segunda-feira, 29 de novembro de 2021

pensar a casa

Y Llechó la luz​, 2016,
Wire, paper mache, sponge, acrylics, textile

81 x 66 x 66 cm





A partir desta imagem da casa suspensa do artista Jorge Mayet e em meio a situação pessoal de mudança de país, [re]penso o espaço concreto da casa, o lugar do ambiente seguro que foi totalmente desfeito, vendido ou doado e que, agora em transição, adapta-se e busca reerguer-se em outro espaço e lugar.

Jorge Mayet é cubano, vive e trabalha em Espanha. A aspiração do seu trabalho está na distância de sua terra natal e nas memórias de suas paisagens caribenhas, por meio de suas obras apresenta os ​bohios​, típica casa do camponês cubano. As casas estão inseridas em pedaços de terra firme, acompanhadas de árvores e/ou raízes, e estas são instaladas na parede ou estão em suspensão, Mayet diz que: “minhas instalações são encarnações de minhas experiências, elas permanecem indefinidamente suspensas por fios invisíveis, como os que me ligam com minhas memórias e raízes” (2014).

Ver a imagem de uma casa suspensa, faz parecer ser possível pensar que podes sempre carregar as suas casas consigo, a independer de quão suspenso esteja no tempo presente — “porque hoje sua casa, está cá, consigo.. estás na segurança das suas terras, pisas o chão e é aquecida pela luz, que deverás está acesa” (texto meu). O filósofo Gaston Bachelard em seu livro a Poética do espaço, por meio da fenomenologia apresenta a casa como esse lugar potente e imagético, lugar do afeto que abriga e protege, afirma que 


a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. Só os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorização. Ele usufrui diretamente de seu ser. Então, os lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos num novo devaneio. É exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós. ​(BACHELARD, 2008, p. 26).


A casa integra as memórias em um espaço que transcende o tempo, seu registo não é necessariamente linear, não importa a data específica mas sim o lugar e o espaço da intimidade e seus valores. 

Neste processo de mudança, ver a imagem da casa em suspensão evidencia que, habitar uma casa, não se refere ao fato de possuir uma residência, mas ao que acontece no entre das suas paredes concretas, as vivências experienciadas na casa carregam a singularidade das histórias, relaciona-se com o si mesmo, com quem se é no mundo, ela registra e guarda as lembranças, envolve e aquece. Assim, a casa é um ambiente instituído de imagens que fala única e exclusivamente de quem nela fez morada. Para Bachelard (​2008, p.20) ​“a imagem da casa é a topografia do nosso ser mais íntimo” e prossegue dizendo:


Assim, a casa não vive somente do dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpretam e guardam os tesouros dos dias antigos. ​(BACHELARD, 2008, p.25).


Os tesouros antigos, as imagens da memória, estão nos lugares que o corpo armazenou. Como o historiador Hans Belting apresenta em sua teoria da imagem: “se outrora os lugares foram ​lugares da memória – lieux de mémoire)​, como lhes chamou Pierre Nora –, hoje torna-se sobretudo ´lugares na memória´​” (BELTING, 2001/2014, p.84). A alteração entre as preposições “de memória” e “na memória” parece sutil, mas na verdade a contração entre ​”em + ​a”​, de origem latina ​”in”, apresenta um movimento para dentro e deve ser usada com verbos que indiquem ​lugar.​

Deste prisma, a casa como lugar nas memórias é relacional, já que um corpo qualquer não contém imagens a não ser quando é visto, cheirado, ouvido, tateado ou saboreado. Contribui para este entendimento o teórico em comunicação, Norval Baitello Júnior, ao afirmar que a imagem sempre é relacional, isto é, está no interno-externo, no eu-outro, no ​meio ambiente da relação” (BAITELLO, 2019, p.62, grifo meu) e segue:


Um ambiente, portanto, é um mundo que nos cerca (conforme também diz a palavra alemã ​Umwelt​, mundo em volta). Tal conceito nos oferece um método distinto daquele que as ciências da Comunicação normalmente praticam, de buscar compreender o objeto em si mesmo, independente do seu contexto ou seu entorno. A perspectiva metodológica que se oferece agora pressupõe uma indissociabilidade entre objeto e entorno, uma vez que o objeto está imerso em um ambiente, determina-o e é determinado por ele. (BAITELLO, 2019, p.62)


Pode-se dizer que viver a casa é estar no meio ambiente onde as relações acontecem, de lá saem e lá também permanecem, sejam nas fotografias que enfeitam as paredes ou nos álbuns, sejam nos bibelôs que enchem as estantes ou nas histórias contadas nos encontros de família, ou na lembrança do cheiro do bolo no café da tarde na casa da avó — a casa, assim, permanece, como lugar na memória do próprio corpo.



Referências
BACHELARD, Gaston. ​A poética do espaço​. São Paulo: Martins Fontes, 2008
(Original publicado em francês 1957).

BELTING, Hans. A​ntropologia da imagem. Para uma ciência da imagem. Lisboa, Portugal: KKYM, 2014 (Obra original publicada em 2001).

CONTRERA, M. S.; BAITELLO JUNIOR, N. Na selva das imagens: Algumas contribuições para uma teoria da imagem na esfera das ciências da comunicação. Significação: ​Revista de Cultura Audiovisual​, [S. l.], v. 33, n. 25, p. 113-126, 2006. DOI: 10.11606/issn.2316-7114.sig.2006.65623.


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