sexta-feira, 7 de julho de 2023

Ora toma! Bordalo a interpretar-nos até aos dias de hoje

 O Museu Bordalo Pinheiro está centrado na vida e obra do artista Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905). A nível histórico e cultural é um artista de imensa importância. Viveu com grande presença social e política no final do século XIX, altura próxima do fim da monarquia em Portugal. Distinguiu-se a nível nacional nas áreas da cerâmica, da banda desenhada, da caricatura e do humor.

O edifício do museu, moradia situada no Campo Grande em Lisboa, é composto por dois blocos relativamente pequenos, ambos de dois pisos. Num dos blocos, após atravessar a loja e a bilheteira, encontramos várias peças do artista em diferentes fases, contextos e assuntos. Pode-se dizer que essa sala serve de introdução ao museu. No piso superior encontramos um espaço dedicado a um dos personagens mais icónicos da cultura portuguesa, o Zé Povinho. Essa personagem caricaturada representa o povo português face às injustiças sociais e à relação que tem com o poder político. O Zé Povinho é um homem de barbas, por vezes sujo e de um contexto humilde. É representado de duas formas opostas: ora é passivo, humilde e subserviente, ora é revoltado e insolente. Na sua versão revoltada faz o gesto icónico do manguito.


Zé Povinho a fazer o gesto manguito, MRBP.CER.0375 © Museu Bordalo Pinheiro, Lisboa


Ainda no espaço dedicado ao Zé Povinho, encontramos a exposição temporária “Estado Crítico”. Foi um projeto desenvolvido em parceria entre a equipa do Serviço Educativo do museu, uma turma do 11º ano da Escola Secundária Marquês de Pombal e o artista e fotógrafo Vitorino Coragem. Nesse trabalho os jovens debateram entre si três temas: adolescência e liberdade, amor e guerra, arte e escola. Posteriormente montaram um quadro com fotografias e ideias escritas pelos alunos resultantes dos debates. Esse projeto enquadra-se muito bem no contexto do museu. A vida e obra do artista Rafael Bordalo Pinheiro foram marcadas pelo seu espírito crítico e sentido de humor perante a sociedade e a típica mentalidade portuguesa. Trabalhar com uma turma do secundário é um bom contributo para o envolvimento do museu com a comunidade escolar, aproveitando o espírito crítico dos adolescentes que começam a formar a sua posição política face ao mundo que os envolve. Acabam por ter flexibilidade para ver os acontecimentos de uma perspetiva mais imparcial, de quem vê do lado de fora, ainda sem a bagagem de conhecimentos que os poderia condicionar com ideias pré-concebidas.




No piso térreo do outro edifício encontra-se a biblioteca do museu. Mais adiante, passando pelas escadas, estão duas salas que mostram o artista como ceramista na sua vertente mais comercial. São peças peculiares e criativas, mas que mantêm uma convencionalidade que alicia qualquer pessoa a utilizar as peças. No piso superior, encontramos uma exposição temporária com as obras dos primeiros cartoonistas portugueses. Naturalmente, Bordalo Pinheiro está incluído nesta exposição.


Painel de azulejos padrão "Nabo"


Numa análise global, o museu está muito bem organizado e catalogado. As peças têm legendas simples, diretas e legíveis. A iluminação é adequada às obras expostas, permitindo a sua clara observação. No entanto, as salas não são excessivamente iluminadas, o que reduz a fadiga do visitante. A lógica da organização museológica é perfeitamente compreensível. Todas as obras têm a sua relevância no espaço onde se encontram. Importa destacar a dinâmica da programação do museu, percetível através do site, com a existência regular de exposições temporárias devidamente integradas na temática da exposição permanente, para além das atividades pontuais e de continuidade do Serviço Educativo.

A visita ao museu é recomendável para todos os públicos e faixas etárias devido à enorme importância do artista do ponto de vista histórico e artístico. Contudo, a recomendação deve ser dirigida especialmente a pessoas que queiram aprofundar o seu entendimento da cultura e do pensamento português, através do sentido de humor fino e peculiar de Rafael Bordalo Pinheiro.


Webgrafia: Museu Bordalo Pinheiro

segunda-feira, 3 de julho de 2023

 

Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes uma história por contar

Museu e Casa-Atelier no Jardim das Amoreiras, Lisboa

 

 




 

Foi por iniciativa de Maria Helena Vieira da Silva que numa esquina do Jardim das Amoreiras em Lisboa se ergueu a Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, que gere um centro de investigação dedicado ao estudo das coleções, mas sobretudo um Museu que preserva a memória da sua vida e a obra dos artistas. Bem como a Casa – Atelier que mantém no rés de chão o antigo atelier onde os artistas pintavam nas suas passagens por Lisboa, aquela que era também a sua própria casa na capital. O primeiro andar de habitação foi remodelado para se tornar residências de artistas. Conforme fora expressa a vontade de Vieira da Silva.  Pintora consagrada nacional e internacionalmente, mas cuja história merece referência, não apenas pela obra feita, mas diria também pelo gesto de deixar a Portugal todo o seu espólio, na casa que inclusive fora a sua casa na mais íntima esfera familiar, é como se nos deixasse um pouco da sua vida para além do seu belíssimo trabalho. A Casa – Atelier mais do que o Museu propriamente dito sugere esta esfera de intimidade e de profundíssima relação com Portugal e sobretudo com Lisboa. Um Portugal, esse à época na pessoa de Salazar lhe nega por duas vezes a nacionalidade que já fora sua à nascença, mas que perdera por se casar  com Arpad Szenes. Posicionamentos políticos que Maria Helena Vieira da Silva soube relativizar e apesar de morrer com nacionalidade francesa depois de vários anos apátrida, foi em Portugal que quis verdadeiramente deixar a sua obra e vida, no Museu e na Casa – Atelier.   

Um pouco de historia, Maria Helena Vieira da Silva nasceu no coração de Lisboa no Bairro Alto na noite de 13 de Junho de 1908 (no mesmo dia que nascera Fernando Pessoa a uns quarteirões de distância, exatamente 20 anos antes, diz-se ainda também a título de curiosidade que o próprio Fernando Pessoa terá visitado a casa da Viera da Silva no Jardim das Amoreiras, e ainda em forma de curiosidade para melhor darmos corpo a este ano 1908 ocorrera poucos meses antes no Terreiro do Paço o Regicídio a 1 de fevereiro, evento que antecipa a alvorada da República em Portugal em 1910. Datas à parte, é de recordar que Vieira da Silva era neta do fundador e diretor do Jornal o Século e viveu no palacete da família até à sua mãe comprar a Casa no Jardim das Amoreiras, filha única, o pai era diplomata mas morreu quando Vieira da Silva tinha 3 anos, é educada pela mãe que a acompanha até Paris quando decide ir estudar para aquela cidade para onde confluíam todos os artistas à época, é lá que conhece Arpad Szenes e com quem casa, e de quem nunca mais se separa até à morte do marido, cerca de 55 anos depois de casarem e esta belíssima história de amor que se tem tornando também inspiração para além da qualidade artística das suas obras.

Até a forma como supostamente Arpad Szenes tratava a Viera da Silva merece destaque, seria de “bicho” o que não parecendo à primeira vista a mais carinhosa das palavras, vinda da boca do seu amado seria certamente. Não tiveram filhos, mas tiveram-se sempre um ao outro e gatos também segundo consta. Viveram em França, e posteriormente no Brasil cerca de 10 anos durante o exilio forçado pela 2ª Guerra Mundial, uma vez que Arpad era judeu, após o exilio descrito como o período mais conturbado da vida de Viera da Silva regressam a Portugal e depois a França.

Da obra da Maria Helena Vieira da Silva, podem-se enumerar várias visões das coisas e dos lugares, são nítidas as transformações, evidenciam-se os quadriculados e os traços abstratos, no início da sua pintura a artista começou por fazer desenhos anatómicos na faculdade de medicina. Também retratou o jardim das Amoreiras em Lisboa. O traço abstrato foi muito desenvolvido na sua obra, como se todas as dimensões estivessem condensadas no interior da tela, transfigurando-se na totalidade, diluindo a perspectiva.

O convite será encontrar nas quadriculas, nos traços, um olhar melancólico, quer nas cores mais fortes, quer nas mais esbatidas como tempo que passou e vai desvanecendo as memórias e as sensações, há um olhar profundo sobre a representação das coisas quase que constituindo uma nova realidade a partir do vestígio de vida presente nas obras que nos apelam à reconstituição dos locais, e mais do que isso das sensações da cor e dos traçados quadriculados. Da passagem do tempo, Vieira da Silva começa por utilizar cores mais fortes mas diz-se que após a morte do marido as cores ficam mais esbatidas, com o tempo as cores da sua  pintura vai se aproximando paulatinamente das cores que o marido usava.  E é por vontade de Vieira da Silva que o nome do marido precede o seu na Fundação e Museu. 

 



Jardim das Amoreiras  Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva

segunda-feira, 19 de junho de 2023

 

“Noite Stravinsky” – pela Companhia Nacional de Bailado, em três tempos

      I.         Os flashes da Noite

    II.         As sensações

  III.         O análogo da memória

I

As imagens da dança como construções da nossa própria memória ou imaginação.

A estrutura da dança ou o efeito que provoca nos expectadores surge como uma espécie de paralelismo com a nossa própria memória. O modo como nos recordamos dos acontecimentos ou emoções que temos está intimamente relacionado com o modo como nos relacionamos com a dança. Esse momento aparentemente ininteligível em que os corpos esvoaçantes compõem uma melodia para os nossos sentidos.

Como se as cores, os movimentos dos corpos e os sons convergissem num único momento, como se o espetáculo de dança nos desse a oportunidade de descobrir um novo sentido em nós, talvez mais puro e mais desperto. Se me detenho na reconstituição da memória do espetáculo, do programa que foi apresentado escapa-me logo toda a sensação.

Para mim de fácil recordação ficaram três palavras e já é tanto, se nos detivermos na emoção daquilo que significaram naquela Noite de Stravinsky. São elas cadeira, brilho e cor.

É difícil escrever sobre aquilo que nos está tão perto. A dança está dentro de nós no movimento que fazemos para nascer já dançamos, no balanço do corpo que se levanta para um dia de trabalho, no mais quotidiano de um autocarro a chegar à paragem e os transeuntes a aproximarem-se e movimentarem se para o seu interior, no recolher da noite quando nos encolhemos na cama, a vida é uma dança tão próxima que se torna difícil falar sobre ela.

Mas regressando à apresentação da Noite de Stravinsky no teatro Camões, constituída por três bailados: o primeiro “AS BODAS” para mim a palavra é cadeira, pode ser simples e primordial, mas é o balanço que me surge quando penso nessa peça. A imagem mais marcante será uma espécie de conjunto de corpos juntos que não são homens nem mulheres, mas balançam e balançam e nesse balançar têm a cadeira metalizada como o suporte do seu corpo, num equilíbrio brilhante que reluz e que é enigmático ao mesmo tempo. É um eterno balançar.

No segundo “INTERMEZZO”, a palavra é brilho já nos diz quase tudo não nos faltasse a sombra para perceber a luz e novamente esta dicotomia entre luz e sombra e há uma espécie de brilho que une ambas faces da moeda, o dia e a noite, claro e escuro. Nessa simbiose perfeita encontramos a música que está sempre presente nesta noite com uma orquestra ao vivo a guiar os nossos ouvidos para caminhos longínquos muito para além da sala de espetáculos.

Por fim, no último bailado composto por dois atos, mas não menos pungente e inquietante a “SAGRAÇÂO DA PRIMAVERA” para mim é cor, uma invasão de cor. Várias cores tão marcadas é como se tornassem em sons vivos que caminham do interior da terra tão visceral e enigmático. Que chega a faltar-nos o ar.

II

As sensações das palavras e dos sons. Os movimentos dos corpos em torno de uma luz misteriosa na Noite de Stravinsky.

Citando Eugénio de Andrade, para melhor explicitar o pretendido.

"(…)

um corpo é o lugar da furtiva

luz despida, de carregados

limoeiros de pássaros

e o verão nos cabelos;

 

é na escura folhagem do sono

que brilha

a pele molhada,

a difícil floração da língua.

 

O real é a palavra."

 


III

A memória surge à consciência tal como uma espécie de dança dos sentidos, quando nos abstraímos da tentativa de explicar as causas ou consequências que observamos ficamos mais próximos de realidade interior de cada movimento. Como se a nossa memória funcionasse como uma espécie de dança em que os sentimentos se vão misturando e reativando à medida que são atualizados por novas cores e sensações. A memória como uma síntese que nos aparece à consciência quando na verdade é uma construção contínua e ininterrupta que vai sendo atualizada. E que surge como uma tentativa de legitimar a realidade, de lhe conferir um sentido.

Ora o espetáculo de dança mais do que nos apresentar uma peça é uma narrativa de corpos que contam uma história sem voz e que por isso é tão livre e pode tão maravilhosamente ser apropriada por cada mente, por cada ser pensante que a adequa e integra na sua própria história de vida constituindo para si uma memória única e quase indecifrável. Uma dança em que continuamente vivemos não apenas exterior, mas sobretudo interior em que os nossos pensamentos e emoções voam como sonhos. E constituem uma espécie de memória enigmática, só inteligível para cada um de nós neste domínio de interioridade irredutível, individual, irrepetível e por isso fascinante.

 


Foto retirada do site oficial da CNB

domingo, 18 de junho de 2023

O Paradoxo da Utopia

 A exposição Recursos Naturais, visitável no Hangar – Centro de Investigação Artística, em Lisboa, é da autoria do artista plástico Miguel Palma. Este artista de 59 anos, com mais de 30 anos de carreira, desenvolveu o seu trabalho de um modo multi-disciplinar (escultura, desenho, vídeo, instalação e performance) demonstrando o seu interesse por tecnologias (na sua generalidade) e pela relação que a humanidade tem com a natureza, isto é, o modo como a civilização domina o natural. As peças tendem a ser, ou aparentam ser, complexas. Os elementos que as compõem são muito elaborados na sua construção, mas também podem partir de uma ideia intuitiva, como é o caso da peça AQUÁRIO de 1996, em que a ideia é direta e sem outros sentidos, para além do seu lado paradoxal (um peixe fora de água, dentro de água).


AQUÁRIO, 1996

O espaço expositivo do Hangar situa-se próximo do miradouro dos Barros, com vistas para a cidade, o Castelo e o rio Tejo. Observamos com clareza a cidade bem adaptada ao declive das suas colinas. Intencional ou não, o local da exposição vai de encontro ao tema: o domínio da humanidade sobre a natureza.




A galeria, composta por duas salas, é um espaço relativamente pequeno. Do lado direito da entrada existe um escritório e em frente encontramos o espaço expositivo: uma sala branca em forma de J e um pilar ao centro. As peças estão expostas junto às paredes, algumas penduradas e outras no chão, com exceção de duas, colocadas junto ao pilar.

Grande parte das peças é desenho composto por escrita, linhas, manchas e colagens. A expressão é elementar e inocente. A mancha tende a ser uniforme, maioritariamente em tons de azul, sendo utilizada para desenhar formas variadas. Os elementos que estão recortados e colados variam entre fotografias, desenhos, padrões, artigos de jornais ou revistas, ou possivelmente, manuais de instruções. O globo terrestre é um elemento recorrente, tanto nos desenhos, como no resto das peças. Os elementos ligam-se de modos diversos: linhas, sobreposições, figurações, manchas... embora o tema das peças seja recorrente (a forma como a civilização manipula os recursos naturais), por vezes, o lugar – ou talvez o significado – de alguns elementos das peças pode não ser óbvio, e em certos casos, é até rebuscado.

De modo geral, é evidente que Miguel Palma tende a complexificar as suas peças. Pode-se dizer que brinca com a complexidade e amplitude da tecnologia que a humanidade usa para os seus projetos de desenvolvimento, como se pode observar no desenho abaixo:




Este desenho, apesar de não ser particularmente saturado em detalhes, carrega claramente a ideia de complexidade. Remete-nos para quadros de investigação criminal (1). É como se fosse aqui apresentado um projeto megalómano à escala global, mas ironicamente, está apresentado de modo muito simplista e até infantil. Existem muitas referências à exploração espacial, muitas delas são foguetões colocados na periferia do desenho do globo terrestre, como se fossem descolar para fora do desenho. Os diferentes elementos tecnológicos do desenho estão ligados por fios ou tubos. Algumas partes do desenho estão assinaladas com uma circunferência. Há repetições de formas – padrões – em cada continente (a Antártida e a Oceânia não estão representadas). Globalmente, a obra é uma sátira ao desejo incansável de progresso. A infantilidade do mundo utópico onde a humanidade tem o poder total sobre a natureza.

 

(1)




PROJECTO 2080, 1996



A peça PROJECTO 2080 de 1996 é uma instalação eléctrica que tem como materiais o ferro, o acrílico e a madeira. Em termos temáticos, as duas peças relacionam-se. Ambas focam-se na relação entre a natureza e a humanidade. Contudo, não é um exagero dizer que em termos estéticos estas peças são quase opostas. Enquanto uma estabelece relações complexas e difíceis entre todas as suas partes, a outra é mais simples. Os elementos de PROJECTO 2080 podem ser organizados em três grupos: a estrutura da peça, a parte vegetal e as figuras (bonecos). O lugar de cada detalhe da obra é claro e directo. Em termos técnicos, a peça envolve mais recursos. As árvores estão fixadas de modo invertido na parte superior da estrutura, e esta está a suspender a parte inferior. Trata-se de uma superfície luminosa, como se fosse o pavimento de uma exposição de arte contemporânea (cubo branco). As figuras encontram-se nessa superfície. A peça é equilibrada na sua proporção, elegante e talvez até requintada devido à sugestão dos bonsais. Partindo da ideia de que a obra representa uma maqueta, podemos extrapolar que a intenção do projecto seria criar um espaço utópico, onde as pessoas pudessem usufruir de todos os benefícios ao estarem conectadas com a natureza, mas sem estarem em contacto direto com ela. Temos mais uma vez aqui, uma ideia paradoxal. Nesse espaço, a natureza cresce como o humano deseja, sem interferir com o quotidiano, em total separação mas com grande proximidade. Ao contrário da obra anterior, aqui o elemento satírico é mais subtil.

Ao observar a exposição, conseguimos perceber que Miguel Palma tem um enorme fascínio por tecnologias e arriscaria até dizer, por ficção científica. Contudo, ao contrário de muitas pessoas que são obcecadas por novas tecnologias e progresso tecnológico, Miguel Palma demonstra estar perfeitamente consciente das consequências do desenvolvimento tecnológico excessivo. Embora possa parecer paradoxal, quando o artista expõe os grandes problemas da insustentabilidade, consegue fazê-lo de modo leve e com humor, expondo o seu fascínio pelo comportamento da humanidade. Por outras palavras, não se encontra um discurso ativista no seu trabalho, não há qualquer ecoansiedade.


fontes:

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Entre os museus de Arte Popular e da Etnologia Nacional__ um passeio pelas tradições do povo português através da cestaria e da música



Fonte: Fotos da autora no dia da visita aos museus.

 

Oeiras, 08/06/2023



Saí para um passeio em busca das tradições portuguesas e que me levasse às pessoas que fazem das suas práticas do dia-a-dia a sua arte, mas também o seu viver e ofício, retratando um modo de ser característico de uma comunidade. Sendo assim, nada melhor do que visitar dois museus que se comunicam pelos conteúdos dos seus acervos, como o Museu de Arte Popular e o Museu da Etnologia Nacional, ambos localizados na cidade de Lisboa, em Portugal.

Ao adentrarmos no Museu de Arte Popular percebemos estar em um ambiente diferenciado, onde os trabalhos manuais, o artesanato, são protagonistas das memórias do povo português através da cestaria. O Norte de Portugal é a região do país que destaca-se na produção de uma variedade de cestos, que se destinam à atividades diversas e que retratam por sua vez, os autores dos mesmos, suas histórias e ofícios, característicos das comunidades onde vivem. 

Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.

A cestaria como o próprio nome sugere é o ofício em que se cria uma variedade de cestos, de fibras de origem vegetal. A elaboração dos produtos artesanais pode ser através do método de entrançar as fibras ou em forma de espiral. Em ambos os casos, os produtos fruto destas elaborações são muito harmoniosos, com proporções geométricas diferenciadas e que levam a uma variedade de objetos que são transformados a partir da ideia inicial da cesta, como vemos nas imagens abaixo.

Canoas, candelabros, potes, vasos e lustres, são apenas alguns desses objetos, que podemos citar como exemplos e que retratam o esmero em que são produzidos. Afinal de contas, são produtos originários das mãos, do toque e da delicadeza e habilidade no trato com os materiais. Nada é feito à revelia, mas tudo tem o seu sentido único de ser. As sensações que atravessam as mãos, pelo corpo, vão dando formas variadas aos materiais e dando vida também pela imaginação do seu autor, ao objeto artístico.

Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.

            As paredes do acervo temporário, da exposição “Um Cento de Cestos”, vão atraindo o nosso olhar para imagens dos artesãos, construtores de tão belas peças que se distribuem ao longo das salas. Ao olharmos com atenção cada uma das fotografias, que dão protagonismo aos artistas-artesãos, vamos percebendo que cada um deles tem uma forma diferenciada de manusear suas produções, como também uma forma especial de se relacionar com as mesmas peças e com os ambientes de criação. 


                                        Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.


 De acordo com o que  é dito no programa do museu sobre a exposição:

“A exposição “Um Cento de Cestos”, materializa uma estratégia de estudos, documentação e divulgação de coleções congêneres do Museu de Arte Popular (MAP) e do Museu Nacional de Etnologia (MNE), a partir de uma abordagem integrada que pretende evidenciar, por um lado, a complementaridade entre essas coleções, e por outro, as sinergias que se estabelecem quando da decisão de reunir as duas instituições numa única entidade museológica.”

(Paulo Ferreira da Costa, Diretor do Museu Nacional de Etnologia / Museu de Arte Popular)


            A iniciativa dos museus em reunir em um único acervo os trabalhos dos artesãos, busca dar visibilidade às técnicas manuais que primam pela sustentabilidade, no manuseio de materiais que pela sua própria origem vegetal tornam-se renováveis, não ferindo o meio ambiente.

              Abaixo vemos a imagem de uma cestaria denominada de “madeira rachada”, produzida a partir da utilização de árvores diversas, como o castanheiro e o carvalho e bastante utilizada para a agricultura e pescaria. Desta forma podemos perceber como o trabalho dos artesãos além de ter uma função utilitária para eles próprios e de sobrevivência, pode de maneira solidária, vir a contribuir para o ofício de outros, quando utilizado como instrumentos de pesca, por exemplo, colaborando assim em extensão do trabalho, para a comunidade como um todo. Uma maneira também de repensar a vida através de ações que ganham importância pelo ato de preservação, por ser sustentável e munido de pensamento coletivo.


Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.

             Alguns nomes dos autores das peças de cestaria cujos trabalhos estão expostos no museu merecem ser referenciados, são eles: Dinis Cunha, cujo trabalho artesanal é feito com madeira rachada, Manuel Dias, em vime, Antônio Gomes, em cana, Carlos Silvestre em palha de centeio, Maria de Fátima Santos em junça e Vanessa Flórido em palma.


Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.

            

                Os materiais são valorizados em cada detalhe na exposição, como os que mostramos na imagem acima e através das características de cada uma  das matérias-primas vamos conhecendo uma zona de Portugal, a exemplo do sanguinheiro, do vime e do choupo. Essas matérias-primas dão origem a utensílios variados como o cesto, usado nos trabalhos agrícolas e as canastras utilizadas no comércio ambulante, nas feiras em vilas, como em Miranda do Corvo no Distrito de Coimbra, cujas matérias-primas neste caso da região em específico, são o castanho e salgueiro. Mas também podemos citar como exemplo o viveiro de peixes utilizado para transportar o peixe vivo dentro da água, origem em Vila Franca de Xira e cuja matéria-prima é o salgueiro.

Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.

            

               Seguindo em nossa busca pela arte popular portuguesa, chegamos em nosso passeio finalmente ao Museu da Etnologia Nacional e vamos aos poucos, nos envolvendo com os brinquedos populares, os variados instrumentos musicais criados com materiais rústicos, mas que esbanjam criatividade e que fazem das festas populares portuguesas tão singulares em ritmos, performances e cores. E assim, em ato de apreciação, aos poucos ao caminharmos pelo acervo do museu, vamos sendo capturados pelo olhar, pelas fotografias do povo em festa e pelos vídeos das celebrações, que também revelam seu sincretismo, que em menor ou maior grau, relacionam o sagrado ao profano, das festas dos santos aos brinquedos gigantes mascarados.

Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.


            Acima a Dança do Homens na Festa da Senhora do Alto dos Céus, imagem de Benjamim Pereira de 1963. Foto tirada pela autora em visita ao acervo do museu.

Fonte: Fotos da autora no dia das visitas aos museus.

            Por sua vez, das imagens que mostramos acima vê-se da esquerda para direita o instrumento dos cartoze pauzinhos de pau-ferro, onde através das correias é suspenso no pescoço do tocador, que com o chuço, material agarrado as correias, quando arrastado pelos pauzinhos produz sons que vão seguindo conforme o ritmo e compasso da dança que o acompanha. À direita temos a cabeça de gigatone ou cabeçudo. Bastante conhecido nos carnavais da cidade de Tomar em Santarém.

              O tempo dita a atuação de determinados instrumentos e que consequentemente só se ouvem em determinados períodos do ano. A flauta e o tamboril são tocados em conjunto pelo taborileiro em zonas de Trás-os-Montes e Alentejo, tendo nesta última caráter cerimonial. Ou em Santo Aleixo da Restauração na Festa de Santo Antônio, em Maio, e em Barrancos na Festa de Santa Maria, em Agosto. Normalmente esses instrumentos são propriedade da comunidade onde são tocados.

              Chegando ao fim do nosso passeio pelos museus que trazem em seus acervos a arte popular portuguesa através dos cestos, dos instrumentos musicais e brinquedos folclóricos, fica a vontade de conhecer ao vivo a atuação dos artesãos em suas comunidades e nos faz pensar e questionar sobre uma possível aplicabilidade destes materiais e suas produções, como substituição de produtos industrializados e assim, também como uma forma de promover a sustentabilidade, fomentando o empreendedorismo local, a empregabilidade ou um rendimento acrescido.




quinta-feira, 8 de junho de 2023

Museu Fragata

Fundeado na doca seca de Cacilhas entre o Farol e os antigos estaleiros da Lisnave, a Fragata D. Fernando II e Glória remonta ao século XIX, cujo espaço é hospedeiro a peças de arte e inúmeros itens de coleção. Património da Comissão Cultural da Marinha, é hoje a 4ª mais antiga fragata de guerra, e foi a última a realizar a rota marítima à Índia. As visitas guiadas em datas especiais, como no passado 20 de maio – Dia da Marinha – contam com um recontar de acontecimentos a bordo e um workshop de Arte de Marinheiro, com demonstrações de nós.

O navio veleiro é mandado erguer por D. João VI em 1824 e a sua construção inicia-se mais tarde em 1832, seguida de outros períodos de atrasos durante os reinados atribulados de D. Miguel e D. Pedro I. Com os lucros da produção de tabaco na Índia, a construção reganha força e termina em 1843 e o navio assume os nomes do casal real da data.

Erguida na Índia, em Damão, escolha motivada pelo historial de experiência em construção naval naquele enclave, pelo acesso a mão de obra barata na época e proximidade do estaleiro a florestas de madeira de teca. Nome comum das Tectona grandis, árvores que atingem os 50 metros de altura e dão origem a uma madeira com leveza considerável em relação à sua durabilidade, características atrativas à construção naval. Embora de origem asiática, são descobertos vestígios pelos europeus em destroços nas ilhas do mar Egeu, sugerindo a sua utilização em barcos e navios desde a antiguidade.

Conta com uma história relativamente tranquila, nunca chegando a travar qualquer combate por não ter havido necessidade de recorrer a armamento durante os 33 anos de atividade, servindo de embarcação para transporte de mercadorias, passageiros, e ocasionalmente presos a despojar noutros territórios portugueses.  

Já inativo, aquando da segunda metade do século XX, Fernando II e Glória albergava uma “obra de assistência social [1], um projeto de habitação e recrutamento de crianças e jovens órfãos ou de famílias carenciadas. Um incêndio a 3 de abril de 1963 deflagrou a bordo, reduzindo a fragata a 13% da sua estrutura original. O rigor nos trabalhos de restauro nos mais recentes anos 90, com reconstituições históricas dos ambientes e quotidiano da vida a bordo nas viagens do século XIX, concede ao navio o prémio Maritime Heritage Award, distinguido pela instituição inglesa World Ship Trust em 1999. Podemos hoje comparar o design do navio veleiro aos modelos britânicos que surgiram em seguida naquele século, sugerindo uma possível inspiração por parte da armada Real britânica no desenho português.

A restauração da estrutura recuperou parte da madeira original, no espírito de preservação e conservação que o navio vindica, enquanto peça histórica e espaço museológico. O navio veleiro consta de quatro pisos: o convés, à superfície, por onde é feita a entrada a bordo e aos restantes espaços; a bateria; a coberta; e o porão. É ao descer das escadas estreitas para a bateria que nos deparamos com o primeiro manequim que habita a fragata. Amarrado pelo pescoço e pés, o “João Pedro” terá sido um marinheiro castigado pela libertação não autorizada de passageiros de bordo e pela resistência às autoridades que o questionaram.

Nos compartimentos pessoais do comandante observam-se uma coleção de bordados, cristais, porcelanas e pratas portugueses oferecidas por mecenas à data dos restauros da fragata entre 1980 e 1998, cujos nomes se encontram imortalizados no espaço. A este espaço de conservação juntam-se outros, como a botica onde seriam armazenadas ervas medicinais, mezinhas e remédios, e a messe de oficiais – salas que alojam peças de coleção e manequins modelo de figuras verídicas, em a entrada é limitada ao público e a sua observação é feita através das pequenas janelas presentes em cada porta. Os manequins presentes a bordo são trabalhos feitos a partir de registos históricos e documentais de caras de tripulantes, e de modelos vivos de antigo pessoal da marinha.



A bateria conta ainda com uma cozinha e rancho central, com reproduções de fogões e material da época, e, na sua proximidade, o curral, com transporte de animais vivos destinado ao consumo. A capacidade do curral portaria uma estimativa de 1000 galinhas e 100 porcos para as longas viagens aos principais destinos da armada – Angola, Moçambique e Índia.

O piso abaixo, a coberta, seria um espaço multifuncional, em metamorfose ao decorrer do dia. Serviria principalmente de refeitório nas horas diurnas e de espaço religioso para as rezas ao levantar das mesas no final do dia. Na hora do recolher, eram erguidas redes ao teto e o espaço transformar-se-ia em dormitório. Nesta mesma zona encontra-se um oratório a Nossa Senhora da Conceição, peça que data ao século XVII exposta tal como estaria à data das viagens do D. Fernando II e Glória, encastrada numa espécie de deambulatório de bordo. O piso é ainda casa à praça de armas do navio, com uma coleção de espingardas e sabres.

Por fim, o porão alberga a zona técnica e de carga do navio, servindo ao transporte de pólvora e outros materiais atinentes à artilheria e carpintaria. O espaço é habitado por manequins que posam em trabalhos dessas mesmas áreas e conta com um extenso número de outras figuras: um médico num espaço de enfermaria ambulante, decorado com os instrumentos utilizados nas intervenções cirúrgicas da época; uma família de civis num pequeno camarote improvisado durante viagens de transporte de passageiros; um grupo de homens num momento de descontração, a talhar pequenas embarcações em madeira.




As obras de restauro do  D. Fernando II e Glória e a sua abertura ao público são de um tal elevado valor histórico e cultural que insere o navio no conjunto dos espaços museológicos do concelho de Almada. A inserção de peças de coleção e das obras de escultura de manequins nas muitas divisões do veleiro concedem vida aos espaços e recontam a história do quotidiano da vida na marinha, criando uma experiência única incomparável, por exemplo, ao que seria a exposição desses objetos numa sala típica de museu de paredes brancas. Numa visita à fragata para o conhecer do espaço em si, as peças expostas – ou dispostas – contam para o realismo da experiência. Sem elas o navio parecer-nos-ia vazio e a experiência menos real. Da mesma forma, numa visita com objetivo de apreciar as peças e a arte a bordo, é o espaço por sua vez distingue e eleva a experiência.


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[1] (1963), "Diário de Lisboa", nº 14477, Ano 42, Quinta, 4 de Abril de 1963, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos. http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_15410

Figura 1. Vista do interior da messe de oficiais. Fotografia da autora.

Figura 2. Vista do interior da botica de bordo. Fotografia da autora.

Figura 3. Vista do camarote de alojamento de passageiros civis. Fotografia da autora.

Figura 4. Outra vista do camarote. Fotografia da autora.



A Luz e as Sombras

 A peça Poema de Tomás Maia foi apresentada na Cisterna do Convento de São Francisco da Cidade (FBAUL). Contrariamente à ideia intuitiva de um poema, a peça não usa a linguagem literária. Recorre à apresentação visual e sonora para expor o gesto poético. A peça é inspirada no mito de Orfeu, mas procura representá-lo num outro contexto de modo a abordar o mito sem a componente trágica da história.

O mito de Orfeu é uma história da mitologia grega. Segundo a lenda, Orfeu apaixonou-se e casou com Eurídice. No entanto, Eurídice foi mordida por uma serpente venenosa e morreu. Orfeu decidiu descer ao submundo, o reino dos mortos, para tentar trazer sua amada de volta à vida. Orfeu consegue persuadir Hades, o deus do submundo, a permitir que Eurídice retorne à terra sob uma condição: Orfeu não poderia olhar para trás até que eles estivessem completamente fora do reino dos mortos. Orfeu concordou e começou a guiá-la de volta, mas, atormentado pela dúvida, olhou para trás antes de atingirem a superfície. Nesse momento, Eurídice desapareceu e voltou ao submundo para sempre, deixando Orfeu destroçado.

Em Poema, Orfeu não aparece em cena e Eurídice chega à superfície.

Para entrar na cisterna, os visitantes avançam um de cada vez, através de um corredor estreito onde a luz vai ficando cada vez mais escassa. A entrada para a cisterna, ao fundo do corredor, termina numa plataforma, no escuro absoluto, após o fecho da porta de acesso, que corresponde ao lugar dos espetadores. Passados alguns minutos de silêncio, escuta-se uma composição para precursão aparentemente irregular e agitada. Do escuro, ligam-se progressivamente três projetores, instalados na cobertura do espaço, com uma amplitude angular de iluminação, do topo das escadas até ao chão. Vemos com clareza, chão e escadas cobertas de terra. Subitamente surgem figuras vestidas com roupa escura e simples a descerem as escadas. O efeito da luz dava-nos a impressão de uma aparição das figuras, sem se perceber de onde vinham, como um número de ilusionismo. A um olhar mais atento, as figuras, mais precisamente, os caminhantes, vinham de uma escada não visível, para chegar ao topo do visível (construção piramidal da estrutura). Ao terminarem a descida, os caminhantes contornavam a estrutura em direção ao lado oculto das escadas, e reiniciavam o ciclo do movimento.

Passado algum tempo, entra em cena uma figura feminina vestida de branco, vinda debaixo da plataforma onde se encontra o público, em frente à escadaria visível. Avança e sobe as escadas. O movimento é mais lento que o dos caminhantes e, quando se cruzam, dá-se um ligeiro impasse e discreta contra-cena, ao nível do olhar, como se a caminhante de branco possuí-se uma aura. Quando atinge o topo das escadas, todos se imobilizam. A dado momento, a caminhante roda a cabeça 90 graus para o lado esquerdo, a iluminação altera-se e foca-se na figura durante alguns minutos, que antecedem o seu desaparecimento (sai de cena descendo as escadas ocultas ao nosso olhar). A luz retoma o desenho inicial e os caminhantes retomam a descida. O público sai da sala com a cena em aberto (os caminhantes continuam o seu movimento).

Poema tem a duração de cerca de 30 minutos. Os tempos são adequados para acompanharmos calmamente a fluidez da cena e dos seus movimentos, sem nos perdermos nos diferentes registos entre as partes.

A peça aborda as grandes questões da humanidade: a vida, a morte e a verdade. Para ser mais preciso, a inacessibilidade e a incerteza dessas questões. Se tomarmos o paralelismo entre a peça e a alegoria da caverna, vemos uma mulher a caminhar em sentido contrário às sombras. Mas mesmo após chegar à “verdade”, a posição e o olhar dela ainda se encontra dentro de uma caverna (a cisterna). Ironicamente, a verdade encontrava-se do lado das sombras (a saída da cisterna).

A experiência do visitante é positiva, na medida em que é levado a elaborar pensamentos profundos e inquietantes, a partir da arte, da poesia. O quão pouco sabemos sobre a vida? E mesmo que se descubra a verdade, o que nos garante que essa verdade é a verdade?

Uma nota que remete ao início de Poema: houve um erro na abordagem da luz de emergência presente no espaço. A luminosidade de pontos vermelhos na escuridão total faz questionar o seu propósito e não tem lugar na peça. Deveriam ter sido tapados completamente ou assumidos de maneira clara como luzes de emergência, para os excluirmos logo à partida.

Revista é Sempre Revista! _ Um espetáculo teatral português da alegria!

 

Fonte: Fotos da autora tiradas no dia da apresentação.

 

 

Oeiras, 07/06/2023



Um espetáculo de encher os olhos no Teatro Politeama em Lisboa! Canto, dança, música e narrativas que contam de maneira jocosa, através de sátiras e ironias sobre o teatro de revista em Portugal, seus personagens e contextos, e revive a “revista” como um gênero teatral que trás o riso e a crítica social como mobilizador da ação cênica. Como um dos próprios atores se refere no palco, em que a revista é “a arte de ser português”, Filipe La Féria nos vai revelando pouco a pouco, em um espetáculo de variedades, os personagens que fizeram da revista portuguesa um sucesso de público e entrelaçando assim a tradição com a contemporaneidade. 

Os atores e dançarinos em figurinos graciosos e ricos em detalhes, contam-nos sobre experiências vividas pelos artistas, os de ontem, de meados do século XX, que fizeram a revista portuguesa quando a mesma nasceu, assim como os de hoje, que nos trazem a revista contemporânea. Em cenas que remetem ao quotidiano, o espetáculo mostra também pessoas comuns, bem como críticas aos políticos e autoridades, expondo as mazelas sociais, criando conexões com os tempos atuais, unindo a revista do passado à revista do presente.

Vamos da plateia rindo e nos emocionando com a atuação dos atores no palco que buscam em muitos momentos a interação com o público, quer seja nas brincadeiras endereçadas a alguém da plateia, que nos leva a gargalhadas, quer seja no chamamento às palmas ou até mesmo, na narração engraçada de uma estória que se comunica com as nossas vivências do dia-a-dia, ou através dos números cantados e dançados e interpretados ao ritmo do fado. É como se subíssemos ao palco a cada atuação e vamos a cada instante sendo convidados a bater palmas, a cantarmos, nos envolvendo e divertindo juntamente com o elenco, dando um ritmo especial ao espetáculo que nos vai afetando como a própria vida.

Alguns locais da cidade de Lisboa são citados e assim aos poucos vão sendo construídos através da atuação dos atores contextos variados na nossa imaginação, como o Teatro Apolo, ponto central da revista, o Teatro da Trindade, o Teatro Nacional e o Teatro Maria Vitória, considerado o primeiro teatro do Parque Mayer que fez 100 anos e que foi palco de vários teatros de revista, inaugurado em 1922.


Fonte: Foto da Agenda Cultural.


Enquanto imaginamos os contextos, somos ao som do Charleston, uma dança surgida na década de 1920 na Carolina do Sul na América do Norte, convidados a bater palmas, vão aparecendo então a seguir, as canções e danças populares portuguesas, o público reconhece as canções e vão seguindo cantando com os atores e cantores, momentos especiais vão sendo criados em que a plateia e os artistas fazem a festa, o espetáculo de revista. Neste palco da alegria e da irreverência, os atores e atrizes vão personificando acontecimentos, e dando vida a personagens, a conceitos, e a instrumentos políticos, como a censura. Personificada como uma velha senhora, a censura, símbolo da repressão, é representada pela atriz que afirma ser contra a revolução, figura vigente nos períodos da monarquia e da ditadura. Todos no palco gritam, evocando o pensamento crítico em meio à brincadeira e a alegria.

O espetáculo vai-se tornando também uma homenagem aos artistas da revista, surgem no palco grandes painéis com os retratos de cantores, atores, coristas e vedetas que se sobressaíram no teatro de revista, citando alguns nomes como: Eunice Munhoz (1928-2022), Beatriz Costa (1907-1996), Ribeirinho (1911-1984), Vasco Santana (1898-1958), Eugenio Salvador (1908-1992), Ivone Silva (1935-1987) e que são interpretados pelos artistas da companhia. Através de cantorias que unem o fado às narrativas de vida dos artistas da revista de um tempo longínquo, pelas memórias de tempos idos vão sendo reveladas à plateia, com humor e emoção, sentimentos pensamentos e modos de ser.

                                                                Fonte: Foto da Agenda Cultural.


A crítica mordaz, a sátira e as piadas preenchem o palco com personagens que de suas palavras relatam a obscuridade das ações de agentes políticos que prejudicam a população, gerindo mal os recursos. Para ilustrar, em um determinado momento no palco, entra um ator que interage com outro grupo de atores que representa um rancho folclórico. Como um coro bem jocoso e divertido, este grupo vai reforçando e representando os descalabros provocados pelos agentes políticos à população. Os atores se utilizam do exagero nas expressões corporais e nas repetições das ações e falas, para ressaltar o desespero como consequência das ações desastrosas que acometem a população vitima do desrespeito e da exclusão.

Como em um ato de manifestação, indignação e inconformismo, com piadas e duplos-sentidos, os personagens vão relatando à plateia os problemas atuais, como por exemplo, os 125 euros de apoio extraordinário dos ordenados, o aumento de 50% das reformas em um mês, e da retirada de 30% ao ano nos impostos, o aumento do leite, do gás, das fraudas, da gasolina, do aumento constante das taxas e mais taxas e taxinhas.

 Como um ato de revolta o coro repete:

Já chega! Somos pobres! Também quero agradecer a Marcelo, o Marcelinho. É fome! É miséria! É injustiça! Falta de habitação! Se alguém souber de um T0 por menos de 100 euros...é que fico esperando vocês rirem das desgraças.

A plateia se diverte e é convidada pelos atores para acompanhar com palmas o canto, que vai se tornando cada vez mais crítico e sendo acompanhado pelas danças folclóricas que reforçam toda a situação de desagrado e desespero da população representada pelos atores em cena. Uma cena inusitada quando uma vedeta entra no palco em desespero por não ter comida para fazer uma sopa. O canto é crítico, dando destaque ao preço do pão, do leite, do bacalhau. Em meio às piadas, as cantigas de fado seguem emocionando, gerando dramaticidade e vão revelando personagens de revista de outrora. A plateia canta juntamente com os atores uma das canções de Lisboa que diz em coro:

 Lisboa tem cheiro de flores e de mar, cheira bem, cheira a Lisboa!

Quando o espetáculo se aproxima do fim o ápice das interpretações dos atores vai se dando através dos variados solos de fado. As vozes incríveis dos atores entram em conexão com a emoção da plateia que busca acompanhar cantando. Retornam narrativas de vida, as vedetas contam as suas histórias, dando vivacidade à apresentação, que não reduz a energia e empolgação em nenhum momento, dando ritmo ao espetáculo nas alternâncias das variadas cenas. Um dos atores ressalta que a vida é bela! Um teatro que vai se mostrando alinhado com as causas sociais, humanitárias e instigando a plateia a compartilhar com o riso e as palmas, o que é dito com o coração.

Vamos sentindo que não queremos que o espetáculo acabe. Tudo vai se tornando uma ode à alegria. Em meio às plumas das vedetas, seus cômicos e dramáticos relatos e em meio as cores dos figurinos que encantam o olhar, as letras das canções vão-se  posicionar como em alto relevo no palco, mais um convite para que as  pessoas da plateia participem da festa da revista, lendo do telão, cantando e batendo palmas juntamente com os atores.

 E a plateia vem abaixo nos risos, quando entram em cena os times de futebol, Benfica, Porto e Sporting, personalizados pelos atores que rivalizam entre si com muito humor, levando as pessoas que assistem às gargalhadas, ao som das cantigas dos times e das canções populares portuguesas. Um show à parte. Vamos sentindo mais uma vez que o fim do espetáculo se aproxima, uma das vedetas convida a entrar no palco todo o grupo, mais uma vez atores e plateia cantam e se divertem com um espetáculo onde predomina a alegria e saímos do Teatro Politeama com o coração aliviado e feliz e com a mensagem que nos foi deixada pelos atores:

Deixem esse teatro com uma gargalhada! A vida vale a pena se tivermos a coragem de rirmos dela! Porque Revista é sempre Revista!