segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Good Bye Lenin - Memória, Nostalgia e os Media


A forma como o mundo é retratado influencia a forma como o percepcionamos. Num mundo em que todo o tipo de informação consegue instantaneamente, os media ganham um papel fundamental na criação de memória. Imagens reais e faccionais sobrepõem-se e misturam-se até ser quase indistinguíveis para o espectador.


Apesar de ser uma área baseada em factos e acontecimentos, é frequente esquecermos que a História é vivida por pessoas. Mesmos fontes de informação primárias, como relatos pessoais ou documentação fotográfica, já possuem inerentemente um filtro de subjectividade. A forma como escrevemos ou o que escolhemos retratar numa foto representam uma escolha e manipulação de informação que cria uma realidade ficcional paralela ao acontecimento original. 
À media que nos vamos afastando de um determinado acontecimento histórico, a forma como este é retratado vai ficando cada vez mais vaga e assente em hipóteses e interpretação. 

Enquanto esta deterioração não causa espanto quando estamos a falar de algo que se passou à centenas de anos, é mais difícil de admitir esta incerteza em relação a acontecimentos recentes. Nem mesmo eventos dos quais guardamos memórias escapam impunes. The Third Memory de Pierre Huyghe demonstra perfeitamente como a representação mediática pode um determinado evento pode influenciar a forma como nos lembramos dele, criando uma realidade alternativa mas ao mesmo tempo intimamente ligada com a realidade.

Quando se trata de memória, na maior parte das vezes aquilo que recordamos é mais o sentimento geral do momento, do que propriamente do que os detalhes do acontecimento em si, que com o passar do tempo vão ficando cada vez mais difusos. Os media surgem nesse momento quase como uma forma preencher a informação que falta.

O filme Good Bye Lenin! de Wolfgang Becker sobrepõe a imagem real com a ficcional, criando uma narrativa complexa e estratificada que destaca o papel do media na criação da memória. A primeira sequência que observamos consiste em vídeos caseiros do protagonista, Alex, de férias com a família. A presença dos media, especialmente a televisão, persiste ao longo de todo filme e funciona um veículo de divulgação da narrativa, desde o emprego de Alex como vendedor de televisão por cabo aos noticiários falsificados ou às filmagens reais da queda do Muro de Berlim. O ecrã está sempre presente, em primeiro plano em relação às personagens ou como moldura e surge como o elemento de ligação num filme com uma grande diversidade temática.




















Good Bye Lenin! surge essencialmente como um exercício de pura ficção ainda que a sua narrativa tenho como palco em evento real. Por mais fiel a factos históricos que seja nunca será mais do que ficção, e no entanto consegue capturar um ambiente de familiaridade. Apesar de pouco perceptíveis com apenas uma visualização do filme, os padrões tornam-se claros. Sempre os mesmos locais e os mesmos ângulos. É quase como se estivéssemos sentados no sofá com estas personagens e apesar o claro caracter voyeurista, nunca faz o espectador sentir-se como um intruso. De facto, o efeito é precisamente o oposto. 

A narrativa na primeira pessoa, evidente a partir do ponto de vista de vista de Alex e o seu comentário constante, desperta emoção porque espelha a forma como muitos de nós recordamos o passado. Na verdade, todo o filme pode ser resumido como uma experiência individual, de uma memória distante carregada de nostalgia que passa para o espectador. É um tipo de sentimento artificial mas ao mesmo tempo inerente ao espectador.

Isolada durante décadas, a RDA providencia o ambiente perfeito. Insistindo quase como uma realidade alternativa familiar, mas ao mesmo tempo alienista para o espectador. Com a junção das duas Alemanhas a identidade nacional assumida foi o modo de vida ocidental o que representou de certa forma a morte da RDA. O die Wende começou como um movimento cultural e espontâneo mas rapidamente procurou sufocar e eliminar todos os vestígios da RDA o que deixou um povo integrado, mas despatriado. Ao contrário da maior parte dos países membros da União Soviética que mantiveram as fronteiras ou se separaram em vários, a RDA desapareceu completamente do mapa mas manteve-se na memórias dos seus cidadãos como fonte de nostalgia cultural.

Para a uma recriação perfeita deste ambiente durante as filmagens, a grande maioria dos produtos e objectos do quotidiano são realmente provenientes da RDA. A roupa, as embalagens ou carros são completamente autênticos. Todas as localizações que vemos e os acontecimentos históricos são reais, tal como os noticiários. Este olhar para o detalhe e para a autenticidade da reconstrução histórica insere-se perfeitamente no fenómeno de Ostalgie.



Uma das cenas mais memoráveis de Good Bye Lenin! é a tentativa da personagem principal Alex criar noticiário falsos para convencer a mãe que a queda do Muro de Berlim nunca aconteceu.





Aqui podemos comparar um noticiário real da RDA pré queda do Muro de Berlim com o que foi encenado pelos personagens para o filme. Ambos são enquadrados da mesma forma, apesar de um ser completamente falso. 
















Ostalgie é o nome específico para o sentimento de nostalgia sentido pela RDA que se manifesta desde a colecção de memorabilia ou “artefactos” da RDA  a encanações da vida quotidiana ou exposições. Good Bye Lenin! é um exemplo claro deste fenómeno, mas o mais curioso em relação à Ostalgie é que não afecta somente cidadãos da antiga RDA. A maior parte dos colecionadores provêm normalmente da antiga Alemanha Ocidental ou não são cidadãos alemães de todo. O fascínio pela RDA vem de algo mais profundo que memória ou saudade. É um exercício quase arqueológico de preservar o passado de uma nação que já não existe fisicamente, mas perdura nos nosso imaginários colectivos em grande parte pelos media. 

Em 1989, a queda do Muro de Berlim teve grande atenção mediática, o que é natural tendo em conta a sua importância no contexto político-social da Europa. O uso constante da televisão por parte dos personagens não se encontra fora do contexto, traduzindo Ao longo do filme alternamos entre propaganda política, noticiários verdadeiros e encenados, reais e ficionais que traduzem na perfeição tanto o clima histórico, como o caracter temático de Good Bye Lenin! e a importância que os media e a imagem têm na criação na nossa memória. 


Referências
Nicole Crescenzi (2017) A discussion on: The Third Memory, by Pierre Huyghe, for Medium









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