Estreou neste ano de 2021, Paraíso, a mais recente obra do realizador luso-brasileiro Sérgio Tréfaut. Nos primeiros minutos, o diretor conta em primeira pessoa, que o filme é uma tentativa de resgate da sua memória de um Brasil que foi deixado ainda na adolescência, e de onde esteve ausente por mais de 40 anos.
Este documentário acompanha os encontros diários e espontâneos dos seresteiros cariocas: senhoras e senhores com mais de 80 anos que simplesmente se reúnem para cantar e celebrar nos jardins do Palácio do Catete, na cidade do Rio de Janeiro, antiga capital brasileira.
O Palácio do Catete, que hoje em dia funciona como Museu da República, teve grande importância no cenário político brasileiro pois abrigou a sede da Presidência da República entre os anos de 1897 e 1960, quando a capital federal foi transferida para Brasília. Logo, é no mínimo simbólico que estes encontros que celebram um ideal de música e cultura brasileiras aconteçam lá.
As serestas apresentadas, que são as antigas tradições de cantoria popular, não se ligam exatamente por um estilo musical ou autor. Tratam-se de canções de amor conhecidas por grande parte dos brasileiros (sobretudo os velhotes) e que ocupam um lugar de pertencimento da identidade nacional. São sambas, choros, pagodes, louvores, cirandas, músicas bregas e românticas, de diferentes intérpretes como Gal Costa, Roberto Carlos, Wando, Alcione, Pixinguinha, Maysa e Adoniram Barbosa, que se misturam e envolvem os espectadores ali nos jardins do Palácio e nas poltronas do cinema.
Entre uma e outra apresentação musical no Palácio, Sérgio nos conduz a uma pequena mostra da intimidade de seus personagens, contrastando o momento de alegria, glória e aplauso das cantorias com a dura e pobre realidade do cotidiano, mostrando os velhinhos ora chegando ou saindo de suas humildes casas, pegando o metrô para chegar aos encontros, cozinhando, arrumando seus lares ou simplesmente falando de suas relações com as canções e com suas experiências de vida, geralmente carregadas de um forte sentimento de solidão, cujo antídoto é justamente a música.
Também vislumbramos entre as cenas, os bastidores da manutenção desse equipamento cultural: jardineiros aparando plantas, molhando a grama, algum funcionário que dispõe as cadeiras de plástico ora em círculo ora em fileiras para acomodar os músicos, cantores eventuais e plateia.
Em entrevistas, Sérgio conta que as gravações das serestas aconteceram até o início de 2020, logo antes da pandemia do coronavírus arrebatar o mundo e, de maneira ainda mais infeliz, o Brasil, que foi duramente prejudicado nos mais diversos níveis devido à má gestão do atual presidente da república, Jair Bolsonaro, resultando em centenas de milhares de mortes que poderiam ser evitadas no país inteiro.
É impossível assistir à Paraíso sem se perguntar como os velhinhos retratados passaram por essa difícil realidade, já que trata-se de uma população mais frágil e vulnerável em termos de saúde. Por mais reduzida que fosse, a equipe do filme também não teria conseguido acesso à vida particular de cada um deles na altura, devido às recomendações sanitárias e à falta de conhecimento sobre o próprio comportamento do vírus. O realizador contou, após uma exibição no Cinema Medeia Nimas, que um deles inclusive veio à óbito depois de entrar na fila por um leito na unidade de tratamento intensiva em um hospital público, ainda em abril de 2020. O descaso da presidência e da administração pública com a sua população e a sua própria cultura é lamentável, grave e preocupante, pois promove um apagamento brutal de histórias e narrativas que traduzem o que é o Brasil.
Na contramão disso, a força desta obra está na bela tentativa de mapear a identidade de um país inteiro através de seus cidadãos comuns e das suas músicas mais populares que atravessam gerações e que se mostram vivas, fortes e simbólicas até hoje, enfrentando dificuldades econômicas, políticas e sociais.
Sem comentários:
Enviar um comentário