Local: Praça do Peixe, Torres Novas Santarém
Data: de 12 de abril a 22 de junho de 2025
Curadoria: António Gonçalves
Coleções: Fundação Carmona e Costa e Galerias Neupergama
A exposição Uma Graça Natural, patente na Praça do Peixe, em Torres Novas, revela uma curadoria onde a sensibilidade e a inteligência convergem num diálogo intergeracional da arte contemporânea portuguesa. Sobre a direção de António Gonçalves, a exposição reúne mais de cinquenta obras provenientes das colecções da Fundação Carmona e Costa e da Galeria Neupergama, convidando à reflexão sobre a afinidade estética e emocional que atravessa diferentes gerações de artistas. A exposição propõe antes um espaço de diálogo entre obras que, pela sua força plástica e carga poética, partilham um denominador comum: a autenticidade do gesto artístico.
O título Uma Graça Natural sugere, na minha leitura, um reconhecimento da leveza e espontaneidade — não como superficialidade, mas como uma qualidade essencial. Trata-se de uma graça que emerge da liberdade do gesto, de uma intuição rigorosa, da tensão subtil entre o visível e o invisível. A curadoria constrói assim um ambiente poético, onde diferentes linguagens coexistem — do figurativo ao abstracto, da instalação ao desenho — unidas por uma vibração partilhada e por uma sensibilidade que se manifesta no traço, na cor ou no silêncio.
A presença de Paula Rego oferece à exposição uma dimensão profundamente emocional e política. As suas obras, de carácter narrativo e simbólico, exploram o universo feminino e os recantos da psique com um estilo inconfundível: simultaneamente grotesco e lírico, inscrito numa tradição crítica e autobiográfica que questiona normas sociais e visuais.
Contrastando com essa intensidade narrativa, artistas como Julião Sarmento e Rui Chaves adotam uma linguagem mais austera e conceptual. Nestes, o corpo está presente sobretudo pela sua ausência — pela sugestão, pela lacuna. As suas obras, marcadas por uma economia formal, exigem do espectador uma escuta atenta, quase um acto de fé na força da arte silenciosa.
Entre estes diferentes registos, sobressai a subtileza dos traços de Ana Hatherly. A sua escrita visual convoca uma arqueologia do signo e da palavra, num diálogo com a tradição da poesia concreta. Nos seus desenhos, de aparente leveza, esconde-se uma densa reflexão intelectual, demonstrando como um gesto mínimo pode conter um universo inteiro. Já a obra de Pedro Cabrita Reis conduz-nos a um território onde matéria e ideia se confrontam — entre ruína e construção, forma-se uma poética do inacabado.
A dimensão plástica da exposição é amplificada pela qualidade do espaço. A Praça do Peixe, com a sua luz natural filtrada, proporciona uma experiência sensorial envolvente. A disposição das obras não segue uma ordem específica, mas mais uma lógica rítmica, quase musical, que convida o olhar a manter-se, a surpreender-se e a reencontrar-se. A curadoria aposta numa dramaturgia visual oscilante entre impacto e suspensão, entre excesso e contenção. Há momentos de pura contemplação — como o da escultura de Rui Chafes — e outros de confronto direto, como nos desenhos de Mário Cesariny.
O discurso curatorial evita uma explicação exaustiva, preferindo sugerir percursos interpretativos que exigem um pensamento crítico por parte do visitante. As obras comunicam entre si e com o público, formando caminhos visuais e afetivos. A presença de artistas de diferentes gerações reforça a ideia de que a arte é, acima de tudo, um território de encontros — não só formais, mas humanos. O gesto artístico torna-se, assim, uma forma de estar no mundo, uma resistência ao ruído contemporâneo, criando beleza a partir do fragmento, do erro, da dúvida.
Do ponto de vista crítico, é de notar que a exposição exige do público uma certa disposição contemplativa, pouco comum nos ambientes atuais de receção rápida e mediada. Porém, essa exigência é precisamente uma das suas virtudes: a mostra recusa o didatismo e o espectáculo, e convida ao mergulho atento e sensível. A aposta na subtileza e na multiplicidade de leituras confere-lhe uma maturidade estética notável.
Em suma, Uma Graça Natural é mais do que uma exposição de artes visuais — é uma experiência estética e filosófica. Um convite a perceber a arte como escuta, como afeto e como sintonização de sensibilidades diversas. A graça do título é, afinal, aquela que se manifesta quando o olhar, desacelerado, encontra uma forma que fala com o seu interior. Trata-se, sem dúvida, de uma oportunidade não apenas para observar, mas sobretudo para sentir.