domingo, 28 de novembro de 2021

Orlacs Hände

No extremo do seu braço, onde era de supor que não houvesse senão uma, ele na realidade tinha, uma envolvendo a outra, duas mãos. Ambas podiam, consoante a ocasião, chamar a si qualquer destas funções – acariciar ou agredir -, embora sempre de maneiras diferentes. Apesar de apenas uma, provavelmente a que mais próxima estava do seu espírito, fazer o mar vir à superfície daquilo em que tocava, era impossível distingui-las, sobretudo pelo facto de elas, sem que alguma vez tenhamos descoberto de que modo, permutarem entre si. Nunca sabíamos qual de ambas se encontrava grávida da outra.
As Mãos, Luís Miguel Nava

 
A importância da mão reflete-se em obras de arte, sobretudo e desde cedo na arte cinematográfica, que consegue como nenhuma outra apresentar o aspeto de “pars pro toto”,
 ou seja, a mão representa toda a individualidade e carácter (antagónico) de uma pessoa.
É possível vermos esses registos em filmes como: “Warning Shadows” (Artur Robison ,1923) “Yellow Submarine” (George Dunning, 1968), ou na série da TV, baseada nas personagens de banda desenhada de Charles Addams (The New Yorker, 1938 -1988) e no filme “The Addams Family” (1991).
O filme expressionista “Orlacs Hände” (As Mãos de Orlac), de Wiene é um exemplo interessante onde as mãos desempenham um papel crucial e onde é possível observar o sentir, ver, ouvir, falar e pensar; elas provém de um idealismo total, de um eu subjetivo sem freios.
As Mãos de Orlac (1924/25) é uma produção em sete atos da companhia Wiener Pan-Film, realizado por Robert Wiene, cujo argumento de Ludwig Nerz se baseia num romance de Maurice Renard . Estreou a 31 de Janeiro de 1925 em Berlim, apresentado com o concerto 
de piano em B -Moll de Tchaikovsky.
No filme de terror de Wiene, o famoso pianista Paul Orlac perde ambas as mãos num acidente de comboio. Um cirurgião transplanta–lhe as mãos do assassino Vasseur que há pouco tinha sido executado: “Num corpo saudável habita um espirito saudável. Quando as suas mãos regeneram o seu espirito será revelado através da habilidade delas.” O pianista fica com pesadelos, nos quais é ameaçado pelo assassino morto. No delírio receia que os mãos dele, que agora são as suas, peçam “Sangue, … Crime, ... Assassínio”.
Orlac imagina que uma força fria, terrível e implacável emana das mãos, tomando posse do corpo inteiro e da alma. Além disso, um estranho desconhecido persegue Orlac, reforçando os seus medos. Num pesadelo o pianista é perturbado pelo punho gigantesco do assassino e decide que “Estas mãos não devem tocar num ser vivo”. Ficando alienado da sua esposa e de si próprio, até tocar piano se tornou impossível. Não reconhece nem a sua própria escrita, e perde a identidade. Orlac amaldiçoa as suas mãos e tenta em vão livrar-se delas durante uma consulta no médico: “Retira-me estas mãos. Não as quero, estas mãos horríveis!” O médico recusa e acalma o paciente: “Não são as mãos que regem o homem, a cabeça, o coração dirigem o corpo …”
Após o assassínio do pai de Orlac, que lhe tinha negado qualquer apoio, o
pianista ficou sob suspeita. Até suspeita ser ele próprio o autor do crime. O responsável pela investigação comenta: “Vasseur já está morto há mais de um ano, mas as suas mãos ainda estão vivas”
Nessa altura, o estranho perseguidor desconhecido revela a sua identidade, alegando que era Vasseur. No final da película, é oferecido ao espectador uma explicação racional e algo banal para esta trama surreal.
Analisando o significado das mãos neste filme é possível observar que enquanto instrumento do fazer, as mãos adquirem uma potencialidade de inúmeras significações. O caráter sexual em relação às mãos – precisamente à ação e ao toque -são estabelecidas logo no início do filme. Este começa com a esposa de Orlac deitada na cama, com uma expressão de êxtase no seu rosto ao receber uma carta do marido. “Vou abraçar-te, cariciar os teus cabelos e sentir o teu corpo entre as minhas mãos”, As mãos são signos evidentes de poder sexual e artístico, realçados na montagem, que termina com um close-up nas mãos de Orlac ao piano. Mais tarde, já com as mãos de Vasseur ele pede à empregada para seduzir as mãos. A brusca alteração do êxtase ao terror após Orlac colocar as duas mãos, o seu pensar indica a transformação física, as suas novas mãos, são independentes e isso destruiu a relação dele com a mulher e gerou uma crise de afetos. Nesse sentido, no campo erótico, pode-se pensar as mãos de Orlac como alegorias de virilidade perdida e impotência adquirida.
O pianista perde o seu teto transcendental com a perda das mãos, e precisa adaptar os seus movimentos às mãos que não lhe pertencem e que, lhe causam repulsa. Nesse sentido, o dano físico e os colapsos nervosos de Orlac também apresentam caráter alegórico em relação aos mutilados e traumatizados que voltaram da 1ª Guerra Mundial. As mãos são o símbolo dessas dificuldades de evolução e readaptação física e psicológica à sociedade civil, tão bem enfatizadas por Walter Benjamim.
Podemos de alguma forma fazer uma analogia das mãos de Orlac, quando em total desespero, coloca as mãos na cabeça com o quadro de Edvard Munch, Srik (O Grito, 1893), como sinal de solidão, ansiedade e medo.
Sobrecarregadas de significado, as mãos de Orlac assumem o caráter simbólico e alegórico sobre a vida: instrumentos da vontade que comanda o fazer, pelo qual o homem manifesta a sua humanidade (realizando um talento) ou desumanidade (praticando um crime), elas são a expressão objetiva da personalidade e objeto da expressão de sentimentos – um signo material do sujeito. Em Orlacs Hände, as mãos do protagonista dissociam-se do seu corpo para viver um mundo à parte, elas são estrangeiras ao corpo, apresentam um eu próprio com emoções, sentimentos e pensamentos, são elas as verdadeiras protagonistas do drama.








 
BENJAMIN, W. A origem do drama trágico alemão. Edição e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
KRACAUER, S. Teoria del cine: la redención de la realidad física. Traducción de Jorge Honero. Barcelona, Buenos Aires, México: Paidós, 2001.
NAVA, LM. POESIA COMPLETA [1979-1994]. Lisboa, Dom Quixote, 2002.
https://www.youtube.com/watch?v=ilhXq0yeycQ

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