quinta-feira, 22 de maio de 2025

“Entre os vossos dentes” - Paula Rego e Adriana Varejão

 A exposição “Entre os vossos dentes”, a decorrer de momento no Centro de Arte Moderna (CAM) na Fundação Calouste Gulbenkian, reúne cerca de 80 obras das duas artistas Paula Rego (1935-2022) e Adriana Varejão (n. 1964) com a curadoria de Varejão, Helena de Freitas e Victor Gorgulho. O trabalho das duas mulheres de gerações e geografias diferentes cruza diversos temas como a violência, a opressão, a vivência feminina e o colonialismo. Nas obras delas podemos encontrar pinturas, gravuras, esculturas e instalações. Vou começar por comentar o nome da exposição que foi retirado do poema “Poemas aos homens do nosso tempo” de Hilda Hilst. Este poema alude à ditadura do Brasil e critica o poder patriarcal e colonial e com isso adequa-se muito bem como título da instalação. Adriana Varejão chegou a comentar o seguinte: “a poeta brasileira, da mesma geração que Paula Rego, fala desse poder instituído por homens que trituram vidas humanas”. Tanto no poema de Hilst como nas obras das duas artistas são narradas violências e injustiças oficiais com referências literárias, artísticas e historiográficas. Os trabalhos estão espalhados entre 13 salas como se fosse um labirinto, convidando os visitantes a uma procura e descoberta das várias temáticas.

Na primeira sala em que entrei encontra-se “A primeira missa no Brasil” (1993) de Paula Rego que representa um povo indígena no tempo colonial e uma mulher branca grávida no primeiro plano. Ao lado está “Mapa de lopo homem” (1992) de Adriana Varejão que demonstra uma cartografia antiga com uma ferida em carne viva a abrir em cima do continente africano. Na minha opinião esta obra alude à escravização do continente africano e o tráfico de escravos para o Brasil. As duas obras criticam e demonstram o sofrimento do tempo colonialista, a violência incutida a certos povos na altura e a hierarquia racial e de gênero.

Em outra sala encontra-se a série de pintura de Paula Rego “Tríptico” (1998) sobre o aborto. Juntamente aparece a série de instalações de Varejão “Extirpação do mal” (1994) onde vemos um “interior” da peça a sobressair como se fosse carne ou algum órgão. Esta sala toca no direito reprodutivo da mulher nas obras de Rego ao mostrar graficamente um interior orgânico nas instalações de Varejão. Acho que estes dois trabalhos se fundem muito bem pela temática e pelo contraste visual do exterior e do interior.

Achei a sala com o nome “Rituais de limpeza” interessante. Esta aborda um pouco a mesma temática anterior também. Encontramos gravuras e litografias de Varejão onde são representados espaços estéreis e frios que estão “sujos” de sangue e cabelos humanos. As obras de Rego são um apelo à legalização e à democratização do aborto. Estas obras foram impressionantes para mim porque refletem a violência e a dor pela qual as mulheres em certas ocasiões passam.

Referi obras destas três salas por terem sido as que mais me marcaram. Os trabalhos que referi tocam em temáticas e assuntos que continuam a ser atuais e precisam a meu ver de continuar a ser debatidos e compreendidos pela sociedade. Classifico o trabalho das duas artistas como bastante distinto mas achei que a união de certas obras e a divisão por temas funcionou muito bem na exposição. As duas mulheres de gerações e culturas diferentes têm preocupações semelhantes e abordam no seu trabalho temáticas muito semelhantes e intemporais da existência humana. As duas têm a particularidade de terem crescido em ditaduras e em sistemas patriarcais muito marcados pelo catolicismo, o que é bastante presente nas obras de arte de ambas. As duas criticam com a sua imaginação visual as raízes da violência na sociedade patriarcal. A exposição é assim uma homenagem e legado do trabalho (de uma vida inteira) de Paula Rego, ao mesmo tempo que celebra a continuidade da arte de Adriana Varejão que aborda os mesmos temas intemporais que a sua antecessora já trabalhava. A exposição “Entre os vossos dentes”, de Paula Rego e Adriana Varejão, revelou-se uma experiência profundamente interessante, inspiradora e impactante. A combinação das obras das duas artistas permitiu um diálogo poderoso sobre temas como o corpo, a dor, a memória e a identidade. A curadoria foi bem conseguida, criando uma narrativa visual envolvente que destacou tanto as semelhanças quanto as singularidades de cada artista, proporcionando uma reflexão intensa e provocadora.

Webografia

https://gulbenkian.pt/agenda/adriana-varejao-e-paula-rego/

https://www.agendalx.pt/events/event/paula-rego-e-adriana-varejao/

https://www.forbespt.com/exposicao-com-80-obras-de-paula-rego-e-adriana-varejao-na-gulbenkian/

https://www.agendalx.pt/2025/04/15/rego-e-varejao-afinidades-transatlanticas/

https://sicnoticias.pt/programas/cartaz/2025-04-25-video-paula-rego-e-adriana-varejao-encontram-se-num-museu-5c172953