e da técnica, fará do ser humano um ser criativo e inventivo, e com sorte (que é como quem diz, com muito trabalho), excecional nas suas soluções.

    Turrer dá vários exemplos de autores que, de alguma maneira, se propuseram a romper com a dimensão formal do livro, negando o espaço do livro no próprio livro. O seu foco vira-se para a construção do livro de artista pensando nos espaços das margens, usando como exemplo o “Livro de areia” de Jorge Luís Borges e o “Livro Carbono” de Waltercio Caldas. Se bem que, não tendo "lido" nenhuma das obras, fiquei um pouco confusa com a interpretação de Turrer do "Livro de areia" pois, passando os olhos pelo que existe sobre o livro de Borges, não consegui detetar as características que a autora evidencia e que transmito aqui, imediatamente.

    O “Livro de areia” não tem princípio nem fim, é um livro com páginas infinitas devido à forma como a sua numeração foi feita (não há uma página inicial, nem uma final) - “Se o espaço for infinito, estamos em qualquer ponto do espaço. Se o tempo for infinito estamos em qualquer ponto do tempo” (BORGES, 2009, p. 101-103)” (T., Daisy. 2012)

    O “Livro carbono” confunde o princípio com o fim, por ser entremeado com papel mata-borrão que “submete a superfície plana da página a um estado permanente de impressão”. Este estado de impressão permanente faz com que o livro fique condenado a não se repetir, desconstruindo o espaço empírico ao desencadear relações espaço-temporais complexas. 


Livro carbono, Waltercio Caldas (1980)

   

    É aqui que a autora do estudo aprofunda a questão do domínio das margens – “é pelas margens que o livro se perde” pois “dão a ver o ilimitado, o fascínio do mundo nele refletido” (T, Daisy. 2012). Esta afirmação é, para mim, muito interessante, não só por toda a reflexão autoral que a antecede e sustenta, mas porque me fez pensar num hábito pessoal que tenho desde o ensino primário – o de escrever, apontar, rabiscar, desenhar, riscar e borratar à margem dos meus cadernos de escola e manuais. É certo que ao longo do tempo fui perdendo o hábito no que aos manuais toca, impelida por um ou dois pares de professores. Mas a ideia de ter um espaço em branco a chamar por mim, como quem diz “anda, eu ajudo-te a concentrar, usa-me”, sempre me atraiu de forma inata. A leiturabilidade destes objetos diminuía abruptamente devido à minha intervenção neles, obrigando-me a passá-los a limpo e, por consequência, a consolidar melhor as matérias. Por outro lado, estes livros e cadernos tornavam-se únicos, não por serem belos – longe disso – mas, porque, em mais lado nenhum no mundo, os meus exatos rabiscos, escritos, desenhos e assinaturas estariam a ser reproduzidos. Os meus livros perdiam-se nesta violação e, coexistiam com ela à força. Refletir sobre isto não significa que eu considere os meus cadernos livros de artista, antes pelo contrário. Até ver, até onde a minha pesquisa me levou, o livro de artista é autoral, conceptual e tem uma intenção que não fruto de uma estratégia de escape à dificuldade de concentração, de um pupilo em sala de aula.

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