quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Apropriação dos não-lugares

No projeto A New American Picture, de Doug Rickard, o artista recolhe cenas de rua nos Estados Unidos através da plataforma do Google Street View. Durante um período de 4 anos recorreu ao enorme arquivo de imagens do Google para explorar virtualmente as ruas em busca de lugares esquecidos, economicamente devastados e abandonados. Depois de localizar e compor a sua imagem de decadência urbana e rural, Rickard fotografa ‘novamente’ a imagem no ecrã do seu computador. Monta a câmara no tripé e liberta a imagem da sua origem tecnológica, apresentando-a num novo plano documental. 

Desta forma o artista torna-se o autor da imagem que gerou na sua câmara, no entanto aproveitou uma imagem previamente concebida pela Google para concretizar o seu objetivo. Fez a apropriação de uma imagem de um espaço no qual nunca tinha estado. Espaço que se parece com um não-lugar, pois é desprovido de identidade, é um local de passagem. Os indivíduos que o frequentam não têm nenhuma relação com o mesmo, tratam-no como um meio para atingir um fim, ou seja, atravessam estas ruas para chegarem a um destino. Quando percorremos fisicamente estas ruas limitamo-nos a cumprir as normas de circulação, características dos não-lugares.

No trabalho de Doug Rickard é possível identificar uma ideia que o antropólogo Marc Augé expressa no seu livro “Não-Lugares”. Rickard viaja no Google Street View à procura de uma imagem que lhe desperte a atenção, é um espectador nesta sequência de imagens que compõem estes mapas, “como se a posição de espectador constituísse o essencial do espetáculo, como se, em última análise, o espectador em posição de espectador fosse para si mesmo o seu próprio espetáculo.”* Estes espaços que o viajante percorre são, nada mais que, sequências de não-lugares.


#33.665001, Atlanta, GA. 2009

As imagens de Doug Rickard são de baixa resolução (pelo primeiro suporte com que foram captadas), o que lhes confere um efeito pictórico. São ocasionalmente preenchidas com figuras que reconhecem a câmara, mas cuja identidade não é reconhecida pela falta de resolução. Reforçam o isolamento das pessoas e enfatizam os efeitos de uma estrutura social americana cada vez mais estratificada.


#82.948842, Detroit, MI. 2009

A New American Picture evoca uma ligação com a tradição da fotografia de rua americana, com referências como Walker Evans, Robert Frank e Stephen Shore. Doug Rickard continua esta tradição, mas desta vez adaptada-a um mundo cada vez mais tecnológico, um mundo onde um carro com diversas câmaras no seu topo pode gerar evidências de pessoas e lugares esquecidos. Num todo, estas imagens apresentam um retrato fotográfico dos que são socialmente desprovidos de direitos e economicamente impotentes, aqueles que vivem o inverso do sonho americano.


*(3: 76) Augé, Marc, Não-Lugares – Introdução de uma Antropologia da Sobremodernidade, Letra Livre, 2016

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