segunda-feira, 11 de novembro de 2019

A Tipografia como catalisador de reflexão · parte II


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Anteriormente, apontamos alguns fatos acerca da relação entre escrita e língua. Não pretendíamos, porém, alcançar conclusões sistemáticas sobre assunto tão complexo.

Tomar a escrita como objeto não é simples, pois nossa cultura é dela tão dependente que a naturalizamos. A escrita e os fenómenos a ela relacionados se tornam tão corriqueiros quanto nebulosos, envoltos em ideologias.

Na introdução de seu “Writing Systems”, Florian Coulmas oferece um rico panorama acerca da relação entre escrita e linguagem. Ao recapitular algumas definições, Coulmas descreve a corrente de pensamento iniciada com Aristóteles e com eco em Saussure, para os quais a escrita seria a representação visível da linguagem.

Não demorou a surgirem opiniões de que a escrita latina seria superior às demais, porque nela letras correspondem à fonemas e portanto, seriam representação visual dos componentes básicos da linguagem.

Esta afirmação de superioridade é problemática, podemos deixar para os cientistas sociais a tarefa de desconstruir esses discursos.  Mas é fato que a simplicidade da escrita latina cai bem para a reprodução em tipografia, o que criou repercussões para muito além do Ocidente.

Praticamente em todas as ocasiões em que cortadores de tipos e empresas de fundição ocidentais criaram tipos não-latinos, ocorreu a imposição de paradigmas da tipografia latina a estes sistemas, isto é, latinização. Ao invés buscar adaptar a tecnologia aos sistemas de escrita, era mais barato eliminar complexidades. A escrita árabe é um excelente exemplo deste processo.


Kitab al-Salat al-Sawa‘i (Livro das Horas). Tido como o primeiro livro a ser composto em escrita árabe utilizando tipos móveis, impresso provavelmente em Veneza, em 1514. Vê-se ausência de ligaduras em certos pontos e uma tendência à criar uma linha ou zona de x, conceito inexistente na escrita árabe. 

Vários fatores podem explicar a latinização durante os século XV e XVI, porém, nos séculos XIX e XX quando os discursos consideram este processo inevitável, desejável ou simplesmente indiscutível, então podemos dizer que adentramos no campo da ideologia. A ideologia por trás da latinização não deixou de existir com o fim dos impérios coloniais, basta lembrarmo-nos que antes das fontes OpenType e do Unicode, a composição de qualidade de textos em escrita árabe, chinesa ou devanagari era impraticável.

A escrita latina continua a ser o paradigma dominante no mercado da criação e distribuição de tipos. Mais especificamente, aquilo que se produz à partir dos EUA, Reino Unido, França e Alemanha criam os padrões hegemônicos. Todas as demais realidades são vistas como exóticas e ficam de certo modo marginalizadas.

Profissionais independentes e pequenas fundições de tipos tem buscado remediar esta situação. Mas a Indústria dos Tipos é apenas mais uma indústria, é bastante revelador que projetos de múltiplas escritas iniciem-se, via de regra, pela escrita latina, o restante à ela se harmonizando. O recente boom tipográfico de escritas não-latinas deve ser analisado friamente, pois as ideologias se mascaram e perpetuam de maneiras insólitas.



Google Open Source Blog. Anúncio das fontes CJK (Chinese, Japanese and Korean) da super família de fontes Noto. Com este projeto a Google espera disponibilizar uma família harmônica de fontes para todas as escritas em uso corrente e escritas históricas.

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Referências

SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. 26 ed. São Paulo: Cultrix, 2004.
BRINGHURST, R. Voices, language, and scripts around the globe in
Language culture type: international type design in the age of Unicode. ed. 
Berry, John D. New York, N.Y.: ATypI, 2002.

COULMAS, F. Writing Systems: An Introduction to Their Linguistic Analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
NEMETH, T. Harmonization of Arabic and Latin script: possibilities and obstacles. Masters of Typeface Design, University of Reading, 2006.

GELB, I.J. A Study of Writing. 2nd edition. Chicago: University of Chicago Press, 1963.
STEINBERG, S.H. 
Five Hundred Years of Printing. New Castle: Oak Knoll Press, 1996.

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