segunda-feira, 29 de novembro de 2021

 De Profundis, Valsa Lenta.


 


Registamos diariamente imagens, sons, sensações, gestos, acontecimentos que nos contam ou que lemos, notícias que mais tarde contamos em conversas casuais. Partilhamos nas redes sociais o que ouvimos e gostamos, as nossas fotografias, o que vemos e achamos graça mas, aquilo que nos interpela e de alguma forma conduz as nossas ações quotidianas, guardamos e recuperamos constantemente, tornamos modo de vida, rotina diária. Refiro-me por exemplo aos hábitos mais simples do dia‑a‑dia, nos quais nem sequer pensamos pois são automáticos. Também não é hábito pensar naquilo que fazemos automaticamente.

O nosso próprio corpo atua quase autónomo, dono de si próprio no que diz respeito à sua relação com o ambiente ao seu redor. Muitas vezes movemo-nos quase sem dar por isso. Vamos na rua com um determinado destino e quase sem darmos conta já chegámos. A nossa mente entreteve‑se todo o trajeto ocupando-nos com outros pensamentos e o nosso corpo levou-nos ao lugar pretendido. Dou-me muitas vezes conta deste facto, que é transversal a todas as idades. Quando somos crianças, muitas vezes ouvimos que estamos com a cabeça na lua, frase que significa que embora estivéssemos fisicamente presentes, a mente navegava por outros mares.

Esta temática interessa-me particularmente, não só este alheamento associado ao automatismo, mas sobretudo a perda da capacidade de sermos alguém que é muitas coisas ao mesmo tempo. Mesmo em momentos de meditação não deixamos de ter consciência do nosso próprio ser, do espaço que ocupamos e que nos rodeia.

Em De Profundis, Valsa Lenta, José Cardoso Pires conta-nos na primeira pessoa a experiência de deixar de saber de si próprio. Curiosamente, este foi um acontecimento vivido e contado na primeira pessoa sobre um período de tempo em que ele não se reconhecia e que define como perda de identidade. Na sequência de um acidente cardiovascular (AVC) em 1995, José Cardoso Pires viveu esta experiência, tantas vezes irreversível, de deixar de ter capacidade de falar, ler e escrever, em suma comunicar. O “outro” como ele designa a sua própria existência nesse período de tempo, passava os dias deambulando pelos corredores do hospital sem conseguir reconhecer objetos comuns e pessoas. O esquecimento, que ele define como uma desmemória permanente, ocupou o seu quotidiano afastando-o das relações com os outros. Neste período vivido em inconsciência de si próprio, o seu nome deixa de ser pronunciável e a identificação dos seus entes queridos e respetivos nomes deixa de ser possível. Esvaece todo o sentido. Mesmo o reconhecimento da sua própria imagem e daquilo que o rodeia deixa de ser entendível.

“Lembro-me de que essa manhã foi invadida por um aguaceiro desalmado, ouvia-se uma chuva grossa e pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque quando acabou a Edite ainda estava ao telefone. A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear‑me com a passividade de quem está a barbear um ausente – e foi ali.
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado‑presente, de imagem‑objecto, do eu com outro alguém ou do real com a visão que o abstracto contém.” (Pires, 2015)

O outro aspeto focado neste pequeno livro é a surpreendente recuperação deste estado de ausência. Como se fosse uma nova oportunidade de vida. Neste caso, José Cardoso Pires aproveitou este regresso ao seu ser consciente para, tempos depois, redigir este livro na tentativa de descrever a experiência vivida sem pretensão a explicações científicas. No capítulo a que ele chama de “Entrelinhas duma Memória” atribui outras possibilidades de título ao seu relato: “Memória”, “Memória Descritiva” ou “Memória de uma Desmemória”. Pegando nesta ideia de ausência de memória poderíamos considerar que a memória é o que nos permite descrever, compreender e caracterizar tudo aquilo que nos rodeia, objectos e pessoas, e o nosso próprio ser enquanto indivíduos. Uma desmemória poderia ser descrita como o esquecimento permanente de uma memória outrora parte da nossa consciência. Eliminar estes registos conduz-nos a uma “morte branca” como refere José Cardoso Pires: “Bem sei, a morte branca não existe, eu estive lá. Tudo o que me aconteceu nessas paragens cabia aos outros, não me tocava. Era um glaciar. A morte branca. A memória congelada. Se o sonho é já por si uma memória, sem memória poderá o indivíduo sonhar?”
 
Não poderia terminar sem referir o exemplar prefácio do livro, da autoria de João Lobo Antunes, médico neurologista e amigo do autor. Nele encontramos uma “carta ao amigo” repleta de reflexões sobre o período de “desmemória” e a maneira como José Cardoso Pires o viveu e descreveu no seu livro. Cito um breve excerto:

“Devo dizer-lhe que é escassa a produção literária sobre a doença vascular cerebral. A razão é simples: é que ela seca a fonte de onde brota o pensamento ou perturba o rio por onde ele se escoa, e assim é difícil, se não impossível, explicar aos outros como se dissolve a memória, se suspende a fala, se embota a sensibilidade, se contém o gesto. E, muitas vezes, a agressão, como aquela que o assaltou, deixa cicatriz definitiva, que impede o retorno ao mundo dos realmente vivos.”

Obras Citadas

Pires, J. C. (2015). De Profundis, Valsa Lenta. Lisboa: Relógio D'Água Editores.

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