sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Os gestos caligráficos no trabalho de Ana Hatherly





A escrita nunca foi senão representação: imagem.
A palavra-escrita é um labor arcaico: sulca enigmas venda e desvenda o sentido do gesto.

 Ana Hatherly



Ana Hatherly, portuguesa, nascida em 1929 na cidade do Porto, foi uma artista plástica, poeta, ensaísta e professora que se dedicou à investigação das dimensões gestuais da escrita e das relações entre palavra e imagem. Ao longo de sua trajetória realizou experimentações em diversas técnicas e suportes, incluindo desde explorações caligráficas a pintura, performance e vídeo/cinema. Em 1959 Ana publicou o primeiro poema concreto de Portugal, mas não tarda a desviar da estética concretista que marca esse período histórico. Um anseio pela experimentação e pela liberdade das formas a torna a pioneira do experimentalismo em 1960, época em que passou a investigar as formas visuais e semânticas da escrita e a construir uma trajetória singular, integrando investigação científica e dedicação criativa no campo das artes e da poesia.

Parte da obra visual de Ana Hatherly é caracterizada pela gestualidade, pelo movimento da mão que cria inquietas linhas de texto, densas texturas e volumes, múltiplas formas que continuamente se transformam e sugerem itinerários e significações diversas. Em seus trabalhos a escrita é desvinculada de utilitarismos e feita de visualidades, escrita que muitas vezes se torna ilegível, apontando o significado para as formas gestuais de sua origem.


O Pavão Negro (1999)
Tinta acrílica sobre papel 59 x 42 cm



A Revolução (1977)
Tinta acrílica sobre papel 84 x 60 cm


Essa gestualidade caligráfica na obra de Ana decorre do estudo que ela empreendeu sobre a escrita chinesa e suas origens, o que resultou em uma interpretação muito própria sobre como a escrita pode acolher em sua forma o inexplicável, o acaso, o ambíguo e o incompreensível. Em alguns de seus trabalhos pode-se notar as ressonâncias orientais, vestígios das escritas chinesas transformados em elementos mais simples e às vezes geometrizados, na maioria das vezes despidos de significados pré-estabelecidos. Neles sua escrita é disforme, feita de pequenas manchas que não se configuram como um texto propriamente dito, mas ainda assim podem ser interpretadas como narrativas imagéticas, ricas em significado e imaginação.

Os estudos sobre a escrita chinesa levaram Ana Hatherly à uma rigorosa disciplina da mão, num primeiro momento, transcrevendo caracteres, repetindo o gesto até que este se tornasse natural. Essa repetição dos movimentos, bem como a compreensão da pressão da caneta e o seu deslizar sobre folha de papel tornou sua mão “inteligente”. Esta pesquisa sobre as diferentes grafias até às suas raízes foi dando lugar à exploração formal dos caráteres. Esse processo de des-semantização das palavras afasta-as da sua aparência, para as oferecer exclusivamente como formas. São palavras-imagens que, não dizendo nada, soam sempre alguma outra coisa.



Desenho (1970) 
Tinta-da-China sobre papel 65 x 50 cm



Desenho (1970) 
Tinta-da-China sobre papel 65 x 50 cm




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Referências Bibliográficas:

HATHERLY (Ana). A REINVENÇÃO da Leitura: breve ensaio crítico seguido de 19 textos visuais. Lisboa. 1975.




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